sábado, 6 de novembro de 2010

O LAÇO BRANCO (2009)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
Título Original: Das weiße Band - Eine deutsche Kindergeschichte
Realização: Michael Haneke
Principais Actores: Christian Friedel, Ernst Jacobi, Leonie Benesch, Ulrich Tukur, Fion Mutert, Burghart Klaussner, Maria-Victoria Dragus, Josef Bierbichler, Susanne Lothar, Roxanne Duran, Miljan Chatelain, Eddy Grahl

Crítica:

A DÚVIDA


Ich weiss nicht, was trauriger ist:
euer Fortbleiben oder euer Wiederkommen.

É no magistral O Laço Branco que Michael Haneke atinge, enquanto autor e artista, justamente aquilo que sempre lhe escapou: o mais apurado requinte visual. Fá-lo por meio da beleza dos enquadramentos, do detalhe e da minúcia da mise-en-scène e do carácter imaculado do preto e branco, que, tão sublimemente, Christian Berger aprimorou após uma primeira captação a cores. É-lhe inteiramente novo, a Haneke, este esmerado cuidado estético. Mas o que se mantém é o seu realismo que, apesar do esplendor da imagem, se impõe sobre todo e qualquer critério visual.

Eine deutsche Kindergeschichte, reza o subtítulo, mas com a sua consciente dose de ironia. Por um lado porque joga com a ambiguidade do termo Kindergeschichte. Num sentido lato, Kindergeschichte significa história infantil, o que por sua vez pode significar tanto uma história para crianças como uma história sobre crianças. O Laço Branco é uma história sobre crianças, sabemo-lo perfeitamente, mas se há coisa que facil e rapidamente concluimos é que estamos perante uma história para adultos. Depois, a restante ironia reside no caracterizador deutsche: a acção passa-se numa pequena aldeia do norte da Alemanha, poucos anos antes do assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando e do despoletar da Primeira Grande Guerra. Ao mesmo tempo que o adjectivo nos localiza a acção, dá-nos conta das origens e da nacionalidade da história, o que - imediatamente - parece circunscrever a representação a um espaço específico. Todavia, não estamos senão perante a mais universal das histórias sobre as primeiras manifestações de indecência, mentira, inveja, apatia, brutalidade e maldade que, aquando da infância, corrompem todos os ideais de pureza e inocência tradicionalmente transmitidos de geração em geração e simbolicamente representados no laço branco que dá nome ao título do filme.

O narrador enceta a história:

Ich weiß nicht, ob die Geschichte, die ich Ihnen erzählen will, in allen Teilen der Wahrheit entspricht. Vieles davon weiß ich nur vom Hörensagen, und Manches weiß ich auch heute nach so vielen Jahren nicht zu enträtseln, und auf unzählige Fragen gibt es keine Antwort. Aber dennoch glaube ich, dass ich die seltsamen Ereignisse, die sich in unserem Dorf zugetragen haben, erzählen muss, weil sie möglicherweise auf manche Vorgänge in diesem Land ein erhellendes Licht werfen können.

Die seltsamen Ereignisse não foram senão acidentes graves e propositados, cujos responsáveis desconhecemos. Uma série de acontecimentos que se sucederam, uns atrás dos outros, lançam o terror e a sede de vingança na aldeia: primeiro a queda a cavalo do médico, depois a enigmática morte de uma camponesa, em seguida o suicídio do seu marido, depois o incêncio do palheiro, o ataque ao filho dos barões, a violência sobre o mongolóide Karli, etc., etc. Quem são os culpados? O relato do narrador, que cedo percebemos tratar-se do professor da época, sustentar-se-á, sempre, em Hörensagen e em dúvidas. Na verdade, estamos perante um filme de Michael Haneke; e o seu cinema, por definição, não se apoia em explicações. Qual é a personagem ou quais são as personagens, as culpadas por tão cruéis e vis atrocidades? As crianças? Jamais desvendaremos essa Verdade, esse mistério, até porque o narrador nunca presenciou nenhum momento fundamental da intriga. E disso é avisado o espectador, desde logo.

Aquela aldeia, rígida em costumes, é um microcosmos repressiva e hipocritamente religioso, que se serve da máscara dos bons valores para alimentar o futuro. Exige um modelo, mas destrói-o logo à partida. No fundo, temos uma sociedade liderada por homens, completamente machista, que maltrata e despreza a mulher, que maltrata e despreza as crianças. As crianças, essas, sofrem na pele a dureza dos castigos e crescem com medo, esforçando-se por cumprir - à risca - os ideais que lhes são transmitidos. A religião serviu-se do medo, durante séculos. E o medo, sabemo-lo, conduz à violência, a violência ao terrorismo e o terrorismo à morte. Assim como um ideal levado ao extremo. Por outro lado, todos nós temos o instinto natural da destruição. Quem são, então, os culpados pela feroz violência que assola o ser humano? A questão é e será sempre de difícil e complexa resposta. É esta a crítica de Haneke e a sua dissecação antropológica na representação do Mal, neste absolutamente magnífico O Laço Branco.

Há aqueles como o professor ou Eva que ingressam na idade adulta sem serem corrompidos. Veja-se como o seu amor floresce, cortês, respeitador e puro, à margem da obscuridade. Há, portanto, aqueles que conservarão a inocência. Mas serão sempre poucos, em comparação com os moralistas perseguidores, os punidores do pecado, eles próprios pecadores. O que acontecerá ao pequeno e amoroso Rudolf, desde cedo interessado pelos incompreensíveis desígnios da morte? Será corrompido? Talvez sim. Talvez não. A vida é um caminho sinuoso.

Em tudo brilhante e com um elenco verdadeiramente excepcional, O Laço Branco não é senão o espelho de uma reflexão metódica e profunda, plena de erudição, mas sempre fria e crua. Um portentoso clássico instantâneo e um dos mais refinados filmes do cineasta austríaco.

18 comentários:

  1. É um filme sem dúvida grandioso. Um dos maiores de Haneke (apesar de fugir um pouco da linha de filmes contemporâneos com os quais tem habituado os seus seguidores). Assustadoramente actual, tem aquele tom de clássico instantâneo que muito facilmente se justifica.

    Dele, falei aqui: http://osetimocontinente.blogspot.com/2010/01/o-laco-branco.html

    Tenho a certeza de que vais gostar. :)

    ResponderEliminar
  2. É um bom filme sim, mas fica longe do melhor de Haneke.

    ResponderEliminar
  3. Álvaro, qual é o teu preferido?

    Para mim, e aconselho a todos os leitores do Cineroad, é O Sétimo Continente.

    ResponderEliminar
  4. Esse nunca vi Flávio. O meu preferido é mesmo o Funny Games (o original claro).

    ResponderEliminar
  5. Mais uma vez passo por aqui e me deparo com outro filme grandioso... Fita Branca é duro, corajoso e, principalmente, necessário se levarmos em consideração a quantidade de besteiróis que andam rolando no atual cinema. Fabuloso!

    Cultura na veia:
    http://culturaexmachina.blogspot.com

    ResponderEliminar
  6. FLÁVIO GONÇALVES: Concordo com cada palavra que sentenciaste!

    ÁLVARO MARTINS: É um muito bom filme, ao nível do melhor de Haneke, ainda que servindo-se de outra linguagem cinematográfica; diria eu assim. Apesar disso, não é dos meus favoritos do realizador, também. Gosto imenso do FUNNY GAMES e d'O CÓDIGO DESCONHECIDO. A ver se descubro o CACHÉ - NADA A ESCONDER.

    MARCELO PEREIRA: Sim, sem hesitar. É um filme magistral!

    PSEUDO-AUTOR: Eu tenho bom gosto! ;D Concordo com tudo isso que disse, sim.

    Cumps.
    Roberto Simões
    » CINEROAD - A Estrada do Cinema «

    ResponderEliminar
  7. Está na minha lista de espera, para muito breve.


    Abraço
    Cinema as my World

    ResponderEliminar
  8. NEKAS: E aconselho-to vivamente ;)

    Cumps.
    Roberto Simões
    » CINEROAD - A Estrada do Cinema «

    ResponderEliminar
  9. Eu preciso conhecer mais o cinema do Haneke. Acho que a Fita Branca é uma boa introdução...

    Como este filme perdeu o Oscar de melhor fotografia? Tá certo que Avatar é ótimo em termos técnicos, mas não dá pra dizer que foi melhor que A Fita Branca nesse quesito.

    Abraços!

    ResponderEliminar
  10. BRUNO KNOTT: Sim, penso que sim, que O LAÇO BRANCO é um bom começo. Haneke é um cineasta incrível!

    Cumps.
    Roberto Simões
    » CINEROAD - A Estrada do Cinema «

    ResponderEliminar
  11. Ainda bem que gostaste, quer dizer que valeu a pena, como previa! ;) É de facto um estrondoso filme. Boa crítica, como nos tens habituado.

    ResponderEliminar
  12. TIAGO RAMOS: Valeu, com certeza. Só tenho a agradecer-te. É de facto um filme sublime. Clássico instantâneo.

    Cumps.
    Roberto Simões
    » CINEROAD - A Estrada do Cinema «

    ResponderEliminar
  13. Bom filme, sem dúvida.

    Mas o grande filme de Haneke é, para mim, o NADA A ESCONDER - que tens de descobrir o mais rapidamente possível! :)

    Abraço.

    ResponderEliminar
  14. SAM: Bom e belo ;) Sim, na verdade ainda não conheço o NADA A ESCONDER... Será uma falha a colmatar no próximo ano, espero.

    Cumps.
    Roberto Simões
    » CINEROAD - A Estrada do Cinema «

    ResponderEliminar
  15. Um filme sobre a moral e os "bons costumes" através de uma beleza incrível de pormenores onde se destaca a cor, o preto e branco.Um filme surpreendente. Aliás o final chega a ser intrigante. Não se esperem respostas, é um filme para reflectir. Muito bom.

    ResponderEliminar
  16. MANUELA COELHO: É isso, precisamente. Estamos então em sintonia.

    Cumps.
    Roberto Simões
    » CINEROAD - A Estrada do Cinema «

    ResponderEliminar
  17. Filme abismal, no sentido puro do termo. De Haneke nunca tinha visto nada, mas este começo foi promissor. A sensação de clássico instantâneo respira-se a cada cena, a cada plano, a cada som da película. Gostei bastante da fotografia (divinal), da banda sonora e da montagem, mas o melhor é mesmo a conjugação do argumento com a eficaz realização. Pautada, sincera e reveladora o quanto baste. O resto fica para a imaginação e para a interpretação.

    abraço

    ResponderEliminar

Comente e participe. O seu testemunho enriquece este encontro de opiniões.

Volte sempre e confira as respostas dadas aos seus comentários.

Obrigado.


<br>


CINEROAD ©2020 de Roberto Simões