domingo, 3 de dezembro de 2017

SILÊNCIO (2016)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
★★★★★
Título Original: Silence
Realização: Martin Scorsese
Principais Actores: Andrew Garfield, Adam Driver, Issei Ogata, Yôsuke Kubozuka, Liam Neeson, Ciarán Hinds, Tadanobu Asano, Shinya Tsukamoto, Yoshi Oida

Crítica:

O ÚLTIMO PADRE NO INFERNO

 Mountains and rivers can be moved
 but men's nature cannot be moved.

Onde está Deus, no fim do mundo? Esta é a questão que o sofrido padre Rodrigues de Andrew Garfield encontrará, vezes sem conta, no seu mais profundo íntimo. Movido pela sua fé supostamente inabalável, cega e inquestionável, incube-se de uma missão que o distanciará do seu ocidente e o mergulhará num Japão de lama e nevoeiro, onde a inquisição persegue e tortura cristãos e professores da fé até à morte. O motivo é encontrar o desaparecido padre Ferreira (Liam Neeson) e continuar o sequioso plano de evangelização da Igreja Católica. Acompanha-o o colega Garupe (Adam Driver), mas depressa cairá no isolamento e na dúvida. Até que ponto pode a semente do cristianismo plantar a sua verdade no ventre de uma cultura tão distinta, com um imaginário tão mais humano e tão menos divino?

Our Buddha is a being which man can become. Something greater than himself, if he can overcome all his illusions. But you cling to your illusions and call them faith.
Intérprete

Até que ponto vale a pena rezar em segredo, na sombra do medo, condenando a existência a uma natureza fantasmagórica? Acreditam os aldeões, verdadeiramente, na palavra de Deus e nas suas representações, ou na palavra dos padres como Rodrigues e nas representações mais aproximadas que o seu imaginário permite? Acreditarão, os que proferem e os que ouvem, efectivamente e com exactidão, nas mesmas coisas? Onde está Deus, no fim do mundo, quando se sacrificam vidas e famílias em nome d'Ele? Para que serve o martírio? Garantirá ele o acesso livre ao paraíso? Valerá o paraíso desconhecido mais do que a existência terrestre, a do dia-a-dia? Poderá definir-se um cristão como aquele que, tão-somente, recusa pisar uma imagem ou cuspir na cruz, quando da apostasia resulta a sobrevivência dos que ama? Porque significa a fé dor e sofrimento e não bem-estar e jubilo? Negar é uma fraqueza ou uma força? A fé em Deus, tornando-nos dele dependentes, é em si mesma uma coisa positiva? Uma vantagem numa vida repleta de agruras e obstáculos? No olhar e nas lágrimas de Garfield espelham-se todas estas interrogações, todas estas dúvidas, num crescendo que se intensifica tão imperioso quanto o silêncio de Deus perante os acontecimentos. Poderá o jovem escutar no silêncio a voz divina e obter uma resposta?

Mais do que uma meditação, Scorsese concretiza um abalo na consciência do crente, adaptando o romance homónimo de Shusaku Endo, naquele que é, seguramente, o seu mais fervoroso ensaio religioso desde a excelência de Kundun. Julgo, inclusive, que as duas obras estabelecem, até determinado ponto, um interessante e estimulante debate e diálogo, acerca de duas perspectivas da fé propostas pelo cristianismo e pelo budismo. Silêncio é, todo ele, uma viagem delicada mas absolutamente densa e imersiva, que desafia, a todo o instante, os limites da fé e que se densifica cada vez mais pela ausência total de música. São os sons da natureza e as vozes dos homens que chegam ao ouvido de quem assiste ao longo dos 160 minutos de exibição. O espectador, perante este quadro, ou se desinteressa e se alheia completamente da história e do filme (o que é fácil de acontecer àquele menos paciente ou treinado) ou se entrega inteiramente no abraço narrativo, porventura perdendo-se quais protagonistas entre aquilo que considerava certo e toda uma nova ou renovada discussão suscitada pelos mais variados suplícios e horríveis provações. A cena da tortura das ondas, contra os crucifixos de carne e osso, é por demais emblemática, a propósito. Até onde vai o fanatismo de uns e o de outros e até que ponto valem a pena? Não será a dita verdade universal um veneno perigoso e letal num mundo assumidamente plural? Porquê a necessidade da conquista, da supremacia, da imposição? Quando os mundos colidem, há um rio de deuses e um oceano de verdades. A verdade... a verdade... a verdade é que o mundo é um só e é de todos. Como podemos conviver, então? Impondo? Ajoelhando? Em última análise, qual a necessidade da fé e o seu contributo em todo o processo? Para crentes ou não crentes, creio, Silêncio é um cântico de urgente pertinência.

O elenco é inteiramente extraordinário, dos nomes já mencionados ao suculento e hilariante inquisidor Inoue de Issei Ogata e ao eterno judas de Yôsuke Kubozuka, tão pronto a pecar e por isso mesmo tão humano. A fotografia de Rodrigo Prieto pinta-nos telas de inebriante beleza, em enquadramentos estudados. Às vezes, a violência gráfica é inevitável e o seu impacto acautelado. Dante Ferretti incorpora a viagem no tempo, por meio das suas verosímeis construções, entre a paisagem húmida e verdejante. E Thelma Schoonmaker demora-nos num ritmo pausado e meditativo, por um sempre brilhante trabalho de montagem. Scorsese despe-se de si próprio (de eventuais trejeitos ou imagens de marca, de esperados jogos de câmera) e encontra, meticulosamente, o melhor movimento, a melhor perspectiva e a melhor influência para contar a sua história. Mas quando é que assim não foi? As suas maiores imagens de marca são a qualidade, a sobriedade e a consistência. Silêncio é, pois, mais um Scorsese em plena forma e mestria. E isto é dizer tanto, sobre um dos maiores cineastas vivos.

quinta-feira, 16 de novembro de 2017

OLIVER! (1968)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM

Título Original: Oliver!
Realização: Carol Reed
Principais Actores: Ron Moody, Shani Wallis, Oliver Reed, Harry Secombe, Mark Lester, Jack Wild, Hugh Griffith, Joseph O'Conor, Peggy Mount, Leonard Rossiter, Hylda Baker, Kenneth Cranham, Megs Jenkins 

Crítica:

A FANFARRA DAS RUAS 

The living proof that crime can pay!

Oliver Twist, o clássico literário de Charles Dickens, teve e continuará a ter adaptações cinematográficas para todos os gostos, sejam elas anteriores ou posteriores a este magnífico Oliver!, de Carol Reed. Não só as versões se multiplicam como as influências e referências nos mais variados filmes e séries e até na cultura mundial, em geral. Cingindo-me ao cinema mais recente e só para citar alguns exemplos, Polanski teve a sua versão em 2005, Scorsese foi lá beber inspiração em 2012 para o seu excelso Hugo e Joe Wright em 2015 para o seu bem-intencionado Pan. 1968 foi, sem dúvida, um ano de grandes filmes - foi o ano de Aconteceu no Oeste, de Planeta dos Macacos e de, sobre todos, 2001: Odisseia no Espaço. Este Oliver!, de 68, rapidamente atingiu a graça popular e o sucesso da crítica. É a minha versão preferida e a que me ocorre, sempre que se fala em Oliver Twist. E não é por acaso.

A denominada era de ouro dos musicais terá atingido o seu auge com o genial Serenata à Chuva, de Gene Kelly, em 1952 - na minha opinião, o musical por excelência e uma das maiores obras-primas da História do Cinema. Ainda assim, julgo que cada década dá o seu precioso contributo para o género e os anos sessenta do século XX não foram excepção. Tiveram West Side Story, tiveram Os Guarda-Chuvas de Cherburgo, na nouvelle vague. E tiveram outros musicais incríveis e por demais  espirituosos, plenos de magia ou sentimentalismo - como Mary Poppins de 64 e Música no Coração de 65. Oliver! pertence, inequivocamente, à família destes últimos, daqueles que reconfortam o coração e apaixonam gerações, da mais tenra idade aos mais velhos. Por mais detractores de musicais que possam existir, jamais poderão rivalizar com a qualidade retumbante de uma produção tão sólida como a deste filme de Reed.

Oliver! parte com a ligeireza de uma fanfarra pelas ruas de Londres, entre rufos e tambores, à qual depressa se juntam talhantes, lavadeiras, peixeiras e moços de frete, floristas e limpa-chaminés. Às tantas, gira o carousel e instala-se uma autêntica feira popular, cheia de dança, vida e cor. O retrato de um tempo por entre um desfile esmerado, excepcionalmente bem coreografado (Onna White), de vestes variadas e acessórios enriquecedores (Phyllis Dalton), por entre ruelas impecavelmente construídas (extraordinária produção artística de John Box, Terence Marsh, Vernon Dixon e Ken Muggleston): a populaça, entre o comércio efervescente, os miseráveis e os finórios e as maravilhas da Revolução Industrial. A cena maior desta fervorosa criação é, claro, a crescente arruaça ao som da alegre, sonante e por demais contagiante Consider Yourself. A música, como a imundície, brota a cada instante, desde os corais mais enérgicos como Who Will Buy? ou Oom-Pah Pah aos solos mais tocantes e introspectivos como Where is Love ou As Long As He Needs Me. Os temas de Lionel Bart (aqui sob a condução de Johnny Green), como o filme, impõem-se eternos. Assim como a assombrosa interpretação de Ron Moody como o caricato Fagin, à frente de números e canções absolutamente memoráveis como You've Got to Pick a Pocket Or Two ou Reviewing the Situation. A cena final de Fagin e do Trapaceiro Astuto (talentosíssimo Jack Wild) é, provavelmente, uma das mais belas cenas de saída de personagens de que há memória.

Há tempo e espaço para o humor, para a maravilha e para a lágrima. Oliver! romanceia mas também é franco quando tem que ser, sem pudores de super-proteger o seu público infantil. Não esconde a violência, a dureza e a crueldade das situações e das pessoas. Há os maus e os bons, os maus que são mesmo maus (como o Bill Sikes de Oliver Reed ou o Sr. Bumble de Harry Secombe), os maus que agem mal mas que se revelam bons (como o bull terrier de Sikes), os maus que são bons sem nunca deixarem de ser maus, como Fagin, e os bons que agem mal mas que se revelam sobretudo bons (como a Nancy de Shani Wallis). Mark Lester é bonito, querido e cumpre bem o seu papel do órfão mais conhecido do mundo. Mas o seu Oliver não é mais protagonista do que este fabuloso colectivo de personagens.

Oliver! é, pois, um musical de grandes personagens e de grandes interpretações. Uma história de poderosíssimas emoções, com poderosíssimos temas musicais. Brilha a encenação e sobriedade na arte de filmar. A fotografia é, no cúmulo, um portento visual. Não há como não estarmos perante um grande, grande filme. Não sei como não o vi mais cedo. Este vai ser para fazer bis, uma e outra vez.

Oom-pah-pah! Oom-pah-pah!
That's how it goes...
Oom-pah-pah! Oom-pah-pah! 
Ev'ryone knows!

domingo, 29 de outubro de 2017

PIRATAS DAS CARAÍBAS - A MALDIÇÃO DO PÉROLA NEGRA (2003)

PONTUAÇÃO: BOM

Título Original: Pirates of Caribbean: The Curse of the Black Pearl
Realização: Gore Verbinski
Principais Actores: Johnny Depp, Geoffrey Rush, Keira Knightley, Orlando Bloom, Jonathan Pryce, Kevin McNally, Jack Davenport, Lee Arenberg, Mackenzie Crook, Martin Kleeba, David Bailie 

Crítica:

EM BUSCA DO TESOURO AMALDIÇOADO

This is the day you will always remember
as the day you almost caught Captain Jack Sparrow!

Na viragem para o século XXI, muitos géneros ou sub-géneros cinematográficos estavam dados como mortos. Era o caso do western, do musical, dos épicos ou dos filmes de piratas. Talvez por isso, simbolicamente, os vilões deste revigorante filme de piratas nos surjam amaldiçoados, nem vivos o suficiente para desfrutarem dos prazeres da vida nem mortos quanto baste para descansarem eternamente e deixaram os realmente vivos em paz. Piratas das Caraíbas ressuscita o sub-género regressando à acção e à aventura, mas expandindo a comédia e mergulhando na fantasia e nas infindas potencialidades dos efeitos digitais, enriquecendo um universo mitológico que os parques Disney pelo mundo há muito exploravam e ajudavam a imortalizar.

A saga de piratas, pelo talento criativo de Gore Verbinski e dos argumentistas Ted Elliott e Terry Rossio, assume aqui proporções épicas. O arrojo da produção artística e da fotografia de Dariusz Wolski garantem o festim visual, escapista e encantatório, ao mesmo tempo que a composição de Klaus Badelt (discípulo de Hans Zimmer, que virá a assumir o cargo nos capítulos sequentes), em sintonia com as mais hilariantes - e milaborantes - sequências de acção, empolgam o espectador e fazem-no vibrar: em cada escape, em cada tiroteio, em cada duelo de espadas. Puro entretenimento, engenhoso nas coreografias, sempre pontuado pelo cómico, seja ele de situação, de linguagem ou de personagem. Por falar em personagens, que criação!, a do talentosíssimo Johnny Depp, o seu Jack Sparrow - perdão: Capitão Jack Sparrow: pleno de trejeitos efeminados, dominado pelo álcool ou pelos seus efeitos delirantes, pleno de suor e de non sense, tão ridículo mas simultaneamente tão inteiro na sua entrega e composição, tão único e tão distinto, tão apaixonante. Cada acessório do seu guarda-roupa, uma janela para o passado, que desconhecemos mas adoraríamos conhecer. Daí as sequelas e a trilogia, de igual forma motivadas pelo retumbante sucesso de bilheteira deste primeiro tomo. Geoffrey Rush entrega um Capitão Barbossa absolutamente incrível, que não só encarna a vilania como rivaliza no charme entre os mais temíveis dos sete mares. Keira Knightley e Orlando Bloom são o par romântico - embora nunca se excedam nas interpretações, destilam o seu carisma funcional e são competentes. Jonathan Price e Jack Davenport, do lado dos oficiais britânicos, e Lee Arenberg e Mackenzie Crook, do lado dos mais tresloucados corsários, compõem o quadro de prestações secundárias, enriquecendo o todo.

Sempre que se deixa a terra firme (e as brilhantes e inesquecíveis sequências em Port Royal, Tortuga ou nas ilhas desertas) e se parte para o alto-mar, A Maldição do Pérola Negra descaracteriza-se do cânone do tradicional filme de piratas e revela, porventura, a verdadeira identidade da saga Piratas das Caraíbas. À carga chegam-nos os efeitos especiais, munidos de algum exibicionismo de algum despropósito fantástico, que certamente atraem o seu público, mas que nem sempre servem a narrativa. Ainda assim, mostram-se geralmente refreados, no peso recomendado, na medida certa. Contra ventos e marés, por mais voltas e reviravoltas com que a história nos brinde, o risco acaba por compensar: o navio não afunda, os cofres da produtora e dos envolvidos recheiam-se de ouro e Piratas das Caraíbas triunfa mundialmente, conquistando os espectadores, impulsionando as carreiras de Knightley e Bloom e catapultando, decisivamente, Depp para o absoluto estrelato e o seu Sparrow para o panteão das mais célebres e imortais personagens da História do Cinema.

Assim é Piratas das Caraíbas - A Maldição do Pérola Negra: completamente alucinado, ligeiro e descomprometido e, sobretudo, bastante divertido. É o raio de uma viagem. Tendo honrado o legado de uma geração, definiu o imaginário de outra. Impôs-se, definitivamente, como a referência do sub-género dos filmes de piratas. E esse é um feito e pêras.

Yo, ho, yo, ho! A pirate's life for me...


segunda-feira, 23 de outubro de 2017

À PROCURA DA TERRA DO NUNCA (2004)

PONTUAÇÃO: BOM
Título Original: Finding Neverland
Realização: Marc Forster

Principais Actores: Johnny Depp, Kate Winslet, Freddie Highmore, Radha Mitchell, Julie Christie, Dustin Hoffman, Joe Prospero, Kate Maberly, Kelly MacDonald, Paul Whitehorse, Toby Jones, Mackenzie Crook, Eileen Essell, Luke Spill


Crítica:

A MAGIA DE ACREDITAR
Just believe.

Em À Procura da Terra do Nunca encontramos aquilo que, entre a gíria da crítica facilmente apelidamos de o típico filme Miramax. A expressão, ainda que munida de alguma intenção depreciativa, tem o seu fundo de verdade. Às tantas na década de 90 e na década seguinte, a produtora dos irmãos Weinstein apoiou ou trouxe à ribalta variadíssimos títulos 
estrelados por nomes seguros e dirigidos por realizadores competentes, títulos redondos na forma e no tom, distantes de qualquer linha independente, tecnicamente bonitinhos, com todo o primor que o diminutivo adianta e com toda a previsibilidade com que as mais emblemáticas premiações do meio deliram. São os chamados filmes para Oscars, numa dinâmica repetidamente testada e geralmente bem sucedida; para não falar da provável e poderosa influência do estúdio entre os votantes, mas cessemos por aqui a conspiração. Entre filmes deste género encontramos os de Hallström, As Regras da Casa e Chocolate. Tão-pouco Chicago ou Dúvida arriscam por aí além. São todos bons filmes, mas nunca formalmente extraordinários. 

No outro extremo, a Miramax foi responsável por títulos arrojadíssimos (Gangs de Nova Iorque, O Aviador ou Haverá Sangue), outros mais arriscados (Pulp Fiction, Kill Bill, Gerry), outros dotados de uma sensibilidade artística incrível (como O Piano, As Horas ou Cold Mountain). O estúdio deu ainda suporte e grande visibilidade a produtos não americanos e inequivocamente geniais como Herói, Cidade de Deus ou O Fabuloso Destino de Amélie. Feitos o balanço e o saldo, dificilmente me encontraria entre aqueles que repudiam as propostas do estúdio só pelo nome. Apesar de inteiramente digno, À Procura da Terra do Nunca é, sim, um desses filmes bonitinhos e inofensivos, que apelam à lágrima.

Eis, pois, um biopic fabuloso e claramente bem escrito (Allan Knee, a partir da peça homónima) sobre o autor de Peter Pan e as circunstâncias que terão levado à criação do seu emblemático e inspirador universo. Criativo q.b. na abordagem - na forma plástica e primária como propõe o cenário imaginário, mostra-se fiel ao espírito e aos valores temáticos: a infância, a inocência, a brincadeira. A direcção artística e o guarda-roupa asseguram o requinte visual. A fotografia de Roberto Schaefer garante a sobriedade das cores e dos enquadramentos, nunca constituindo, propriamente, planos inesquecíveis ou passagens marcantes, mas o que faz, faz bem. Dificilmente um filme Miramax teria pontuação negativa em categorias destas. Marc Forster, no seu perfil tarefeiro e nunca especialmente inspirado ou magistral, conduz os destinos da proposta a porto seguro.

A composição musical de Jan A. P. Kaczmarek é em tudo maravilhosa (ganhou o Óscar!) e a variação do tema principal em piano, com que o filme encerra, é a mais perfeita prova disso. É pela música, também e tanto, que o filme aflora como uma delícia subtil e delicada sobre as forças de imaginar... e de acreditar. Pela surpreendente sinceridade interpretativa de Freddie Highmore e pelo desarmante underacting de Johnny Depp - igualmente inesperado dado que dele esperamos as maiores excentricidades - À Procura revela-se absolutamente comovedor. O elenco é todo ele intocável, desde a sempre brilhante Kate Winslet ao bem-humorado Dustin Hoffman, de Julie Christie a Radha Mitchell, do Peter Pan de Kelly MacDonald à voz fofinha do pequeno Michael (Luke Spill).

Hoje, passados alguns anos da estreia do filme, já poucos se lembram daquele que em 2004 obteve sete nomeações para os Óscares, tendo inclusive sido nomeado para melhor filme. Acontece. Mas que chegou à ribalta das estatuetas chegou. Por mérito próprio, por poder ou influência, é sempre difícil, nestes filmes Miramax, perceber ao certo e é difícil alhearmo-nos da questão. Tem uma crítica ao filme o direito de se deixar influenciar por esses factores externos ao objecto artístico em si? Mas onde começam os interesses artísticos e os da indústria, na manifestação que o filme representa e é? A questão acender-nos-ia a discussão por páginas e páginas. 

À Procura da Terra do Nunca aquece-nos o coração, mas não a mente. Julgo que não há nenhum mal nisso. A mensagem just believe serve, pelos vistos, para todos: para os senhores do dinheiro e para os artistas, para os sonhadores. Esteja sempre o dinheiro ao serviço dos sonhos.

sexta-feira, 13 de outubro de 2017

HARRY POTTER E OS TALISMÃS DA MORTE: PARTE 2 (2011)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM

Título Original: Harry Potter and the Deathly Hallows: Part 2
Realização: David Yates
Principais Actores: Daniel Radcliffe, Rupert Grint, Emma Watson, Michael Gambon, Ralph Fiennes, Alan Rickman, Maggie Smith, Helena Bonham Carter, Jason Isaacs, John Hurt, Kelly Mcdonald, Helen McCrory, Matthew Lewis, Bonnie Wright, Julie Walters, Robbie Coltrane

Crítica:

A BATALHA FINAL

Words are (...) our most inexhaustible source of magic.

E tudo culmina aqui: Hogwarts é, como não podia deixar de ser, o derradeiro refúgio de Harry Potter, o palco do confronto final - e decisivo - entre as forças do Bem e do Mal. Os Talismãs da Morte: Parte 2 não desilude: é um espectáculo visual sem antecedentes na série, verdadeiramente épico e colossal, e um clímax de emoções operático, onde as personagens se superam e dão o tudo por tudo em nome da amizade e da bondade. Afinal, it is the quality of ones convictions that determines success, not the number of followers, como diz às tantas o professor Lupin. E não deixa de ser uma moral comovedora e, no fim de contas, encorajadora: a união de poucos, quando genuína e bem-intencionada, pode derrotar exércitos de egos. Se o mundo compensasse sempre aqueles que amam, viveríamos certamente num mundo melhor, num mundo ideal. Esta é a mensagem, a potência e a beleza da fantasia.

Os cenários de Stuart Craig, designer de produção, e da restante equipa de decoração revelam-se, uma última vez, ao mais alto nível: das profundezas do banco Gringotts à fartura de adereços da Sala das Necessidades, dos destroços do velho castelo, ainda em chamas, à plataforma 9 3/4 da Estação de King's Cross. Sempre aliados às infindas possibilidades dos efeitos digitais, que tanto mais do que raios reluzentes e pirotecnia criaram. Possibilitaram aranhas, trolls, dragões, cidades e um mundo.

Alexander Desplat entrega toda a sua sensibilidade na concretização de partituras e arranjos notáveis, que catapultam a saga para uma seriedade bem-vinda. Assistimos a um filme sério - sentimo-lo desde o primeiro frame, como aliás já nos tinha prevenido a parte primeira, igualmente bela e deslumbrante pela arte visual de Eduardo Serra. Com a melhor equipa, David Yates só poderia, uma vez mais, ter todas as condições para brilhar. E tudo brilha, tudo está certo. O tom e o peso da despedida está lá, nos sons e nos silêncios, em cada quadro. Como se tudo estivesse condenado e prestes a desaparecer para sempre. Essa sensação, sendo omnipresente e esmagadora, tende a vergar-nos e obter a nossa reverência. E a nossa admiração. Que bom, que uma tão apaixonante saga acaba em crescendo e, tecnica e qualitativamente, tão bem.

Cada golpe contra a fortaleza, cada pedra que cai e se quebra é um duro golpe no nosso próprio coração. Hogwarts é a casa de Harry e é a nossa casa, que lutamos por defender a todo o custo. Destruir Hogwarts é atentar contra a memória dos que a defenderam ao longo de séculos, é pôr em risco a formação do futuro, é destruir um símbolo. Ali, de varinhas ao alto, ferem-se o corpo e a alma. Morre, definitivamente, a inocência. O universo de J. K. Rowling, que começou num conto infanto-juvenil, assume-se, enfim e inequívocamente, dotado de um espírito ambicioso, complexo e por demais adulto.

Em busca da destruição dos últimos horcruxes, desvendam-se mais segredos. Cada pedaço de alma de Tom Riddle, aprisionado num objecto mágico, encerra uma história mal-contada, atraindo o espectador para mais detalhes. Detalhes que parecem nunca mais acabar. Basta estar com atenção. Depois, os talismãs, outros que tais, amuletos que se ramificam com o passado, com nomes, com outras tantas histórias interligadas. Ficamos a saber mais sobre Dumbledore e as suas motivações, ficamos a saber mais sobre Harry e Voldemort e as suas conexões, ficamos a saber mais sobre Snape e a sua riqueza enquanto personagem, plena de carácter, camuflada por aparências e julgamentos. Apaixonamo-nos, definitivamente, por Snape. Que twist, não há como não ficar a adorar a criação de Rowling e, talvez ainda mais, a memorável e eterna interpretação de Alan Rickman. Do saudoso Alan Rickman. Vibramos, mais do que nunca, com a lealdade e o íntimo protector da professora McGonagall (Maggie Smith), assim como acontece com a Sra. Weasley (Julie Walters). Emocionamo-nos e aplaudimos a coragem de Neville Longbottom (Matthew Lewis), desde os primeiros filmes gozado ou dado como cobarde ou sem valor. Até que absolvemos Draco Malfoy (Tom Felton), clara que está a sua fraqueza de espírito.

Nos últimos momentos, lembramo-nos das alegrias que Hogwarts nos proporcionou e temos pena... pena que a saga esteja a instantes de acabar, ainda que possa, mereça e deva ser revisitada sempre, tantas vezes quantas desejarmos. Quando o tema principal irrompe e o ecrã desvanece a negro, suspiramos de tranquilidade. Saimos do filme com o coração cheio. Refletimos sobre as palavras de Dumbledore e encontramos nelas a voz de J. K Rowling. As palavras fizeram magia - é esse o poder da literatura. No cinema, a magia faz-se pelas palavras, pelas imagens em movimento, pelos sons, pela música. É uma combinação de artes. Daí ser uma arte tão completa, porque resulta da fusão de tantas. A magia aconteceu diante dos nossos olhos, no ecrã. Acompanha-nos agora nas nossas melhores recordações. Mas não é por isso, parafraseando Dumbledore, que a magia não existe, que a magia não é real. E esta certeza, um tanto ou quanto poética, serve-me de consolação. Ainda assim, pondo a poesia de parte, vejo magia a acontecer todos os dias. Basta-me abrir os olhos.


HARRY POTTER E OS TALISMÃS DA MORTE: PARTE 1 (2010)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM

Título Original: Harry Potter and the Deathly Hallows: Part 1
Realização: David Yates
Principais Actores: Daniel Radcliffe, Rupert Grint, Emma Watson, Imelda Staunton, Helena Bonham Carter, Alan Rickman, Ralph Fiennes, Bill Nighy, Jason Isaacs, Timothy Spall, Brendan Gleeson, Domhnall Gleeson, Rhys Ifans, Toby Jones

Crítica:

PELA PAISAGEM DESOLADORA

You can't fight this war on your own, Mr. Potter... he's too strong.

Mais do que uma opção comercial, penso que dividir o sétimo livro da saga Harry Potter em dois filmes fez e faz todo o sentido. A franquia merecia um final épico e aprofundado - digno do riquíssimo imaginário criado por J. K. Rowling - contado sem atropelos, com todo o tempo que a história precisa para nos emocionar, para nos fazer arrepiar, rir e chorar e sobretudo torcer pelos nossos heróis ou vilões preferidos. Afinal, foram dez anos de tantas aventuras e desventuras, sustos e perdas e de... tantas esperas. Uma geração cresceu com o pequeno feiticeiro da cicatriz, o rapaz que sobreviveu, à medida que cada tomo lhe enegrecia o caminho. Depois do desmazelo que foi O Príncipe Misterioso, é reconfortante constatar que Harry Potter volta à melhor forma. O nível sobe e sobe muito. Esta primeira parte d'Os Talismãs da Morte não é senão o melhor filme da saga desde O Prisioneiro de Azkaban: cinema em estado puro, desta feita na forma de um incessante, aterrorizante e asfixiante road movie, que nos faz temer o pior a cada instante.

Se disse cobras e lagartos de David Yates na crítica ao filme anterior, a meu ver justamente, há que dizer o melhor no que respeita à sua realização, agora. Inspiradíssimo, revela-se mestre da câmera numa encenação cuidada, estudada e multifacetada na condução das emoções, sejam elas de que natureza forem. Dos close-ups aos planos mais abertos, dos travellings por entre as árvores, a alta velocidade, aos slow motions mais oportunos... a sua linguagem cinematográfica revela-se de uma segurança e atinge uma maturidade inequívocas. Para muito contribui, é certo, o denso e tão bem adaptado argumento de Steve Kloves, rico em pormenores mas lento em expô-los ou em dissecá-los. Diria que o faz lentamente para preservar todo o sabor da história, como aquelas carnes que assam durante longas horas a baixa temperatura. Resultado: desfazem-se na boca. Talvez pela comparação gastronómica se entenda perfeitamente o quão suculento é saborear esta deliciosa experiência cinematográfica.

As cenas memoráveis são inúmeras: desde a abertura pelos céus de Londres, em plena fuga e adrenalina máxima ao inesperado ataque à tenda de casamento do Bill Weasley, da poção polisuco pelos corredores do Ministério da Magia à belíssima animação dos Talismãs da Morte, na pitoresca casa do pai de Luna, do atordoante confronto de varinhas na mansão dos Malfoy à introspectiva fuga pela floresta, que domina toda a segunda metade da viagem, em que os protagonistas se encontram consigo próprios, com o silêncio e com a solidão, enquanto o mundo de mágicos e muggles desaba, depreendemos, perante a maligna ameaça de Lorde Voldemort. Ralph Fiennes é, a propósito, absolutamente assombroso na sua performance; por mais que a caracterização o ajude a personificar as trevas - fisicamente causa calafrios - é pela alma e espírito que impregna toda sua dimensão, toda a sua amplitude. É, certamente, um dos grandes vilões da História do Cinema.

Em busca dos horcruxes, os perigos são mais letais do que nunca. As personagens desaparecem, ferem-se, são torturadas, morrem. O mundo encantado há muito que deu lugar a uma demanda terrífica. O tom é sério e a fantasia é levada a sério. Por isso, dói-nos tanto e tão verdadeiramente quando a tragédia se desfere na mais inocente, querida e heróica criatura, ainda que digital, ainda que de tão lá para trás. Marcou-nos pela sua graça e agora leva-nos o coração às lágrimas. O final é desolador, como desoladora é a paisagem e desoladoras são as circunstâncias que nos apertam o peito, do início ao fim. Dumbledore também tinha merecido uma despedida assim, mas assim não foi. O espírito de Dumbledore permanece e a sua herança mostra-se decisiva para o desenlace.

Eduardo Serra capta essa natureza despida, inóspita, quase deserta, quase morta, com que se espelham as angústias e os medos de Harry, Ron e Hermione. A beleza do quadro é silenciadora, quase tumular. Como se essa viagem dos três - pelo mundo exterior, longe de Hogwarts - fizesse parte de um ritual obrigatório de crescimento e de maturação, quem sabe se preparatório ou decisivo para o que há-de vir. Brilhante trabalho de fotografia.

Alexandre Desplat assume a composição e a orquestração musical; se, por um lado, se distancia igualmente das partituras de John Williams, como o fizera pessimamente Nicholas Hooper no capítulo anterior, por outro jamais os seus temas destoam da proposta de Yates. Pelo contrário, sublimam-na, ao serviço da narrativa e do sentimento.

Por tudo isto, a primeira parte d'Os Talimãs da Morte é um filme, a todos os níveis, magistral. De uma profunda dimensão interior, humana e despojada de artifícios como nunca nenhum Harry Potter tinha sido antes. A ponte perfeita para a conclusão da saga, que se espera novamente plena em pirotecnia e em espetáculo. Se a parte última tratar tão bem o sentimento, as personagens e a história quanto esta primeira, o final será nada menos do que operático e triunfal.

quinta-feira, 12 de outubro de 2017

HARRY POTTER E O PRÍNCIPE MISTERIOSO (2009)

PONTUAÇÃO: RAZOÁVEL
Título Original: Harry Potter and the Half-Blood Prince
Realização: David Yates
Principais Actores: Daniel Radcliffe, Rupert Grint, Emma Watson, Michael Gambon, Jim Broadbent, Helena Bonham Carter, Alan Rickman, Tom Felton, Julie Walters, Bonnie Wright, Evanna Lynch, Maggie Smith

Crítica:

O MISTÉRIO CINZENTO

This is beyond anything I imagine.

O Príncipe Misterioso é, facilmente, o capítulo mais decepcionante de toda a saga. Harry Potter sempre teve os seus mistérios intricados, o suspense crescia por meio de pistas e, no final, tudo acabava por fazer sentido. Mas a forma como a história era contada preocupava o espectador, envolvia-o, cativava-o para a investigação de forma activa. Ao sexto filme, o espectador é como que ignorado. A acção atropela-se de episódio em episódio, sem maturar os sinais, sem estabelecer ligações sólidas. A adaptação flui à deriva, desinteressante. Como se bastasse chegar ao ponto Y sem se esboçar como lá se chegou e porque lá se chegou. Sim, O Príncipe Misterioso é o mais esquecível de todos os filmes Harry Potter.

Nicholas Hooper distancia-se em demasia das sonoridades originais e o filme perde identidade. A música jamais se alia ao poder emocional das interpretações dos actores, despotenciando as cenas e lesando, irreversivelmente, o produto final. Tão-pouco a encenação é estudada, procurando arquitectar momentos icónicos ou minimamente marcantes. A linguagem é banal, como se se realizasse um episódio de uma série televisiva de terceira categoria, mas com um grande orçamento. Há pouco cinema, neste pedaço, e não esperaríamos isto de uma saga com o estrondoso impacto simbólico e cultural que Harry Potter alcançou, dentro e fora do circuito cinematográfico. Ainda para mais no ponto escaldante em que A Ordem da Fénix nos deixou; curiosamente, pelas mãos do mesmo realizador. Aqui tudo arrefece e os fait divers amorosos (que também constam do livro, é certo) ganham protagonismo sobre a história central e transversal aos vários filmes. Este desequilíbrio é um erro. E depois, sendo que todo este filme deveria preparar-nos para o seu trágico desfecho - para o adeus de uma das personagens mais queridas e importantes deste fantástico universo - O Príncipe Misterioso falha em apostar no elo entre o protagonista e o mártir, ausentando este último da maior parte da acção.

Bruno Delbonnel, criativo diretor de fotografia, pinta aqui um dos seus mais pobres trabalhos artísticos, caindo no facilitismo da saturação cromática, dos filtros e de um cinzentismo atroz, que suja e ofusca o eventual esplendor do design de produção e da mise en scène. O melhor do filme são mesmo os actores: Daniel Radcliffe, Rupert Grint e Emma Watson dão cada vez mais de si, conferindo profundidade às suas personagens. Michael Gambon conquista o seu lugar enquanto Albus Dumbledore e Jim Broadbent é um memorável Horace Slughorn, como aliás já são, por tradição, todas as adições ao elenco ditas secundárias.

Após uma continuação tão desconexa, resta a esperança de que a saga não esteja nas mãos erradas... e condenada a um clímax inglório.


HARRY POTTER E A ORDEM DA FÉNIX (2007)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM

Título Original: Harry Potter and the Order of the Phoenix
Realização: David Yates
Principais Actores: Daniel Radcliffe, Rupert Grint, Emma Watson, Imelda Staunton, Michael Gambon, Helena Bonham Carter, Alan Rickman, Emma Thompson, Tom Felton, Julie Walters, Gary Oldman, Ralph Fiennes

Crítica:

A REBELIÃO SECRETA

Every great wizard in history has started out as nothing more
than we are now - students. If they can do it, why not us?

Lançados os primeiros quatro filmes, eis-nos chegados, exactamente, a meio da saga do jovem feiticeiro mais conhecido - e mais amado - em todo o mundo: Harry Potter. A Ordem da Fénix marca a chegada de David Yates à realização (e, de certa forma, à sétima arte, uma vez que o seu passado atrás das câmeras se fizera, até então e praticamente, na televisão). Ao mesmo tempo que se recupera o espírito dos primeiros tomos (a abertura no final do verão londrino, entre a execrável família muggle e as incontroláveis e proibidas práticas mágicas, seguido das aventuras e desventuras ao longo do ano lectivo em Hogwarts, sempre com novidades pouco fiáveis entre os professores), este novo filme faz o necessário ponto de situação, invocando memórias passadas, convocando personagens anteriores e introduzindo, inclusive, flashbacks. Assim prepara a assombrosa e tão aguardada recta final da demanda, que até ao oitavo filme manterá sempre a assinatura de Yates. Agora que Voldemort regressou, sabemo-lo desde o trágico desfecho d'O Cálice de Fogo, o perigo não só espreita a cada esquina como se adensa e se prontifica a ferir e a matar, sem piedade, quando menos se espera.

Com Yates, a saga ganha uma aura mais contemporânea. Vem a fotografia de Slawonir Idziak, com o seu inesperado grão, maculando a limpidez da imagem, e uma iluminação soturna, tão omnipresente, opressiva e sufocante, tal e qual o conflito interior na mente e espírito do protagonista, ameaçado por sonhos, visões e trevas. Nicholas Hooper entrega composições magistrais, plenas de sensibilidade e bom gosto, ao serviço da comédia, da acção ou dos momentos mais horripilantes, tornando as mais variadas sequências por demais vívidas e entusiasmantes. É o caso, por exemplo, do assalto pirotécnico dos gémeos Weasley ao exame da inquisidora de Hogwarts (cuja sonoridade potencia o comic relief, aliada ao espectáculo visual, muito ao jeito dos fogos-de-artifício de Gandalf, no acto inicial d'A Irmandade do Anel) ou do último acto entre os corredores do Departamento de Mistérios e as intermináveis e copiosas estantes de profecias, entre a opressão dos Devoradores da Morte e a defesa dos Aurores, entre o confronto do Senhor das Trevas e do luminoso Albus Dumbledore. A maravilha e o esplendor visual, o estímulo e o arrepio sonoro... feitos potencialmente mágicos para a experiência que é viver a fantasia em frente a um ecrã, absolutamente transportado e absorto nela.

A adaptação do livro terá cortado, certamente, muitos momentos deliciosos e ricos em pormenor. Não obstante, A Ordem da Fénix chega-nos como um capítulo coeso, pleno de ritmo e de essência narrativa. A história flui, alicerçada por personagens de peso, interpretadas por escolhas de casting ao mais alto nível. A destacar a brilhante Imelda Staunton, tão hilariante e cor-de-rosa como dissimulada, odiosa e assustadoramente sádica. Os restantes nomes continuam as suas construções de filme para filme e, todos sem excepção, são tão memoráveis: Alan Rickman e o seu sempre misterioso e charmoso Snape (neste filme começamos, finalmente, a descortinar o seu passado), Emma Thompson e a sua adorável e míope professora de adivinhação, Michael Gambon e o seu aqui mais distante Dumbledore (na graça do espectador, em eterna luta com a memória do saudoso Richard Harris dos dois primeiros filmes) e tantos outros. Aqui é introduzida ainda a caricata bruxa Bellatrix Lestrange, de Helena Bonham Carter. Por mil cobras e aranhas, que elenco de luxo. Não esqueçamos o trio principal: não mais crianças, Daniel Radcliffe, Rupert Grint e Emma Watson cresceram com uma geração. E que estupendos actores se fizeram, a avaliar pelas personagens que, notavelmente, trabalharam e aprimoraram, ao sabor da escrita de J. K. Rowling.

Com A Ordem de Fénix, as peças brancas do tabuleiro movimentam-se, na sombra e na clandestinidade, ganhando alento e crescendo em número e estratégia. O Mal terá combate à altura, antevemos. E cada vez mais vibramos com a série, com um mundo que tão sedutoramente nos encanta e fascina. O feitiço está lançado e, a avaliar pelo que aqui assistimos, promete.

sábado, 5 de agosto de 2017

MAMMA MIA! (2008)

PONTUAÇÃO: BOM
Título Original: Mamma Mia!
Realização: Phyllida Lloyd
Principais Actores: Meryl Streep, Amanda Seyfried, Stellan Skarsgård, Pierce Brosnan, Colin Firth, Julie Walters, Christine Baranski, Dominic Cooper, Myra McFadyen, Niall Buggy

Crítica:


You can dance, you can jive, having the time of your life...

A ILHA DE AFRODITE 

See that girl, watch that scene, diggin' the dancing queen!

Leve, descontraído, descomplexado, despretensioso e, por isso mesmo, absolutamente irresistível. Assim é Mamma Mia! A cada cena, uma explosão de frescura, de jovialidade. As eternas canções dos ABBA, numa musicalidade orelhuda, nostálgica e contagiante, envolvem-nos e levam-nos, transportam-nos, alheam-nos da nossa realidade. Viajamos para o azul do mar, para a verdejante e solarenga costa grega. Batemos o pé, entregamo-nos ao riso e queremos lá saber do resto. Estamos a divertir-nos, a divertir-nos genuinamente, como poucas vezes a ver um filme. Às tantas, damos por nós a cantar e a cantar - já conhecemos os temas, fazem parte da nossa vida. Se ainda não fazem, será uma questão de instantes. Camaleónica, a deusa Meryl Streep surpreende como nunca, depois de tantos papéis inesquecíveis, de tantas personagens arrebatadoras. Sem preconceitos, assim se vê o calibre do qual são feitas, tão-somente, as actrizes maiores. Ela canta, dança, salta, chora, emociona, vibra como uma adolescente, demonstrando que a idade é, verdadeiramente, uma questão de espírito. Gravou The Winner Takes It All, na sua cena mais intensa e comovedora, de uma só vez. Benny Andersson, membro dos mítico grupo sueco, chamou-lhe, por isso, um milagre. Não admira.

O elenco é soberbo. Para além da ímpar protagonista, a hilariante Julie Walters (e quando digo hilariante, é hilariante mesmo; é ver para crer) e a mais lírica mas igualmente estouvada Christine Baranski, formam as Donna and The Dynamos!, as amigas cinquentonas e solteironas. Depois, o trio de hipotéticos pais: Pierce Brosnan, Colin Firth e Stellan Skarsgård, outrora risíveis hippies; quem diria. Não se estreando propriamente, é com Mamma Mia! que Amanda Seyfried é catapultada para as luzes da ribalta, com a sua voz de anjo e os seus tão expressivos olhos. O mesmo para Dominic Cooper, que assim alcançou maior reconhecimento. Todos cantam os seus próprios versos, havendo temas para todos brilharem, para todos terem o seu momento. E isso é imprescindível para a solidez narrativa e para a sua dimensionalidade. Até os figurantes cantam, qual coro, arrancando - não raras vezes - as mais incontidas gargalhadas. A cena mais emocionante, para mim, é aquela (ainda no primeiro acto) em que Donna conquista - à rotina mundana - dezenas de seguidoras (mães e mulheres) pela villa fora até ao cais, lembrando que ainda são capazes, que ainda são jovens, que ainda podem ser felizes. É, para o espectador, um misto de sorriso, arrepio e lágrima sentida. É o próprio exemplo, meta-diegético, de Streep. É, pois, inspiracional.

You are the dancing queen!
Young and sweet
Only seventeen!


Guarda-roupa, cenografia e fotografia aliam-se numa paleta de cores quentes, privilegiando os azúis e os púrpuras ao sol e as mais variadas luzes ao luar. Até o visual é festivo, alegre, contribuindo para a good vibe do filme, ou não se tratasse este do denominado feel good movie. Phyllida Lloyd, adaptando o sucesso da Broadway e despojada de purismos desnecessários, entrega a sua acalorada e tão empática visão cinematográfica com as desejadas simplicidade e eficácia; o tremendo êxito comercial do filme, aliás, fala por si. Fez muito money, money money, pois é puro honey, honey. Mamma Mia! tem o condão de encantar espectadores de todas as gerações e de agradar a toda a família. Sempre enérgico, sempre pulsante. Julgo que só um ser profundamente aborrecido possa odiar, verdadeiramente, este filme. Até os créditos finais são de acompanhar até ao fim. Oh, eu assisti este no cinema. E foi tão bom.

You're a teaser, you turn 'em on
Leave 'em burning and then you're gone
Looking out…


sexta-feira, 4 de agosto de 2017

A PAIXÃO DE SHAKESPEARE (1998)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
Título Original: Shakespeare in Love
Realização: John Madden
Principais Actores: Gwyneth Paltrow, 
Joseph Fiennes, Geoffrey Rush, Judi Dench, Tom Wilkinson, Colin Firth, Imelda Staunton, Ben Affleck, Steve O'Donnell, Tim McMullen, Steven Beard, Jim Carter, Sandra Reinton, Simon Callow, Martin Clunes, Rupert Everett

Crítica:

Who is that?

COMO ROMEU E JULIETA

Nobody. The author.

l don't know. It's a mystery como pode o fruto de tão eloquentes interpretações, tão arrojada produção artística, tão inspirada e bem-disposta fluidez narrativa e tão bela dedicatória ser apenas recordado por factores que lhe são puramente externos - pelos prémios que ganhou a concorrentes seus, mais ou menos memoráveis. Isso sim é injusto, isso sim é redutor. Nenhum filme se torna melhor ou pior pela estatueta que recebeu ou deixou de receber. Compreendo o fenómeno, até posso - em certa medida - rever-me e concordar com ele, mas tendo a desvalorizá-lo... porque A Paixão de Shakespeare é um triunfo absoluto do espírito e da arte. Também o foram A Vida É Bela, A Barreira Invisível e O Resgate do Soldado Ryan, cada um à sua maneira. Foi um ano de grande colheita para o cinema, não restam dúvidas. Mas o mérito de uns não significa o desmérito de outros. Ainda para mais, sendo comédia, A Paixão é logo à partida menosprezada, como se pertencesse a um género inferior; preconceito que seriamente me incomoda. Não há géneros menores. 
Feita, a jeito de introdução, a defesa a que a memória e o tempo tão claramente têm resistido, passemos à crítica ao filme.

A Paixão de Shakespeare propõe a viagem no tempo e a ficcionalização biográfica do poeta e dramaturgo. É, portanto e sobretudo, uma proposta. Uma proposta criativa, baseada tanto em factos como em rumores, como na liberdade poética de quem cria um objecto artístico deste tipo. É uma visão pós-moderna, que transpira - por todos os poros - uma admiração e reverência absolutas às palavras e construções das peças e sonetos, parafraseando muitos dos seus mais icónicos versos e expressões. 
Marc Norman e Tom Stoppard concretizam um argumento admirável. Na sua Paixão ecoam, desde a abertura, referências a Hamlet e a'O Mercador de Veneza e o desfecho alude à génese da Noite de Reis e da Tempestade, sendo que o seu âmago imagina as origens de Romeu e Julieta, reflectindo-a engenhosamente no romance entre o poeta e Viola (magnetica e magnificamente interpretados por Joseph Fiennes e Gwyneth Paltrow), ambos efervescentes nos actos, nas palavras e no amor... Não se propõe Romeu e Julieta a ser senão a peça sobre o amor... love like there has never been in a play. A paixão ardente das palavras e das declamações incendeia cada interpretação, à qual se aliam as sonantes e desfrutáveis composições musicais de Stephen Warbeck, influenciando a cadência da montagem (David Gamble) e o próprio ritmo narrativo. De um certo prisma, A Paixão de Shakespeare tem uma natureza musical - não sendo nunca um musical, a música influencia decisivamente o movimento (a coreografia dos corpos e das câmeras) e a acção (os acontecimentos e o tempo diegético). A música não acompanha, a música é intrínseca a cada cena. Um pouco como aconteceu noutra ficcionalização biográfica de época absolutamente assombrosa e igualmente pontuada pela comicidade: Amadeus; ainda que neste caso o facto do protagonista ser o compositor da própria música confira outra importância e dimensão a cada trecho escutado.

Há cómico de situação (da tortura aos pés de Henslowe, ao bigode de Thomas Kent, aos coitos interrompidos de Rosaline, ao disfarce de ama de Shakespeare, entre tantos outros), de linguagem (rol interminável, pelas mais variáveis bocas: I am the 
money!, the show must... go on!, too late, too late!) e de personagem (desde o clamoroso e agourento vigário ao jovem John Webster, sanguinário e amante de ratos, à própria personagem de Geoffrey Rush, sempre de um lado para o outro, cobrando o seu patronato e assegurando que tudo vai acabar bem, quase numa garantia metadiegética). Há um elenco portentoso, assegurando um talento coletivo preponderante: juntam-se aos já referidos nomes como Tom Wilkinson, Imelda Staunton, Colin Firth, Simon Collow, Martin Clunes e Mark Williams. E claro, Judi Dench como Queen Elizabeth, que em poucos minutos ofusca com o seu carisma e poder interpretativo. E não menos, seguramente, com o seu majestoso guarda-roupa e caracterização - categorias ao mais alto nível nesta obra. Estaremos, aliás e muito provavelmente, perante um dos melhores charriots de Sandy Powell, uma das melhores designers e estilistas da indústria.

Pouco me interessa se foi o melhor do seu ano. Isso vale o que vale. Agora, quantos filmes do género existirão e que poderão rivalizar com ele? Pois é, muitos poucos. Talvez perfaçam, tão-somente, uma mão cheia. Deles, A Paixão de Shakespeare sempre será um dos mais charmosos, cativantes e românticos filmes. Um clássico absoluto, a ver e rever sempre... sempre com o mesmo fascínio e com o mesmo deleite. Com o encanto e a doçura comparáveis... - perdoem-me a imagem, mas é irresistível, até pelo esplendor visual da obra - ao melhor dos cupcakes.

sexta-feira, 12 de maio de 2017

O HOBBIT - A BATALHA DOS CINCO EXÉRCITOS (2014)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
Título Original: The Hobbit: The Battle of the Five Armies
Realização: Peter Jackson
Principais Actores: Martin Freeman, Ian McKellen, Richard Armitage, Luke Evans, Orlando Bloom, Evangeline Lilly, Aidan Turner, Lee Pace, Billy Connolly, Ken Stott, Graham McTavish, William Kircher, Cate Blachett, James Nesbitt, Stephen Fry, Ryan Gage, Benedict Cumberbatch, Ian Holm

Versão Alargada

Crítica:


LÁ E DE VOLTA OUTRA VEZ 

If more people valued home above gold,
this world would be a merrier place.

A Batalha dos Cinco Exércitos começa em chamas - poderoso e apoteótico - onde o capítulo anterior, A Desolação de Smaug, deveria ter terminado. Talvez por isso o ataque do dragão faça as honras de prólogo, onde outrora sempre constaram sequências reveladoras, decorridas no passado da acção principal. Aquele que poderia ter sido um final impressionante é, agora e desde o primeiro instante, uma abertura operática, ultra-emocionante e que, sem sombra de dúvida, alavanca as expectativas de qualquer espectador-viajante ao mais alto nível para aquela que é a derradeira conclusão da aventura épica.

Se o filme anterior deixou o espectador em suspense, este apressa-se a acudi-lo e, ao fim dos primeiros minutos, já o arrasou completamente. Apetece esmurrar a mesa e gritar: que filme tão bom! Ali está Bard, no cimo daquela quebradiça torre do sino, de arco igualmente quebrado, a apoiar a última lança negra no ombro do filho, Bain, ao sabor do improviso e da convicção, na esperança de acertar na falha da armadura de escamas e de, assim, precipitar o destino do monstro. Cruel destino, a hora em que se cumpre o herói - o humano de entre um colectivo de heróis de outras estirpes. Ali está Peter Jackson ao leme, senhor do filme, na sua mais estonteante e arrebatadora forma.

Concluída a desolação e finalizada que está a missão itinerante das personagens, o filme é outro -sendo que o filme ainda está praticamente todo por acontecer. Nas ruínas de Dol Goldur, Gandalf, Saruman, Galadriel e Elrond enfrentam, espetacular e estrondosamente, o Necromante, fechando esse arco narrativo, estabelecendo a ponte para O Senhor dos Anéis. Todas as atenções se viram então para a Montanha Solitária e para as suas imediações, onde se aguardam os confrontos bélicos aos quais o título, oportunamente, alude. Enquanto que, pelos salões de Erebor e para desnorte dos demais anões, Thorin é assolado pela loucura - pelo chamado mal do dragão -, ainda alheio à localização da Arkenstone, uma multidão de sobreviventes de Esgaroth apodera-se de Dale, pretendendo reclamar, a todo o custo, a promessa de Escudo-de-Carvalho. Nada mais têm a perder. O exército de Thranduil, de silenciosos elfos da Floresta Misteriosa, surge, como por magia, com o mesmo interesse e propósito. Não tardarão a escorrer das profundezas da terra as hordas de orcs de Azog - o objectivo é só um: assumir o controlo da Montanha, ou não fosse ela de um posicionamento estratégico a norte, entre o leste e o oeste, nos planos terríveis que o Mal desenha para o futuro. Juntar-se-lhes-ão bandos de morcegos de Gundabad, com milhares de orcs e trolls. Chegará em auxílio de Thorin o primo Dain Pé-de-Ferro (Billy Connolly), montado num javali e à frente de uma legião de bodes guerreiros, montadas inusitadas mas surpreendentemente bem habilitadas para a buçalidade da guerra.

Surgem machados afiados, que rodopiam de mão em mão, dilacerando cabeças à velocidade da graça e do bom humor. Como nos Campos de Pelennor, há proezas físicas delirantes, que nos surpreendem em catadupa. Há trolls manipulados que nem marionetas, orcs que se catapultam sem querer e Bombur a assegurar o riso fácil mas tão delicioso, aos saltos contra tudo e contra todos. Há avanços e recuos das massas, de corpos ou píxeis mais ou menos credíveis. Julgo que, às tantas, o cúmulo de takes artificiosos prejudica os efeitos dramáticos, que se pretendem crescentes, e o factor humano tende a esvair-se. É a nódoa que lhe aponto, unicamente. Depois há uma perseguição à carroça dos anões pelo rio gelado, que na versão alargada resulta numa corrida non-stop absolutamente desenfreada e alucinante. Tornamos à pulsação acelerada. Também nesta versão, o hilariante embora repugnante Alfrid tem um final merecido e à altura. Que caricatura: os seus comic reliefs são irresistíveis, de tão absurdos no meio daquela agitação. O clímax da guerra e da acção dá-se no Monte dos Corvos. Os efeitos digitais estão à disposição, superando-se nas mais inacreditáveis invenções. Lá, o esperado duelo entre Thorin e Azog. O que começou em fogo... termina no gelo.

Há tantos outros momentos inesquecíveis: a Pietà de Galadriel e Gandalf, a despedida entre Bifur e Bilbo no alto da muralha e na véspera da peleja, a chegada de Dain declive abaixo, as lutas de arco e espada entre Legolas, Taurel e Kili frente aos inimigos, aquele minuto em que Gandalf se senta ao lado do hobbit, após a batalha das batalhas e fazendo por acender o seu teimoso cachimbo, em que se mostram incapazes de trocar uma única palavra que seja, mas o silêncio entre eles diz tudo... ou o regresso ao Shire, com o Fundo do Saco invadido pelos mais pespinetas e interesseiros vizinhos. Tudo acaba onde começou. Só assim se poderá proporcionar um novo começo.

Se é um final digno? Absolutamente. É mais do que esperava. Mais é melhor? Talvez menos fosse melhor. A Batalha dos Cinco Exércitos excede-se facilmente. Apesar de ser o filme mais curto da saga, muito teve que ser criado para o sustentar. Ainda assim, não julgo a narrativa, nem a sua duração, jamais as interpretações e os majestosos feitos artísticos, sobre os quais me debrucei nas críticas aos capítulos anteriores (reduzi-los aqui a esta menção de passagem é tremendamente injusto, mereciam parágrafos). Não é a falha que anula a coragem de um objecto como este nem, tão-pouco, os seus tantos méritos. O que temos é tão bom. Valeu a pena a divisão em três filmes. O Hobbit é uma extraordinária tríade da mais alta fantasia.

O Hobbit não atinge a excelência d'O Senhor dos Anéis; a comparação parece inevitável. Mas e daí? Não tinha que superar o insuperável. A história dos épicos é uma história de permanente e esperada superação. O último tem que ser sempre melhor e maior que o anterior... mas porquê esta pressão? Qual a sua real utilidade? O pecado de Jackson foi a indecisão: parecer querer ceder à pressão e tentar superar-se a si próprio e ao mesmo tempo não. Esta pressão, que tantas vezes afunda a expectativa e a experiência dos espectadores, não é só um factor externo ao filme. Também determinou a sua génese, os seus caminhos e, naturalmente, o seu resultado final. Apesar de tudo, que elevado objecto artístico encontramos aqui. Estabelece-se a hexalogia: uma odisseia como poucas, à qual é sempre tão bom voltar. É como visitar a família, a que tanto amamos e prezamos. E com a qual passamos momentos tão agradáveis.


terça-feira, 2 de maio de 2017

O HOBBIT - As Críticas à Trilogia

O HOBBIT - UMA VIAGEM INESPERADA |  AQUI

O HOBBIT - A DESOLAÇÃO DE SMAUG |  AQUI

O HOBBIT - A BATALHA DOS CINCO EXÉRCITOS | AQUI 

sexta-feira, 28 de abril de 2017

INTERSTELLAR (2014)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
★★★★★
Título Original: Interstellar
Principais Actores: Matthew McConaughey, Anne Hathaway, Michael Caine, Jessica Chastain, Casey Affleck, John Lithgow, Wes Bentley, Matt Damon, Ellen Burstyn, David Gyasi, Topher Grace, Bill Irwin, Josh Stewart, William Devane, Leah Cairns, Mackenzie Foy, Timothee Chalamet, David Oyelowo, Collette Wolfe

Crítica:

PARA ALÉM DAS ESTRELAS

Mankind was born on Earth. It was never meant to die here. 

Um ano depois de Cuarón chegar ao espaço, eis chegada a vez de Nolan. Mas se Gravidade proporcionou uma experiência assaz vertiginosa e claustrofóbica assente num feroz realismo e num regrado rigor científico - poder-se-á mesmo dizer que nunca a ficção científica teve, até então, os pés tão assentes na terra - Interstellar está muito mais próximo do cânone do género (nota-se a influência, por exemplo, da incontornável obra-prima de Kubrick 2001: Odisseia no Espaço) desbravando a imensidão e o infinito ao sabor das hipóteses e das especulações: da ficção, portanto. Pode, é certo, partir de teorias reais e de conceitos mais ou menos generalizados e absolutamente queridos a incursões deste tipo: o esgotamento dos recursos naturais da Terra e o cenário apocalíptico, a lei de Murphy, a inteligência artificial, a teoria da relatividade de Einstein e as derivações de Kip Thorne (consultor privilegiado) - a distorção espaco-tempo, ondas gravitacionais, buracos negros, etc. Interstellar cose-os e articula-os numa manta interessantíssima, construindo o suspense e o enigma de forma não só intricada como ultra-estimulante e eficaz, amarrando irreversivelmente o espectador numa missão permanentemente desconhecida - como, aliás, é marca dos Nolan desde Memento, passando por O Terceiro Passo até A Origem. Os twists multiplicam-se pela narrativa, tornando a acção seguinte absolutamente imprevisível. Não obstante, a viagem desemboca de forma rebuscada, no plano da coincidência e num espectro derradeiramente romântico. Para os amantes da ficção científica, esse não é um problema. Talvez o seja para os fanáticos da ciência.

De um filme para o outro, d'A Origem para Interstellar (tendo a pôr de lado a trilogia do Batman, que pertence a um universo muito específico e particular e em tudo menos interessante na sua filmografia, quando comparada aos restantes títulos), Christopher Nolan passa do mais ínfimo microcosmos (o sonho dentro do sonho dentro do sonho, na mente de um indivíduo) para o mais incomensurável macrocosmos (no tudo e nada do espaço aberto), ainda que a aventura cósmica continue alicerçada na ambição e na grandiloquência do argumento e das propostas visuais, com recorrentes brincadeiras com o espaço e com o tempo - como Nolan gosta de esculpi-los, como se fosse um engenheiro divino, qual Chronos. Se antes desdobrava cidades e as elevava nas alturas, agora visita mundos inóspitos, insólitos e surpreendentes ao olho: planetas de água onde ondas gigantes varrem constantemente a superfície, planetas de nuvens congeladas, onde o céu replica o solo e as personagens parecem passear sobre espelhos, ou buracos negros esféricos ou massivos, com extraordinários poderes de atracção e distorção, que poderão levar os astronautas ao futuro num ápice, enquanto no tempo terrestre as personagens deixadas envelhecem, adoecem ou morrem. Uma das cenas mais emocionantes, a propósito, dá-se aquando do regresso de Cooper (fabuloso Matthew McConaughey) à nave, depois da perigosa experiência no planeta aquoso de Miller, onde cada hora equivalem a sete anos na embarcação. Passaram-se, ao todo e sem que desse conta, vinte e três anos. Cooper dirige-se ao monitor para assistir às gravações enviadas da Terra durante esse período e depara-se com o crescimento e evolução da sua família, nos momentos bons e nos momentos maus que, pela distância, jamais acompanhou. Depara-se com a dor da ausência, a dele e a dos seus entes queridos - e essa dor é por demais insuportável. Mas a sua heróica missão, já sabia, teria essas consequências. Só por meio dela poderia tentar salvar o futuro - dos filhos e da humanidade.

Once you're a parent, you're the ghost of your children's future. 

O foco na relação pai-filhos, muito particularmente na relação de pai-filha entre Cooper e Murph (incríveis Mackenzie Foy, Jessica Chastain e Ellen Burstyn) e no amor incondicional e insondável nutrido entre ambos fazem de Interstellar, provavelmente, a obra mais emocionante do realizador, à data, capaz de medir forças com as pretensões intelectuais da narrativa. O último acto, como o de 2001, projecta-nos no futuro, numa quinta dimensão e numa complexa e duvidosa existência. Sentimo-nos como que suspensos num sonho ou num hiper-cubo interminável e pouco palpável, que nem o astronauta, derradeiramente perdidos, à procura de uma explicação apaziguadora, à procura da luz. Rage, rage against the dying of the light, já declamava, misteriosamente, o Professor Brand (Michael Caine, habitué de Nolan), o mesmo que dizia: I'm not afraid of death. I'm an old physicist - I'm afraid of time. É nesses instantes fulcrais, em que se resolvem as hipóteses sobrenaturais levantadas no primeiro acto, que TARS - o robot com fisionomia semelhante à do monólito de Kubrick - intervém sabe-se lá de onde ou quando e afirma ter reunido preciosa informação quântica, capaz de descortinar os segredos do universo. Que desfecho terá Interstellar?, perguntamo-nos. É provável que o final passe e que não compreendamos bem o que assistimos, depreendemos. Talvez o descortinemos melhor em futuras visualizações. Mas sentimo-lo. Sentimos aquele desenlace. As últimas cenas são desconcertantes, profundamente trágicas e, verdadeiramente, de partir o coração. Fica a certeza de que os instantes finais nos apresentam o amor como elemento essencial para a transcendência, como adianta a citação abaixo, às tantas proferida pela Drª Brand (Anne Hathaway). O amor como espinha dorsal das relações humanas, do sentido da vida e do filme. Esta resolução, apesar de romântica e aparentemente facilitista, transpira tudo menos sentimentalismo bacoco. Não deixa de ser curioso que a maior odisseia pelo espaço culmine numa descoberta interior, como que convocando a auto-reflexão do ser humano. Procuramos lá fora, encontramos cá dentro. A fé no amor faz, afinal, mais sentido do que a fé em tudo o resto. Em Interstellar, Deus nem faz parte da equação.

Love is the one thing we're capable of perceiving 
that transcends dimensions of time and space.

Fiel a si próprio, Nolan entrega-nos, uma vez mais, uma ambiciosa e desafiante combinação de entretenimento excitante e de matéria inteligente, mais ou menos explicativa, num produto capaz de suscitar múltiplas interpretações e o mais inesgotável debate filosófico. O arrojo é do pensamento e das ideias, mas também das interpretações do elenco renomado, dos efeitos digitais (que expandem o imaginário e as proporções da direcção artística, detalhista), da possante sonoplastia (que respeita os silêncios e os sussurros, mas também se impõe num crescendo ensurdecedor e ameaçador sempre que necessário) e da mística banda sonora de Hans Zimmer (que potencia a transcendência no culminar da sonoridade religiosa). Todos os elementos se aliam a bem do espectáculo e do clímax apoteótico.

Note-se, contudo, que o trabalho de câmera nunca é especialmente virtuoso - a maior parte dos planos são fixos e a sua composição é relativamente simples. A maioria dos malabarismos no espaço dá-se não pela acção da câmera (que prefere, como disse, ficar estática) mas pelas naves ou outros objectos que rodam ou se movimentam. A simplicidade é uma arte, menos é mais, mas também pode ser um defeito. E no caso de Nolan e de um filme como Interstellar é claro como o cineasta se apoia tão mais nos seus mais variados departamentos técnicos e artísticos, do que na arte de filmar propriamente dita. Creio que o filme poderia ascender ao patamar da excelência caso o realizador brilhasse mais. Assim brilha somente o autor, o autor visionário, o que também não é dizer pouco, ou não fosse Nolan o autor mais comercial do actual panorama cinematográfico norte-americano. Nolan sabe como alimentar uma legião febril de fãs, ávida do seu estilo e das suas histórias, tornando cada filme seu um retumbante êxito de bilheteiras. Quando as ideias dão dinheiro, um cineasta não tem como não estar nas graças dos grandes estúdios. E ter dinheiro para concretizar ideias audaciosas não é tão frequente quanto gostaríamos, pelo que se trata de um círculo vantajoso para todos os envolvidos. Dinheiro à parte, ganham o cinema e os espectadores.

Interstellar é, pois, puro magnetismo. Será certamente - arrisco e aposto dizer -, uma das mais fascinantes ficções científicas deste primeiro quarto de século. O tempo e só o tempo nos trará, ou não, a confirmação. Não obstante, há quem já a tenha - mas sabemos bem: o tempo...  o tempo é relativo.


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CINEROAD ©2020 de Roberto Simões