segunda-feira, 26 de agosto de 2013

LAWRENCE DA ARÁBIA (1962)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
★★★★
Título Original: Lawrence of Arabia
Realização: David Lean
Principais Actores: Peter O'Toole, Omar Sharif, Alec Guinness, Anthony Quinn, Jack Hawkins, José Ferrer, Anthony Quayle, Claude Rains

Crítica:

UM OÁSIS NO DESERTO

- What attracts you personally to the desert?
- It's clean.

Lawrence da Arábia é um feito extraordinário, glorioso e monumental. Por meio de uma poderosíssima narrativa visual e de uma cadência natural para o espectáculo, David Lean presenteia-nos com uma obra essencial, capaz de nos transportar para o fulgor das batalhas, para o suor das travessias e para a escaldante aragem que se faz sentir entre dunas e rochedos, na imponência e majestade do deserto. Uma obra com um argumento recheado de frases memoráveis e que viria a marcar para sempre todo o cânone épico.

There is the railway. And that is the desert. From here until we reach the other side, no water but what we carry with us. For the camels, no water at all. If the camels die, we die. And in twenty days they will start to die.

Do Cairo à conquista de Aqaba, da reunificação das fracções árabes ao confronto maior contra os turcos, da tortura de Deraa ao massacre de Tafas, da crise identitária de um homem à estratégias políticas de vários povos em conflito... o filme adapta a autobiografia Sete Pilares da Sabedoria, de T.E. Lawrence - a poet, a scholar and a mighty warrior (...) also the most shameless exhibitionist since Barnum & Bailey - um excêntrico e erudito oficial inglês que provocaria o exército real no sentido de se libertar daquele escrupuloso modo de vida e que se desafiaria a si próprio numa árdua e ambiciosa odisseia pela liberdade e pela afirmação da cultura árabe.

So long as the Arabs fight tribe against tribe, so long will they be a little people, a silly people - greedy, barbarous, and cruel, as you are.

No Arab loves the desert. We love water and green trees. There is nothing in the desert and no man needs nothing.

Peter O'Tolle é simplesmente magnífico enquanto T.E. Lawrence - sempre dotado de um portentoso charme e elegância, sublime nos trejeitos e subtilezas intrínsecas ao carácter da figura histórica. E se há coisa em que o argumento (Robert Bold e Michael Wilson) é exímio é na construção da personagem de O'Toole, onde tanto se revela na riqueza das entrelinhas e dos pequenos pormenores. É uma personagem com um sentido de humor notável e com uma inteligência muito perspicaz:

A thousand Arabs means a thousand knives, delivered anywhere day or night. It means a thousand camels. That means a thousand packs of high explosives and a thousand crack rifles. We can cross Arabia while Johnny Turk is still turning round, and smash his railways. And while he's mending them, I'll smash them somewhere else. In thirteen weeks, I can have Arabia in chaos.

Mas há outros desempenhos inesquecíveis, neste elenco de homens: Alec Guiness (o príncipe Feisal) e Omar Sharif (xerife Ali) são os principais destaques.

Young men make wars, and the virtues of war are the virtues of young men: courage, and hope for the future. Then old men make the peace, and the vices of peace are the vices of old men: mistrust and caution.

Há, depois, dois departamentos fundamentais e decisivos para a grandiosidade da obra. Refiro-me, inequivocamente, à fotografia de Freddie Young (um trabalho do mais alto nível, absolutamente espantoso, impressionante e hipnotizante: veja-se a beleza de planos e enquadramentos, o assombro de paisagens e fenómenos naturais) e também à banda sonora de Maurice Jarre (de uma gradiloquência barroca). Mas o filme revela-se ainda irrepreensível a tantos outros níveis: na encenação e direcção de actores, de extras e de animais, nos cenários e na decoração, no guarda-roupa e acessórios, no som... Enfim, o arrojo de toda produção é assaz notável.

Clássico? Com certeza. Um gigantesco clássico, este brilhante e corajoso devaneio de Hollywood.

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

A PALAVRA (1955)

PONTUAÇÃO: EXCELENTE
★★★★
Título Original: Ordet
Realização: Carl Theodor Dreyer
Principais Actores: Henrik Malberg, Emil Hass Christensen, Cay Kristiansen, Birgitte Federspiel

Crítica:

O MILAGRE

A Palavra é um daqueles filmes que cresce em nós, espectadores, após a sua visualização. Introduz-nos a um cenário rural, de céu resplandecente e luminoso. É obscuro, não obstante, nos recantos interiores da fé e da humanidade. Dreyer filma num a preto e branco frio e desolador; neste jogo de contrastes quase fantasmagórico é invocada a memória e a influência do expressionismo alemão, não raras vezes enaltecido - da caracterização à expressão facial dos actores - no esmagador poder de um close-up. Parece ter herdado, até certo ponto, também, a aura do cinema mudo.

A Palavra assume-se como um filme de personagens, que se descobrem entre longos diálogos ou solilóquios e demoradas sequências. Se, por um lado, é nessa estética inconfundível que a alma do cineasta se revela - como se a arte fosse, ela própria, um processo de transcendência - é por ela, por outro, que se constroem a densidade atmosférica e a intensidade emocional necessárias à epifania, que por fim acontece, num clímax tão redentor diegetica como meta-diegeticamente (para o espectador, pois claro). Respondem-se às inquietações da história, às preces e profecias declamadas e, simultaneamente, abre-se caminho a várias interpretações.

A Palavra
teima em parecer-me mais antigo do que realmente é, como se o debate religioso entre famílias, seitas ou grupos pertencesse somente a tempos idos; pelo contrário, continua actual, pertinente e necessário. Afinal, a fé existe e existem as pessoas que se professam nas mais variadas crenças. Intemporal é o amor de pais para filhos, entre irmãos, entre apaixonados. Acreditar na família é, essa sim, a fé fundamental do ser humano, a qual valerá a pena cultivar sempre. É por meio desta fé - deste tipo de fé - que, por mais indiferentes ou estranhos que sejamos ao militarismo destas personagens, nos identificamos com elas. O coração do filme reside nos laços que se estabelecem entre o velho Borgen, patriarca da família, e os três filhos: o céptico Mikkel (marido da graciosa Inger), Anders (perdido de amores pela filha do alfaiate protestante) e o louco Johannes (que por ter estudado demais se julga Jesus Cristo). Tudo isto num tempo - admitem - onde já não há lugar para milagres nem possibilidade alguma destes acontecerem. A que se resume, então, a fé? É esta a questão central deste esmerado (às tantas assombroso) ensaio sobre a religião, a existência entre a vida e a morte e o significado desta passagem.

Da teatralidade da encenação à magistral direcção de actores (não esqueçamos que o argumento concretiza a adaptação da peça de Kaj Munk, a que Dreyer assistira 22 anos antes), passando pela simples mas quase mística manobra e interacção da câmera com a mise-en-scène, eis uma obra de uma humanidade gritante. O essencial, do ponto de vista estético, sobre quaisquer recursos bacocos. O incompreensível, do ponto de vista semântico, sobre a esterilidade e inutilidade das quezílias, suscitadas pela intolerância das confissões mundanas. Nenhum humano detém o valor absoluto; esse, inalcançável, resguarda-se para lá do grande mistério.

domingo, 18 de agosto de 2013

O HOMEM DE LONDRES (2007)

PONTUAÇÃO: EXCELENTE
★★★★
Título Original: A Londoni Férfi
Realização: Béla Tarr, Ágnes Hranitzky
Principais Actores: Miroslav Krobot, Tilda Swinton, Ági Szirtes, János Derzsi, Erika Bók, Gyula Pauer, István Lénárt, Kati Lázár

Crítica:

SINISTRA EXISTÊNCIA

Há quem diga que deambulam fantasmas, pelo cinema de Béla Tarr, e que os mesmos tornam, filme após filme, num diálogo perpétuo. Partilho dessa metáfora.

Num enquadramento contínuo, flui a melancolia, o desencanto e a solidão. O transe e o ambiente quase que surreal esculpem-se pela eterna repetição da música e dos sons, que definem os intervalos do silêncio. Os demorados planos-sequência, encenados ao pormenor, impõem uma gramática intensa e austera (ao mesmo tempo, tão mais próxima do real) que esquecêramos ser possível. A contemplação, a subtileza dos contrastes, a luz e as sombras, a minuciosa disposição dos elementos cénicos. Através deste formalismo rigoroso, a mais livre exploração do tempo e do espaço pela perspectiva única. O movimento da câmera, absolutamente manipulador, é temperado pela mais refinada sensibilidade estética, pelo deslumbramento, pela subtileza. É o poder da imagem, soberano. Por meio dela, a beleza no vazio existencial, que pela rotina ou mistério assola as almas perdidas. Há uma história, que a timidez dos diálogos ajuda a descobrir. Na expressão dos actores, sempre seguidos de perto, reside a culpa silenciosa e a condição do Homem, nitidamente reflectida.

É um cinema interior, o de Béla Tarr, génio do filme. Estou certo de que O Homem de Londres testará, no espectador, tanto os limites da concentração como a necessidade de evasão nesta dimensão alternativa, tão profundamente mística, espiritual e artística. É desta matéria que se fazem as grandes, grandes obras.

CHUNKING EXPRESS (1994)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
Título Original: Chung Hing Sam Lam
Realização: Wong Kar Wai
Principais Actores: Takeshi Kaneshiro, Brigitte Lin, Tony Leung Chiu Wai, Faye Wong, Valerie Chow, Chen Jinquan, Lee-na Kwan, Huang Zhiming, Liang Zhen, Zuo Songshen

Crítica:

AMAR EM HONG KONG

Chungking Express não só atrai como magnetiza facilmente a nossa atenção enquanto espectadores. É um exercício de estilo que explode em ritmos e cores.

A câmera de Wong Kar Wai, embebida em sensibilidade e espontaneidade, oscila nas mais variadas velocidades, dotada de vida própria. Orienta-a a visão poética do cineasta, que se funde às tantas com as inebriantes e complexas particularidades da fotografia de Christopher Doyle. A profundidade de campo, difusa, perde os protagonistas na multidão, na atmosfera multicultural da cidade, entregando-os ao vazio deles próprios. Ficam-nos os neons, as luzes de cores quentes, os reflexos do acaso. A procura do amor faz-se entre a melancolia da solidão (ironia do mundo contemporâneo) e esses fugazes instantes em que se cruzam duas almas. É esta a balada de Chungking Express, que reune as mais variadas referências da pop culture e se aventura numa vestigiona ode ao amor (ao amor, precisamente, não pela sua presença mas pela sua dolorosa e sentida ausência).

Fast motion, slow motion - por vezes a ousada convergência de ambos num só plano - cortes rápidos na montagem, as pulsasões narrativas contam-se frenéticas. California Dreamin salta-nos à memória quando falamos da obra, em especial quando lembramos a segunda história, carismaticamente interpretada por Tony Leung e Faye Wong (inegável inspiração para a graciosa e europeia Amélie de Jeunet e Tautou). Antes do screwball romance, o improvável relacionamento das personagens de Takeshi Kaneshiro e Brigitte Lin, sobre um fundo de crime e droga. Duas histórias diferentes, unidas pelo tema, pelo cenário e pelo jovem e sonante elenco de estrelas.

Pela cómica combinação de símbolos, química, faits divers, encontros e desencontros, Chungking Express ostenta tanto de realidade como de dimensão onírica. Raramente se assiste à criação de um tão irresistível pedaço de arte. Tudo tem um prazo, mesmo as histórias de amor, mesmo a solidão. Duvido, no entanto, que obras como esta detenham um.

A VIDA É UM ROMANCE (1983)

PONTUAÇÃO: BOM
Título Original: La Vie Est Un Roman
Realização: Alain Resnais
Principais Actores: Vittorio Gassman, Ruggero Raimondi, Geraldine Chaplin, Fanny Ardant, Pierre Arditi, Sabine Azéma, Robert Manuel, Martine Kelly, Samson Fainsilber, Véronique Silver, André Dussollier, Guillaume Boisseau, Sabine Thomas, Bernard-Pierre Donnadieu, Rodolphe Schacher

Crítica:

O TEMPLO DA FELICIDADE

Ça, ce n'est pas de l'architecture, c'est de la pâtisserie.

Se há coisa que o cinema de Resnais é e representa é a liberdade. A Vida É Um Romance é, por isso, mais um devaneio criativo, em estado bruto, no seu percurso.

Uma ode à imaginação sem limites, que cruza os mais variados géneros e registos numa narrativa multifacetada e dificilmente acessível: um só espaço (o onírico castelo na floresta de Ardennes, o templo) e três tempos diegéticos: a viagem ao passado (em 1914 e depois na década de 20, quando o edifício é palco para a mais utópica e hedionda experiência de humanidade, o recomeço, o renascimento), o presente (década de 80, quando o castelo, feito colégio, é local para debater e filosofar a educação da sociedade) e ainda um tempo indeterminado mas aparentemente medieval - seguramente fantástico - onde o cenário é pontuado por ilustrações e sonhado por crianças. Reina, em cada um deles, a estranheza e a incompreensão no ensaio da vida. Da mistura dos três jamais poderia resultar, pois, um filme que não fosse alucinado quanto baste, mas aberto às mais variadas interpretações, tanto estéticas como temáticas. Sabine Azéma, Geraldine Chaplin e Vittorio Gassman destacam-se, pelas suas interpretações, deste excêntrico e desconcertante festival artístico.

Poderá a vida ser perfeita? O título lança a discussão e o filme em si alimenta o quebra-cabeças. É preciso ser adulto para querer compreender o filme, mas é essencial vê-lo com olhos de criança para poder entendê-lo ou, quando menos, para poder aceitá-lo. É por isso que assistir a A Vida É Um Romance, assim como a outros de Resnais, pode resultar numa experiência tão frustrante quanto fascinante. Se a felicidade é uma fantasia, então só as crianças entram no castelo; só elas detêm a chave da inocência. A fortaleza dos adultos está, irreversivelmente, arruinada. A utopia está no templo, que só é possível em maquetes. O regresso ao castelo é apenas possível pela imaginação. Neste sentido, a felicidade só é alcançável se vivermos a vida como se fosse um romance, como se fosse um pedaço de arte. De outro modo, a felicidade não existe e a vida não tem significado.

CLOSE-UP (1990)

PONTUAÇÃO: EXCELENTE
★★★★★
Título Original: Nema-ye Nazdik
Realização: Abbas Kiarostami
Principais Actores: Mohsen Makhmalbaf, Abolfazl Ahankhah, Mehrdad Ahankhah, Monoochehr Ahankhah, Mahrokh Ahankhah, Nayer Mohseni Zonoozi, Ahmad Reza Moayed Mohseni, Hossain Farazmand, Hooshang Shamaei, Mohammad Ali Barrati, Davood Goodarzi, Haj Ali Reza Ahmadi, Hassan Komaili, Davood Mohabbat, Abbas Kiarostami, Hossain Sabzian

Crítica:

A MENTIRA:
O CAMINHO DA VERDADE


A malícia é um véu que esconde a arte.

Godard disse, uma vez, que o cinema começa em Griffith e termina em Kiarostami. Ainda que não concorde inteiramente com a afirmação, não posso negar que a compreenda. Afinal, aquilo que uma obra-prima como Close-up faz é confrontar o conceito de mimesis e testar os limites do cinema como nunca dantes acontecera. João Palhares, dissertando sobre o realismo no autor, diz: he works as both a filmmaker and a theorist
*. E é por meio dessa dupla condição, às tantas perfeitamente indissociável, que o cineasta concebe este que é, provavelmente, o maior ensaio sobre a arte (do cinema) jamais filmado e, simultanteamente, cinema em estado puro.

O facto: Kiarostami sabe, pela imprensa, da história de
Hossain Sabzian: acusado de fraude por se ter feito passar pelo famoso realizador Mohsen Makhmalbaf e em seu nome ter ludibriado a família Ahankhah, convencendo-os a financiarem o seu próximo filme, é detido.

A arte: Kiarostami interessa-se pela história e obtém a autorização para visitar o impostor na prisão. Liga a câmera e... acção.


Na sua génese híbrida, Close-up funde ficção com realidade, drama com documentário, ou vice-versa. Se a classificação não for redutora, será algo como um docudrama.
A grande questão do filme prende-se exactamente com esta sua identidade ou natureza, que enquanto objecto persistentemente mascara, revela ou confunde pela sua intrincada e provocadora (des)construção. Kiarostami, senhor do jogo e manipulador da cronologia, mistura cenas reais (filmadas em tempo real) com cenas reconstruídas (às quais jamais poderia regressar na realidade). O falso realismo da reconstrução passaria facilmente por realismo, não fossem as pistas reclamar o artifício, a cada instante, propositadamente; seja um microfone no enquadramento ou uma lata de aerosol a rolar rua abaixo, durante incontáveis segundos. A dúvida instala-se no espectador, que não entende que forma assume afinal Close-up enquanto objecto cinematográfico. Como se isto não bastasse, o autor intercala entrevistas feitas às várias personagens reais, como que lançando a sua própria investigação em busca da verdade, ouvindo cada depoimento, cada perspectiva, complexificando definitivamente o processo interpretativo. Impõe-se o puzzle (o corte da montagem é por vezes abrupto), que se resolverá peça por peça, na mente do espectador, seja a nível diegético seja a nível metadiegético. Perdidos na (des)construção, os espectadores desconhecem a verdade, da mesma forma que aquelas personagens a desconhecem. Mise-en-abyme.

Quando o próprio Kiarostami surge no ecrã e entrevista o acusado, a nossa interpretação sofre um abalo. Mas que filme é este? O realizador, à frente da câmera, torna-se personagem e, por isso, parte integrante da acção? Mas que filme é este? À pergunta se haveria alguma coisa que poderia fazer por ele, Hossain não hesita: pede a Kiarostami que faça um filme sobre o seu sofrimento. Mas que criminoso é este? Parece ser sincero, ter bom coração. As suas humildade e modéstia, ainda que suspeitas, apelam à nossa compaixão. Ambiguidade. Será inocente? Tratar-se-á de um actor? Pensa-se a natureza da representação. Dilema: actor ou pessoa real?

Kiarostami: Porquê fingir ser um realizador em vez de se tornar actor?
Hossain: Representar o papel de realizador é uma performance em si própria. Para mim, isso é representar.
Kiarostami: Que papel gostaria de representar?
Hossain: O meu!
Kiarostami: Está a representar o seu próprio papel?

Não obtemos resposta.

O julgamento em tribunal, qual história, qual julgamento do espectador, faz-se à medida dos fragmentos. A imagem enche-se de grão; marca da filmagem e da transição do 35mm para o 16mm ampliado. Também para esta audiência Kiarostami obtém autorização para filmar e para - imagine-se! - a interromper, dirigindo, a qualquer momento, pertinentes questões ao réu; estou certo de que os insólitos facilitismos do sistema judicial iraniano merecerão, certa e naturalmente, toda a nossa reflexão. A sentença é adiada, intensificando o suspense. A dúvida persiste e resiste.

Da aproximação do zoom à intimidade do close-up, o rosto, o olhar, a verdade.


Kiarostami: Está a representar para a câmera, agora?
Hossain: Estou a falar do meu sofrimento, isto não é representação. Falo com o coração. Para mim, a arte é a extensão do que se sente cá dentro. Tolstoi disse: a arte é uma experiência sentimental que o artista partilha com os outros. Penso que a minha experiência de adversidade e sofrimento pode dar-me a base de que preciso para ser um bom actor. Assim, representarei bem e expressarei a minha realidade interior.

A grande encenação que Hossain levou a cabo, iludindo a família que finalmente o flagrou, foi genuína representação. Ele acreditava tanto na sua mentira como nós. Eis o papel do actor, o de acreditar nas suas próprias mentiras. Neste caso, como é evidente, a representação transcendeu-se a si mesma e tornou-se realidade, verdade. Ele mentiu, mas ao mesmo tempo nunca faltou à verdade. Cinéfilo inveterado, amante maior da arte, encontrou na ilusão o escape perfeito à dura realidade, ao desemprego, à probreza e à fome e a oportunidade de ser finalmente alguém, admirado e respeitado. As desigualdades sociais têm destas coisas, como se a arte não fosse para todos. Outrou-se e encontrou-se, concluimos, por amor à arte e por força das circunstâncias. Será isto compreensível? Ou melhor, perdoável?

Que crime foi este? Será culpado ou merecerá a culpa ser dividida com o mal-estar social? Que pena aplicar? Houve crime, no fim de contas? Caem por terra as acusações perante tão desarmantes confissões, plenas de sinceridade.
É por isto que Close-up é uma flecha directa ao intelecto e ao coração dos espectadores. Uma lição de humanidade tremenda, profunda como poucas. Aos espectadores pertence a última sentença... mas não (nos) terá sido conquistada a absolvição de Hossain? As últimas cenas juntam os dois Makhmalbaf, o falso e o verdadeiro, e falam por si. Há beleza, para lá da verdade. E há também falhas de microfones, porque a imperfeição pretendida assim o aconselha.

Com Close-up, o homem torna-se actor e vê o seu sofrimento eternizado em filme. Kiarostami concede-lhe o pedido e o sonho mais querido.
O simples faits divers torna-se o espectáculo mediático de um país, atingindo por fim a dimensão universal. A obra concretiza também a metáfora do papel do cinema na sociedade, assim como o papel do cinema em si mesmo, capaz da auto-consciência e da auto-análise, onde a exploração do artifício, ao contrário da tentativa da invisibilidade, conduz à verdade maior. Close-up é, pois, um acontecimento único e essencial na História dos filmes. É precisa coragem para fazer um filme assim.

Quando dou com um homem que retrata todos os meus sofrimentos nos seus filmes,
isso faz-me querer vê-los uma e outra vez.



UM ELÉTRICO CHAMADO DESEJO (1951)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
Título Original: A Streetcar Named Desire
Realização: Elia Kazan
Principais Actores: Vivien Leigh, Marlon Brando, Kim Hunter, Karl Malden, Rudy Bond, Nick Dennis, Peg Hillias, Wright King, Richard Garrick, Ann Dere, Edna Thomas, Mickey Kuhn

Crítica:

A ACTRIZ E O MACACO

A line can be straight, or a street.
But the heart of a human being?

Equiparo Blanche a uma actriz, porque ela é uma mentira. Vivien Leigh dá-lhe corpo e alma, fabulosamente, perdida em ilusões e em declamações teatrais. Essas reminiscências, as teatrais, repercutem-se na calorosa representação dos actores (magistralmente dirigidos), na encenação interior, quase claustrofóbica (focada no essencial: as relações humanas) e na palavra: A Streetcar Named Desire é a adaptação cinematográfica da peça de Tennessee Williams, que Elia Kazan também encenou. Tal como no extraordinário Suddenly, Last Summer, que Mankiewicz mais tarde adaptaria, os temas recorrentes de Tennessee Williams: a loucura, o passado que assombra o presente e o segredo sobre as pecaminosas e imorais relações sexuais que marcaram as personagens para sempre. Em ambos os filmes, o poder do implícito (potenciado pela censura).

Blanche é uma mulher perturbada: pouco sabemos sobre ela e quanto mais descubrimos maior é a pena que sentimos. Às tantas esperamos pela sua redenção. Mas por mais burguesa e requintada que tenha sido a sua educação, a vida empurrou-a para a ruína, para um caminho difícil e vergonhoso, do qual não há retorno possível. É por isso que chega a Nova Orleães, onde ninguém a conhece a não ser a irmã Stella, onde poderá tentar o recomeço. Traz uma mala repleta de memórias, de excentricidades, mas não passam elas de um guarda-roupa de backstage, que alimentará novamente o embuste. Ela é uma fraude, fomentada pela tragédia e pela solidão.

O coração do filme encontra-se na relação antagónica - eu diria explosiva - entre esta lunática e refinada Blanche e o bruto e violento Stanley (o cunhado, o touro enraivecido, brilhantemente interpretado por Marlon Brando).

He's like an animal. He has an animal's habits. There's even something subhuman about him. Thousands of years have passed him right by, and there he is. Stanley Kowalski, survivor of the Stone Age, bearing the raw meat home from the kill in the jungle.
Blanche

No ar, há uma tensa e permanente atmosfera de desejo; qual nome do eléctrico que sobe e desce a rua, diariamente. Essa atmosfera é uma e outra vez refreada pelos tempos da acção, mas jamais extinta. Apesar do desejo não-assumido, apesar do corpo sensual e suado do polaco que inebria o olhar de Blanche, há ódio. O ódio é a lei da atracção. Stanley desconfia da cunhada, insiste em desmascará-la. Blanche afronta-o, desafia a sua autoridade máscula. Existe Stella, no meio como um peão, que adora a irmã e idolatra o marido, sem personalidade própria. Mas existem sobretudo estes dois, que suplantam o protagonismo da obra. Há tanta loucura na mácula dela como na efeverscência dele, como na arrogância e desejo dos dois. Na verdade, lutam a força e a fragilidade. Não esteve desde sempre ditada a vitória, então? O contraste entre ambos estabelece-se até pelos estilos de representação: ele, tão mais realista e voraz; ela, tão mais articifial, como Shakespeare. Tudo isto culmina, como sabemos, num espelho partido e consumado. O tabu do sexo ou do sexual, que esteve na origem da tragédia, prevalece na meta-diegese, na representação da acção, nas subtilezas do argumento e na construção de Desire enquanto objecto fílmico; que não foi alheio a controvérsia, como seria de esperar. Anos 50.

Eis, pois, um filme profundamente humano, um concentrado de muito boa representação e de muito boa sátira, que magnetiza a nossa atenção e que conquista a nossa memória.

DOLLS (2002)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
Título Original: Dolls
Realização: Takeshi Kitano
Principais Actores: Miho Kanno, Hidetoshi Nishijima, Tatsuya Mihashi, Chieko Matsubara, Kyôko Fukada, Tsutomu Takeshige, Nao Omori, Hawking Aoyama, Yuuko Daike, Ren Osugi, Kayoko Kishimoto

Crítica:

O INVERNO DO AMOR

Dolls é um filme profundamente cruel, tanto para as suas personagens como para o espectador. Kitano filma o amor em tons de tragédia, conduzindo as suas personagens para o abismo, qual manipulador de marionetas do Bunkaru. O teatro tradicional japonês e as suas desgraçadas histórias são o ponto de partida, a assumida fonte de inspiração para o mosaico que, engenhosamente, se comporá. No Bunkaru, aliás, é filmado o prólogo, mais a jeito de epígrafe, com que o filme abre; o que não deixa de ser insólito. É desmascarada, de forma mais do que evidente, a artificialidade da representação, inaugurando linhas de sentido que serão sustentadas ao longo de toda a obra. As personagens são a concretização plena da mimesis. Os actores personificam o momento em que os bonecos ganham vida. O cineasta está escondido, mas decidirá sempre o destino das suas marionetas.

Dolls é, provavelmente, o filme mais belo de Kitano. Refiro-me ao lirismo visual almejado e por demais alcançado, à poética construção da imagem que se impõe. Essencial, para o efeito, o jogo simbólico de cores fortes, em especial do vermelho. O vermelho que é amor e sangue, no cordão que liga os dois vagabundos e no vestido da eterna espera. Há vários aspectos notáveis e intensamente significantes: a fotografia de Katsumi Yanagijima (multiplicam-se as imagens memoráveis, de encantos vários), a montagem (a cargo do próprio realizador, com sobreposições poderosíssimas) e a banda-sonora (do lendário Joe Hisaishi, que amplifica a dimensão humana e intimista de todo o retrato). São muitas, as cenas que nos conquistam pela sua simplicidade (seja somente pelo enquadramento ou pela expressividade ou inexpressividade dos elementos cénicos), mas todas elas nos imbuem na essência sentimental e entristecedora da obra. O casal Sawako e Matsumoto, pela sua singularidade e simbolismo, merecerão com certeza um lugar de destaque entre os mais icónicos pares românticos da História do Cinema.

O amor resiste ao tempo? Um sopro de melancolia estremece cada amante e percorre cada história. Os fios enleiam-se, mas a borboleta está partida, o coração despedaçado, o destino irreversível e irremediável. Desolador em todos os silêncios, no vazio e na impossibilidade das uniões, Dolls atinge-nos como uma experiência desarmante e contemplativa, plena de romantismo. A câmera, graciosa no movimento, conduz-nos o olhar para a cegueira, para a solidão a que se entregam aquelas almas. O amor de Kitano atravessa as quatro estações, mas é no Inverno, sempre mais rigoroso, que é conhecido o fim. É paradoxal, que a esperança mova aqueles fantasmas, quando não têm futuro. É neste paradoxo que reside a tragédia.

Grande filme.

sábado, 17 de agosto de 2013

O DISCURSO DO REI (2010)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
Título Original: The King's Speech
Realização: Tom Hooper
Principais Actores: Colin Firth, Geoffrey Rush, Helena Bonham Carter, Guy Pearce, Jennifer Ehle, Eve Best, Derek Jacobi, Timothy Spall, Anthony Andrews, Claire Bloom

Crítica:

O TRIUNFO DA VONTADE

I have a voice!

De uma sobriedade e requinte assinaláveis, O Discurso do Rei eleva-se como um drama-biopic excepcionalmente bem feito. É dotado de um virtuosismo clássico que cadencia e equilibra a construção narrativa (argumento de David Seidler). A excelência e inteligência dos diálogos, sempre temperada com humor nos momentos certos, é inequívoca e arrebata todas as melhores cenas do filme (sejam elas com palavrões ou não) - para as quais é fundamental e imprescindível, evidentemente, o magistral trabalho dos actores: Colin Firth, Geoffrey Rush, Helena Bonham Carter... não falarão estes nomes por si só? São os melhores actores para os papéis, engenhosamente dirigidos entre a subtil, fluída e pensada realização de Tom Hooper.

O trabalho de fotografia, a cargo de Danny Cohen, sobressai de toda a produção, valorizando os cenários e a arte da mise-en-scène: note-se o meticuloso enquandramento dos actores sobre os fundos vastos, sejam paredes, tapeçarias ou nevoeiro. É como se, a todo o instante, fôssemos recordados da singularidade do homem perante a pluralidade do todo, do povo. Ao mesmo tempo, essa despida mise-en-scène faz realçar a solidão do homem, herdeiro do trono, afastado da realidade do homem comum por uma série de convenções e convencionalismos. A fotografia embeleza o filme e envolve-nos na atmosfera, na história. A acção passa-se maioritariamente em espaços interiores. O contexto sócio-político é importante, o histórico idem, mas o drama centra-se, lá está, no homem outrora vítima de bullying, na sua gaguez, na sua insegurança e fraca auto-estima e na sua persistente luta para superar o problema, sempre encorajado pela mulher (a futura rainha) e pelo insolente e provocador terapêuta (sem título ou diploma, mas experiente e de bom coração). Entre (sua majestade o rei) Bertie e Lionel nascerá a espontânea e verdadeira amizade sobre a qual se alicerçará todo o filme.

Um retrato pleno de sensibilidade e intimismo, que ecoa na frágeis composições de Alexandre Desplat. Marcadamente contido e refinado, tão ciente de bom gosto, é por isso também tão british.

And yet I am the seat of all authority. Why?
Because the nation believes that when I speak, I speak for them. But I can't speak.

MÃE E FILHO (1997)

PONTUAÇÃO: EXCELENTE
★★★★★
Título Português: Mat y Syn
Realização: Aleksandr Sokurov
Principais Actores: Aleksei Ananishnov, Gudrun Geyer

Crítica:

O ÚLTIMO PASSEIO
OU O ESPECTRO DA MORTE E DA EXISTÊNCIA

As pessoas não precisam de uma razão para viver,
mas morrem sempre por uma ou por outra.

Criação... és maravilhosa - diz, às tantas, uma das personagens. Na verdade, seja ela artística ou real, a criação é qualquer coisa de extraordinário, de transcendente. É assim numa relação entre mãe e filho e é assim nesta representação de Sokurov. Cada imagem é como um quadro pintado de fresco, borrado pela chuva... desfocado por uma lágrima... ou simplesmente distorcido pela dor e pelo aperto do coração.

Se Mãe e Filho tivesse cheiro, cheiraria a morte. Essa fatalidade, inevitável e por isso mesmo trágica, está omnipresente em toda a obra, sobretudo na atmosfera que se impõe, onde reina o silêncio e os sons do vento, das folhas, dos pássaros, dos trovões... No campo, profundamente isolados do mundo, o elo de sangue, o vínculo inexplicável, a entrega mútua. A dedicação extrema. O amor. Contemplamo-lo, consumindo o frio e o tempo, embebidos em compaixão. O filho com a mãe ao colo - gela-nos, tal imagem. É a inversão derradeira e natural dos papéis. O comboio passa como uma miragem - enquanto a mãe respirar, não passará disso: uma miragem, não haverá fuga ou recomeço. Há o medo da morte, mas há sobretudo o medo da solidão.

Os planos são longos e lentos. A beleza poética daquilo a que assistimos é tremenda; ao mesmo tempo, tão assustadoramente real. Só recuperamos o fôlego quando o filme finda. Qual doença ou promessa de adeus, é devastador. Uma obra-prima em todos os sentidos.


INDOMÁVEL (2010)

 PONTUAÇÃO: BOM
★★★★
Título Original: True Gift
Realização: Ethan Coen e Joel Coen
Principais Actores: Jeff Bridges, Hailee Steinfeld, Matt Damon, Josh Brolin, Barry Pepper, Ed Corbin, Paul Rae

Crítica:

A VINGANÇA

You must pay for everything in this world, one way and another.
There is nothing free except the grace of God.

True Grit convoca e perpetua, na sua forma, todo o cânone do grande western. Em si, tem presente a memória e as referências históricas e míticas que o cinema americano imortalizou durante décadas. Os Coen fazem-no de forma absolutamente honrosa e irrepreensível. A fotografia de Roger Deakins - deslumbrante a cada frame, embora longe da ousadia estética de outros filmes - marca, quanto a mim, o culminar da sofisticação técnica da obra. Proporciona-nos, de um modo perfeitamente verosímil e sedutor, a viagem no tempo.

Suportada pela elevada qualidade técnica da reconstituição, dos cenários ao guarda-roupa, a narrativa avança com uma consistência e fluidez notáveis. A vingança, quase religiosa, motiva toda a trama e a parábola. São brilhantes, os desempenhos das cabeças de cartaz: Jeff Bridges, num overacting arrebatador, Hailee Steinfeld, numa revelação surpreendente, Matt Damon e Josh Brolin. Eles dão corpo e alma às suas personagens, dimensionam-nas e tornam-nas completamente apaixonantes. São de igual forma os actores que dão voz aos diálogos e ao humor que, de forma tão negra quanto inteligente, pontuam o argumento, assinalando as particularidades da obra. A singularidade de True Grit é também marcada - tanto por influência da paisagem como por imperativo do estilo autoral - pela frieza da abordagem, pelo carácter cerebral com que se tratam e sucedem os acontecimentos, distanciando o espectador de qualquer carga emocional maior.

Não estando propriamente repleto de cenas memoráveis, True Grit é um testemunho de solidez, de bom gosto e bom cinema. Mais um, dentro do género, reclamando a sua vitalidade, após a equivocada certidão de óbito.

A PAIXÃO DOS FORTES (1946)

 PONTUAÇÃO: BOM
Título Original: My Darling Clementine
Realização: John Ford
Principais Actores: Henry Fonda, Linda Darnell, Victor Mature, Cathy Downs, Walter Brennan, Tim Holt, Ward Bond

Crítica:

A VINGANÇA DE WYATT EARP

Maybe when we leave this country young kids like you
 will be able to grow up and live safe.

Wyatt Earp, por John Ford. Mais a lenda, não tanto a história, daquela mítica figura que o próprio cineasta conheceu pessoalmente em 1927 e que Henry Fonda interpreta, formidavelmente. Mais um homem do oeste - sequeoso de vingança e de justiça, mas mais brando nos costumes e no trato, muito menos bruto e grosseiro certamente, e que finalmente alia o charme natural ao cuidado com a apresentação.

Clementine: I love your town in the morning, Marshal. The air is so clean and clear... the scent of the desert flower.
Wyatt Earp: That's me... barber. 

Após o misterioso assassinato do irmão, num intervalo à travessia do gado pela empoeirada imensidão da paisagem rumo à Califórnia, Tombstone torna-se o lugar para um novo começo. Earp deixa a sua existência errante e assume responsabilidade civil como xerife. É então que My Darling Clementine abranda o seu principal fio narrativo - a vingança - e se demora na crónica de costumes, no retrato histórico, na invocação nostálgica de um passado perdido; muito ao estilo do que faria Hawks, também, mais tarde, de set em set, em Rio Bravo. Após densos ou bem humorados diálogos e alguns tiros esporádicos - na barbearia, na pensão ou no alpendre - a acção retorna a Tombstone - precisamente, com a fuga do alcoolizado, tísico e enigmático Doc (Victor Mature). E quando o faz, fá-lo de forma explosiva e absolutamente electrizante, até ao final. Puro entretenimento. A fotografia de Joseph MacDonald toma-nos de assombro, glorificando o céu, as nuvens e as rochas, transpirando, a cada frame, uma beleza de cortar a respiração.

Também o romance marca presença, nesta narrativa de múltiplos registos que é My Darling Clementine. A figura feminina - representada de duas formas opostas pelas personagens de Chihuahua (Linda Darnell, a prostituta, mulher de recreio) e de Clementine (Cathy Downs, professora, a mulher para casar) - partilha e distrai as atenções dos homens do ódio que os corrói no dia-a-dia. Clementine, ao qual o título (por sua vez oriundo da canção popular) faz menção, simboliza a esperança e a redenção do homem do oeste a uma fórmula mais pacífica e romantizada do herói. Afinal, também há lugar para a doçura e para o amor no coração e na vida de um homem duro.

Embora a construção narrativa não esteja tão magnificamente esculpida quanto a composição dos planos, muito menos quando comparada, obviamente, à imponência silenciadora de Monumment Valley - encontramo-nos perante um western enérgico e incontestavelmente prazeroso e valoroso. A salientar, obrigatoriamente, que a versão final que chegou aos cinemas de todo o mundo beneficiou (ou sofreu?) de cortes por parte de Zanuck, da Fox, que achara a versão de Ford demasiado demorada e cansativa. Há uma versão do realizador, seis minutos mais longa, mas não definitiva.

A SEMENTE DO ÓDIO (1945)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
Título Original: The Southerner
Realização: Jean Renoir
Principais Actores: Zachary Scott, Betty Field, J. Carrol Naish, Beulah Bondi, Percy Kilbride, Charles Kemper, Blanche Yurka, Norman Lloyd, Estelle Taylor, Paul Harvey

Crítica:

A TRILOGIA DA ESSÊNCIA:
O TRABALHO, A TERRA E A FAMÍLIA 


Grow your own crops.

The Southerner é sobre uma família pobre. Tal evidência reduz o filme, logo à partida, às suas questões verdadeiramente essenciais, como verdadeiramente essenciais são os valores do ser humano: a importância da inter-ajuda e da união (afinal, ninguém vence sozinho), do esforço e da persistência face às adversidades da vida, da fé e da convicção num futuro melhor para um futuro, efectivamente, melhor.

A história (talentosa adaptação do romance de George Sessions Perry, Hold Autumn in Your Hand) é tremendamente simples e eficaz na sua forma narrativa - sucedem-se episódios, impressões - desenvolvendo-se com uma fluidez notável e cimentada por personagens com as quais nos identificamos, nos envolvemos e pelas quais, em crescendo, torcemos. Inesquecível, a velha e hilariante matriarca (tão resmungona e insuportável: When ya all look down on my cold dead face, in that county pine box, you’ll be sorry then—maybe!), o incansável Sam (herói da mulher, dos filhos e de toda a família) ou o vizinho Devers (tão invejoso e hostil que só perante a pesca do Grande Peixe encontra a redenção).

Concluamos, portanto, que o argumento, à luz da palavra e pela representação calorosa dos actores, destila humanidade a cada colheita, a cada superação. Não obstante o seu tom moralista e a sua mensagem iminentemente política, é a preocupação maior com as pessoas (as mais desfavorecidas, neste caso os trabalhadores rurais) que prevalece, esse humanismo basilar que de forma tão franca e humilde faz a força motriz de The Southerner, o seu coração partilhado com o espectador; que nos faz ignorar, inclusivé e tão facilmente, qualquer imperfeição técnica, por mínima que seja, que aqui e ali se note.

Um olhar poético de Renoir capta a natureza, na sua graça e na sua ira, ao rigor das estações e na omnipresença de Deus. Só a aliança maior, entre todos os elementos, permite o triunfo. Na vida e no cinema. Um filme virtuoso, pois, sobre a miséria e a riqueza do espírito.

INTRIGA INTERNACIONAL (1959)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
Título Original: North by Northwest
Realização: Alfred Hitchcock
Principais Actores: Cary Grant, Eva Marie Saint, James Mason, Jessie Royce Landis, Leo G. Carroll, Josephine Hutchinson, Philip Ober, Martin Landau, Adam Williams, Edward Platt, Robert Ellenstein, Les Tremayne, Philip Coolidge

Crítica:

A CONSPIRAÇÃO


No, Mother, I have not been drinking.

Certamente, um dos expoentes máximos do thriller de espionagem e do thriller romântico, Intriga Internacional ainda hoje encontra eco em dezenas de reproduções maioritariamente inferiores. A montagem do filme (George Tomasini) e o compasso que esta impõe ao longo das suas pouco mais de duas horas de duração é qualquer coisa de verdadeiramente notável e obsessivo, tanto para a marcação do ritmo cerebral e implacável que baseia a narrativa como para a edificação - essencial - do suspense.

Na verdade, a condução controlada, intrincada e meticulosamente pensada que o argumento (Ernest Lehman) e o mestre Hitchcock fazem do mistério aprisiona completamente o espectador, desde o primeiro instante.  Qual personagem principal, Roger O. Thornhill (um charmoso, trabalhador e bem-humurado homem da publicidade, completamente alheio a estratégias de guerra e a segredos de estado), nada sabemos sobre o precipício em que caimos, perdidos em confusões, mal-entendidos e situações completamente absurdas. E qual protagonista, perfeitamente interpretado por Cary Grant, cedo percebemos que nada parece o que é... nem é o que parece. Aquilo que começa por ser um episódio caricato e ridículo, de aparente e fácil resolução - Roger enfrenta-o, diga-se, com todo o sacarmo - torna-se numa fuga absolutamente perigosa e arriscada pela sobrevivência e pela verdade... às tantas, revelada na forma da mais pura e empolgante aventura, capaz de nos garantir todo o entretenimento. No meio da tanta agitação, ainda há tempo e espaço para a atracção, pela loira e irresistível femme fatale que é Eve Kendall (Eva Marie Saint) e que culminará algures entre as faces rochosas e monumentais do Monte Rushmore e os tão impessoais lençóis do comboio de regresso a casa. Sempre acompanhados pelas extraordinárias e vibrantes composições musicais de Bernard Herrmann, claro.

As cenas memoráveis e antológicas são mais do que muitas. Que dizer, a título de exemplo, daquela pela qual o filme é imediatamente lembrado, deslumbrante da fotografia à encenação: a incessante e por isso mesmo inquietante perseguição da avioneta sobre o cruzamento e sobre os campos de cereais. É sublime; um tanto mais do que o filme que, por si só e com todo mérito, já é um grande filme.
 

SHUTTER ISLAND (2010)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
Título Original: Shutter Island
Realização: Martin Scorsese
Principais Actores: Leonardo DiCaprio, Mark Ruffalo, Ben Kingsley, Max von Sydow, Michelle Williams, Emily Mortimer, Patricia Clarkson, Jackie Earle Haley, Ted Levine, John Carroll Lynch, Elias Koteas, Robin Bartlett, Christopher Denham, Nellie Sciutto, Joseph Sikora

Crítica:

A ILHA MISTERIOSA

You'll never leave this island.

Dissertar - em cinema - sobre a loucura, faz-me invocar, instantaneamente, aquele clássico magistral de 75, protagonizado pelo genial Jack Nicholson, Voando Sobre Um Ninho de Cucos. Naquele hospício imoral, delineava-se uma linha bastante ténue entre a saúde e a demência mentais. Ser louco poderia significar coisas distintas, consoante o juiz, e a facilidade com que se sentenciava a loucura de alguém apresentava-se-nos como algo de verdadeiramente assustador. Pois bem, este inquietante objecto fílmico de Martin Scorsese segue a mesma premissa; transportando-a, porém, para um ambiente kafkiano, muito mais tenebroso e sinistro, e servindo-se do suspense como principal condutor da narrativa.

O argumento de Laeta Kalogridis, a partir do romance homónimo de Dennis Lehane, equilibra-se, labriríntico e intrincado, sobre a ambiguidade: terá reais fundamentos a investigação do U.S. marshal Teddy Daniels, sobre a conspiração secreta que submete os pacientes do remoto hospital a inovadoras, dolorosas e desumanas experiências científicas, ou será ele próprio um louco paranóico, como tantos outros dos edifícios A, B e C, vivendo num mundo inventado à sua medida? O condão maior tanto do argumento como da realização é o de confundir habilmente o espectador, dificultando-lhe o acesso à verdade e colocando-o na pele do protagonista, dividido entre a sua razão e a razão dos outros.

Os sonantes acordes da banda sonora (Mahler, Ligeti, Ingram Marshall, Penderecki, entre tantos outros) potenciam, de imediato, a atmosfera de terror, assim como o esplendor enigmático da fotografia (Robert Richardson). Os flashbacks, sejam eles sonhos, alucinações ou recordações, alimentam o mistério, adensam a complexidade da história nas suas múltiplas possibilidades. Às tantas, todavia, só dois caminhos se nos restam possíveis e a imprevisibilidade desvanece-se. A conclusão do enredo não é a mais surpreendente e original, mas o filme revela-se sólida e arrojadamente construído e muito bem escrito.

A interpretação de Leonardo DiCaprio é absolutamente magnetizante. O extraordinário talento do actor envolve-nos do princípio ao fim, em perfeita sintonia com as portentosas prestações de Ben Kingsley, Patricia Clarckson, Jackie Earle Haley, Max von Sydow ou Michelle Williams. Dante Ferretti e Francesca Lo Schiavo garantem a qualidade irretocável da direcção artística, Sandy Powell assina o figurino e Thelma Schoonmaker trabalha a montagem do filme, conferindo-lhe uma fluidez assinalável.

Shutter Island afirma-se, pois, como um exercício tecnicamente sofisticado, ao qual se lhe alia uma arte de filmar virtuosa e que transpira maturidade. Um pedaço de cinema brilhante e, no fim de contas, extremamente prazeroso de se assistir.

Which would be worse, to live as a monster,
or to die as a good man?

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

A ESTRADA (1954)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
Título Original: La Strada
Realização: Federico Fellini
Principais Actores: Anthony Quinn, Giulietta Masina, Richard Basehart, Aldo Silvani, Marcella Rovere, Livia Venturini

Crítica:

O CIRCO ERRANTE

Assistir a A Estrada, de Fellini, é de certa forma comparável à experiência de assistir a Umberto D., de Sica. Ambos os filmes devem a sua génese ao neo-realismo (embora em Sica o comprometimento político seja mais inflamado) e num retrato por demais assombrado e pessimista da realidade conquistam a nossa compaixão relativamente às personagens. Das dificuldades e da miséria que elas partilham emerge uma humanidade maior com a qual nos identificamos, sensibilizamos e emocionamos. É essa dor, universal, que nos toma de assalto o coração, independentemente do contexto sócio-económico, do tempo ou do espaço em que se passe a acção. A Estrada é, por isso, um filme desolador, de uma melancolia profunda, absolutamente desesperançada mas simultaneamente apaixonante. Quem esquecerá, afinal, o velho Umberto e o seu cão companheiro ou o estranho amor destes loucos Gelsomina e Zampanò?

A narrativa circular - na praia tudo começa, na praia tudo se finda - preocupa-se essencialmente com esta relação impossível entre os dois. Ela (Giulietta Masina, mulher do realizador, perfeita no papel), uma jovem inocente com o seu quê de autismo, é vendida ao Homem dos Pulmões de Aço, um artista ambulante que ganha a vida nas feiras, no circo e como pode, feio e bruto como uma besta. A família da rapariga vivia em extremas dificuldades e esta é a forma de, a troco de 10 mil liras, tentar a subsistência. Desconhecedora do mundo - duvido mesmo que conhecesse muito mais do que a praia em que vivia - parte para a viagem, a medo fascinada pela possibilidade de se tornar artista. A estrada é longa, imprevisível e de muito complicada adaptação. A cada dia, um novo horizonte, uma nova cidade... caras sempre diferentes, excepto, claro, a do barbudo e detestável Zampanò (magnífico e intenso Anthony Quinn), sempre a bater-lhe, a gritar-lhe ou a meter-se com outras mulheres, humilhando a sua existência e a sua utilidade. Os dias passam e as ilusões caem por terra, vencendo a tristeza e o arrependimento. 

Tudo se coaduna, na verdade, para uma autêntica obra de mestre. Do argumento às interpretações, da classe dos movimentos de câmera de Fellini à beleza das imagens captadas e enquadradas (brilhante direcção de fotografia de Otello Martelli); a construção da mise-en-scène obedece, diga-se, ao mais inspirado sentido estético. A composição musical de Nino Rita é, por sua vez, qualquer coisa de absolutamente arrebatador (ou não nos ficasse no ouvido muito para além dos créditos finais). Enfim, um filme memorável.

O ANJO EXTERMINADOR (1962)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
Título Original: El Ángel Exterminador
Realização: Luis Buñuel
Principais Actores: Silvia Pinal, Enrique Rambal, Claudio Brook, José Baviera, Augusto Benedico, Antonio Bravo, Jacqueline Andere, César del Campo, Rosa Elena Durgel, Lucy Gallardo, Enrique García Álvarez, Ofelia Guilmáin

Crítica:

AS BESTAS HUMANAS

Há filmes do diabo. O Anjo Exterminador serve-se, eu diria, da mais disparatada epidemia apocalíptica para assinalar nas suas forma e narrativa a conversão do realismo para o surrealismo, passando de uma sátira corrosiva e hilariante para um trágico e degradante quadro de selvagaria. Buñuel filma a crónica de costumes daquela alta burguesia com uma elegância e sofisticação ímpares - qualidades que são, aliás, extensíveis à direcção artística e ao guarda-roupa. Espertos são os criados, que fogem, não por que pressintam o fim do mundo mas por que já saibam talvez o que a casa gasta.

E eis que desfilam os snobs, chegados da ópera, do brilho dos vestidos delas à ponta dos bigodes deles. Sobem a escadaria, como se fossem para um baile de máscaras, mal sabendo eles que as máscaras acabariam todas por cair. Aperaltados em aparências e com desejos reprimidos, lá jantam os hipócritas, os falsos tanto para os outros como para consigo próprios. Aprisionados em convenções, são tudo menos seres livres... e a alegoria ampliará precisamente esta prisão invisível à sala de estar, de onde por razões desconhecidas e também elas invisíveis se verão impedidos de sair, dias a fio. Se a hipocrisia se contagia entre aristocratas, é pela imitação que se proporciona a degradação. Veja-se, pois, como o argumento cai intencional e regularmente em imitações de situações já anteriormente acontecidas, como que denunciando as causas da decadência por meio desse ritual simbólico... Só por essa tomada de consciência encontrarão o caminho para a cura, a saída, mas haverá entre eles ainda alguma luz, discernimento ou inocência?

Até lá, passarão fome e sede, ficarão doentes e enlouquecidos, morrerão ou matar-se-ão. Perderão a racionalidade, toda a dignidade, perante a iminência da morte e da situação-limite. Aos olhos do espectador mais humilhados e gozados não poderiam ser. Poucos terão a coragem para enfrentar a situação. O sentimento de clausura será cada vez mais assustador e asfixiante.

Duas marchas em simultâneo: enquanto o surrealismo marcha pela liberdade do inconsciente, o marxismo marchará pela liberdade dos trabalhadores (talvez por isso também sejam os criados os mais livres e imunes à epidemia). Descodifique-se, à luz desta passagem, alguns dos episódios finais da película. A bandeira, seja ela artística ou política, eleva-se pela liberdade. O Anjo Exterminador levanta, inegavelmente, as duas, enquanto observa e analisa estes miseráveis ratos de laboratório.

A obra de Buñuel impõe-se, por tudo isto e do seu ponto de vista interpretativo, como um dos mais imprevisíveis, impenetráveis ou até mesmo inalcançáveis pedaços de cinema alguma vez criados. Ficar-me-ia, no entanto, por caracterizá-la como uma obra aberta, ambígua e inconclusiva; absolutamente livre, como o sonho... ou como a própria vida deveria ser vivida.


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CINEROAD ©2020 de Roberto Simões