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domingo, 18 de agosto de 2013

CHUNKING EXPRESS (1994)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
Título Original: Chung Hing Sam Lam
Realização: Wong Kar Wai
Principais Actores: Takeshi Kaneshiro, Brigitte Lin, Tony Leung Chiu Wai, Faye Wong, Valerie Chow, Chen Jinquan, Lee-na Kwan, Huang Zhiming, Liang Zhen, Zuo Songshen

Crítica:

AMAR EM HONG KONG

Chungking Express não só atrai como magnetiza facilmente a nossa atenção enquanto espectadores. É um exercício de estilo que explode em ritmos e cores.

A câmera de Wong Kar Wai, embebida em sensibilidade e espontaneidade, oscila nas mais variadas velocidades, dotada de vida própria. Orienta-a a visão poética do cineasta, que se funde às tantas com as inebriantes e complexas particularidades da fotografia de Christopher Doyle. A profundidade de campo, difusa, perde os protagonistas na multidão, na atmosfera multicultural da cidade, entregando-os ao vazio deles próprios. Ficam-nos os neons, as luzes de cores quentes, os reflexos do acaso. A procura do amor faz-se entre a melancolia da solidão (ironia do mundo contemporâneo) e esses fugazes instantes em que se cruzam duas almas. É esta a balada de Chungking Express, que reune as mais variadas referências da pop culture e se aventura numa vestigiona ode ao amor (ao amor, precisamente, não pela sua presença mas pela sua dolorosa e sentida ausência).

Fast motion, slow motion - por vezes a ousada convergência de ambos num só plano - cortes rápidos na montagem, as pulsasões narrativas contam-se frenéticas. California Dreamin salta-nos à memória quando falamos da obra, em especial quando lembramos a segunda história, carismaticamente interpretada por Tony Leung e Faye Wong (inegável inspiração para a graciosa e europeia Amélie de Jeunet e Tautou). Antes do screwball romance, o improvável relacionamento das personagens de Takeshi Kaneshiro e Brigitte Lin, sobre um fundo de crime e droga. Duas histórias diferentes, unidas pelo tema, pelo cenário e pelo jovem e sonante elenco de estrelas.

Pela cómica combinação de símbolos, química, faits divers, encontros e desencontros, Chungking Express ostenta tanto de realidade como de dimensão onírica. Raramente se assiste à criação de um tão irresistível pedaço de arte. Tudo tem um prazo, mesmo as histórias de amor, mesmo a solidão. Duvido, no entanto, que obras como esta detenham um.

quarta-feira, 18 de maio de 2011

FELIZES JUNTOS (1997)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
Título Original: Chun gwong cha sit
Realização: Wong Kar Wai
Principais Actores: Leslie Cheung, Tony Leung Chiu Wai, Chen Chang, Gregory Dayton, Shirley Kwan

Crítica:

COMEÇAR DE NOVO

Acontece que as pessoas solitárias...
...são todas iguais.

O fluir do tempo, a cadência dos corpos, a fragilidade da relação amorosa. O tango, Piazzola. As Cataratas de Iguaçú, Caetano Veloso e o seu Cucurrucucu Paloma. Imponente, o esplendor da imagem e a força das águas cadentes, naquela saturação azulada. Numa explosão de cores, a paixão cega e tórrida, o tempestuoso envolvimento de Yiu-Fai e Po-Wing. Num reluzente preto e branco, um postal de Buenos Aires. Magistral e eclético, o trabalho de fotografia de Christopher Doyle.

Não há dinheiro, há desejo e loucura, tanta esperança quanto insensatez. Há uma dependência quase inexplicável, uma cedência perpétua à ilusão, um repetido começar de novo, como se a cada tentativa vingasse a possibilidade. Há solidão, sobre todas as coisas, na fuga à incompreensão da família e à sociedade inquisitória. A cada take, a sensibilidade lírica do amor. Funde-se um frágil, muito embora requitado, formalismo visual com as linhas de um argumento que se escreve no momento, de acordo com a fugacidade dos sentimentos. Memorável, o desempenho de Tony Leung. Arrepiante, o desabafo para o gravador. Catártico, o alongado plano final...

Hajam poetas.

domingo, 5 de dezembro de 2010

2046 (2004)

PONTUAÇÃO: EXCELENTE
★★★★★
Título Original: 2046
Realização: Wong Kar Wai
Principais Actores: Tony Leung Chiu-Wai, Maggie Cheung, Zhang Ziyi, Faye Wong, Gong Li, Takuya Kimura, Carina Lau, Chang Chen

Crítica:

O SEGREDO

Todas as recordações são rastos de lágrimas.

O título 2046 parece invocar o futuro, mas - antes de tudo - significa uma viagem ao passado. Lembremo-nos que 2046 era, em Disponível Para Amar, o número do apartamento para o qual Chow Mo-wan se mudara, em 1962, precisamente ao lado do de Su Li-zhen; mulher pela qual se apaixonaria para sempre. A relação deles era proibida, estavam ambos casados, e resumiu-se ao platonismo, ainda que o filho que aparece no final do filme sugira um fruto do amor de ambos. Desde o dia em que se despediram, sem que praticamente se tocassem, nunca mais se voltaram a encontrar. Arrepender-se-iam, pois estavam destinados um ao outro.

O amor é apenas uma questão de oportunidade.
De nada vale encontrar a pessoa certa antes ou depois da altura certa.
Se vivesse noutra época ou local, a minha história poderia ter tido um desfecho muito diferente.

Chow é o narrador. A sua narrativa não obedece a leis cronológicas, saltita por vários tempos, por diversas linhas diegéticas, dando conta dos seus sentimentos, das suas angústias e da forma como toda a sua existência influencia a sua criatividade e o seu universo de escrita. 2046 é, igualmente, o nome do romance que está a conceber; é como que uma ingressão futurista sobre a infindável busca do amor, muito à semelhança da sua vida.

Todos os que vão para 2046 têm a mesma intenção: querem resgatar memórias perdidas. Porque em 2046... nada muda. Mas ninguém sabe ao certo se isso é verdade ou não. Porque nunca ninguém de lá regressou. Excepto eu. Porque eu preciso de mudar.


Viajar ao futuro, no seu romance - e note-se a audácia da ideia -, não corresponde senão a um escape por meio do qual ele próprio regressa ao passado, às suas memórias. Só revivendo as memórias poderá reviver aquele grande amor.

Os anos passaram e ele está diferente. Arrepende-se todos os dias de não ter vivido o hoje no ontem... e, quiçá em busca do tempo perdido, procura o amor em todas as mulheres pelas quais se interessa minimamente. Torna-se um mulherengo, um bon vivant.

Primeiro, conhecemos Lulu - a cantora do clube nocturno de Singapura com a qual Chow se envolvera e que o jornalista reencontra no hotel, a ocupar o quarto 2046. Lulu não se recorda do nosso protagonista, que opta por ocupar o 2047, mas o reencontro proporciona-lhe, a ele, um nostálgico regresso ao passado. Depois, são-nos apresentadas as duas filhas do Sr. Wang, proprietário do hotel. Jing-wen, a mais velha, está perdidamente apaixonada por um japonês, o que motiva intensas discussões com o pai, ao som de uma ópera magnífica, ainda que ensurdecedora para os moradores. A mais nova é uma miúda precoce e irresponsável, com sede de experiências sexuais, que cedo foge e deixa a família. Em seguida, é-nos introduzida a nova ocupante do 2046: Bai Ling. Os dois virão a envolver-se ardentemente, mas Chow limitar-se-á a usar essa irrersistível mulher, pagando-lhe os préstimos sexuais. Prostituta. Bai Ling, contudo, deixar-se-á envolver demasiado e apaixonar-se-á verdadeiramente... Ah Ping, o editor e amigo do jornalista, bem que a alerta que ele não é de confiança: Chow tem em Bai Ling uma oportunidade para se sentir realmente amado. Não obstante, jamais conseguirá substituir Su Li-zhen no seu coração. As memórias do passado não se extinguem.

Encontremo-nos novamente. Se continuares a achar que não devemos estar juntos, diz-mo sinceramente. Naquele dia, há seis anos, formou-se um arco-íris no meu coração. Ainda lá está. Arde como uma chama dentro de mim. Mas qual é a verdadeira natureza dos teus sentimentos por mim? São como um arco-íris, que se forma depois de uma chuvada? Ou será que... esse arco-íris se desvaneceu há muito? Espero uma resposta tua.

Quando Jing-wen regressa ao hotel, o seu amor proibido com o japonês continua... Chow revê-se naquela relação adiada... e torna-se amigo da jovem. Primeiro, passa a receber as cartas do enamorado nipónico, evitando as habituais discussões entre o senhorio e a filha. Depois, tornam-se amigos... Têm mais coisas em comum, Jing-wen também escreve e os dois inter-ajudam-se. Há uma altura em que Chow parece confundir as coisas, mas depressa percebe que isso não seria verdadeiro, antes ajudar aqueles dois amantes a unirem-se para sempre e a encontrarem a felicidade. Inspirado nesta história de paixão, Chow escreve 2047, um lúgubre conto entre o herói do seu romance e uma deslumbrante e ternurenta andróide, assistente do comboio (interpretada pela mesma Jing-wen).

Antigamente, se alguém tivesse algum segredo que não quisesse partilhar, subia uma montanha, procurava uma árvore... abria um buraco nela... e sussurrava o segredo dentro do buraco. A seguir, cobria-o com lama. E lá deixava o segredo para sempre...

Eles amam-se, ele deposita-lhe o seu segredo, mas ela hesita em partir com ele e os dois separam-se. Ela espera por ele 10 anos. 100 anos. 1000 anos. E o conto acaba com uma espera interminável, sem esperanças de um reencontro.


Na vida real, todavia, Jing-wen e o namorado acabam juntos. O amor é possível. O pai dela acaba por aceitar a relação e por dizer que o que quer, acima de tudo, é a felicidade da filha. Chow fica surpreendido com o sucesso da relação, com aquela felicidade que pensou inimaginável. Afinal, por 10, 100, ou 1000 anos, valerá sempre a pena esperar pelo verdadeiro amor. Jing-wen lê 2047, identifica-se bastante com a história, mas pede-lhe que altere aquele trágico e triste final. Face a este caso de sucesso, Chow lamenta - uma vez mais - as oportunidades perdidas no passado para amar a Srª Chan e percebe que quando não aceitamos uma resposta negativa, há sempre a possibilidade de conseguirmos o que queremos.

Por fim, em Singapura, aparece-lhe a Aranha Negra. Mais uma mulher, misteriosa e com uma mão enluvada. Coincidência? Chama-se Su Li-zhen. É fisicamente muito semelhante à sua amada de 62. Não é a mesma pessoa, ele sabe disso e esforça-se por convencer-se disso. Mais do que nunca, poderia tentar substituir aquela mulher que o marcou, mas seria mais um erro. No dia que se despediram, ela dise-lhe: abrace-me. Podem passar-se anos antes de nos voltarmos a ver. A invocação daquela fatídica despedida de 62 vem-nos novamente à memória. Desta vez, ele não resiste a convenções, não perde tempo, não quer repetir o passado: beija-a intensamente, demoradamente. Talvez um dia escape ao seu passado. Se isso acontecer, procure-me.

Um dia cruza-se ainda com Bai Ling. Ela ainda o ama. Mas Chow segue a sua viagem:

Ele não se virou para trás. Foi como se tivesse embarcado num comboio muito longo, rumo a um futuro incerto... atravessando a noite insondável.

Visualmente perfeita, filmada com elegância, sedução e intensa paixão artística, eis, pois, uma obra esteticamente irretocável, a começar no trabalho fotográfico de Christopher Doyle e a terminar nas qualidades multifacetadas de William Chang (direcção artística, figurinos e montagem). Os actores, meticulosamente enquadrados, emanam desejo e pura infelicidade na expressividade dos seus semblantes... como que num derradeiro requiem ao amor. Tony Leung Chiu-Wai, Maggie Cheung, Zhang Ziyi, Faye Wong, Gong Li, Carina Lau... que elenco impressionante. A banda sonora (Shigeru Umebayashi, entre outros) é absolutamente extraordinária, majestosa, inesquecível.

Eis, pois, uma obra-prima incontornável. Um dos mais belos e mais puros pedaços de cinema a que tive o prazer de assistir...

sexta-feira, 23 de julho de 2010

DISPONÍVEL PARA AMAR (2000)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
Título Original: Fa yeung nin wa
Realização: Wong Kar Wai
Principais Actores: Tony Leung Chiu-Wai, Maggie Cheung, Ping Lam Siu, Rebecca Pan, Kelly Lai Chen, Man-Lei Chan, Zhi-gong Chen

Crítica:

Y así pasan los días...
Y yo desesperado...

UM AMOR EM SEGREDO

Y tú, tú, contestando
!
Quizás, quizás, quizás...


Hong Kong, 1962. Dois desconhecidos, o Sr. Chow e a Srª Chan, mudam-se para apartamentos vizinhos, onde o vício maior é jogar Mahjong; quis o destino que a mudança dos dois se fizesse no mesmo dia. Ambos estão casados, mas ambos vivem as suas existências tristes e solitárias, uma vez que os respectivos cônjuges estão quase sempre ausentes. Ele é jornalista e tenta escrever uma série sobre artes marciais. Ela trabalha durante longas horas num escritório e passa as noites no cinema... Muitas são as vezes em que se cruzarão nas ruas do bairro, a caminho do restaurante, emanando charme, elegância e sedução. Tanto um como o outro resistem em admitir que são traídos, até ao dia em que, após uma série de olhares e de encontros cada vez mais sensuais, decidem enfrentar as coincidências: os seus companheiros não são senão amantes.
Começam por ensaiar o dia em que confrontarão os infiéis, mas coincidência das coincidências: vêem-se inevitavelmente assolados pela atracção e pelo desejo, tentados a tornarem-se, também eles, amantes.

Wong Kai Wai alia, poética e magistralmente, imagem e música, concretizando cenas em que a sensualidade do movimento corporal (da belíssima e deslumbrante Maggie Cheung) nos extasiam e arrepiam. Yumeji's Theme, a título de exemplo, é ciclicamente motivado e continuamente retomado, sublimando as cadências da sedução. Nota especial para os temas interpretados por Nat 'King' Cole, não só absolutamente envolventes como em perfeita sintonia com a imagem. Kar Wai brilha também no slow motion e na virtuosidade e graciosidade do movimento da câmera. Aquela cena em que a Srª Chan passeia pela ruela e desce as escadinhas de encontro ao restaurante é, provavelmente, o melhor exemplo destes eloquentes fragmentos de excelência... completamente sublime. A montagem de William Chang deixa o filme fluir aos mais variados ritmos, ora paulatinamente, ora apressadamente. A sensibilidade artística denota-se a cada compasso.

Disponível Para Amar não conta com a exuberância visual que viria a ostentar a obra-prima 2046, mas ainda assim é de um candor visual deveras fascinante. Para isso muito contribuiu a extraordinária fotografia de Christopher Doyle, que uma vez mais se alia ao poeta, juntamente com os inegáveis talentos de Pung-Leung Kwan e de Pin Bing Lee. A mise-en-scène é assaz cuidada e requintada, há um permanente jogo de cores (o verde, o magenta, o amarelo, o vermelho, o azul e o púrpura), uma construção do fotograma que se complexifica com os espelhos, os reflexos e as transparências, com as luzes e as sombras. Há sempre qualquer coisa que encobre parcialmente os planos e, frequentemente, o desfocar do primeiro plano marca presença primeira na perspectiva, enquanto que a acção se desenrola num segundo plano. Destaque ainda para a excepcional prestação de Tony Leung e para o extraordinário guarda-roupa.

Dominados por valores da moral vigente nos anos 60, Chow Mo-wan e Su Li-zhen Chan resistem relutantemente à paixão, incapazes de ceder à força maior dos instintos.

Sr. Chow: Sozinhos, somos livres para fazer muitas coisas. Tudo muda quando casamos. Tem tudo que ser decidido em conjunto, certo? Às vezes penso no que seria se não tivesse casado. Alguma vez pensou nisso?
Srª Chan: Talvez fosse mais feliz.

Porque não unir os dois destinos, cedendo à paixão? Estão ambos disponíveis para amar, mas não são capazes. Nos dedos carregam a aliança e a prisão. Limitam-se, pois, ao mais puro platonismo, nunca concretizando o seu amor. Uma relação secreta que se quis proibida aos olhos dos outros. Mas a felicidade só depende deles próprios. Eles ainda não sabem, mas vir-se-ão a arrepender de todo o tempo perdido.

Estás perdiendo el tiempo!
Pensando, pensando!
Por lo que más tú quieras
Hasta cuando, hasta cuando...

Ainda que partam do presente em relação a um futuro desconhecido, não conseguirão apagar a memória e o sentimento: o destino uniu-os e há um segredo como prova da sua eterna união, ainda que jamais se tornem a encontrar.

Antigamente, se alguém tivesse algum segredo que não quisesse partilhar, sabes o que fazia? (...) Subia uma montanha, procurava uma árvore... abria um buraco nela... e sussurrava o segredo dentro do buraco. A seguir, cobria-o com lama. E lá deixava o segredo para sempre...

No final, o Sr. Chow segreda alguma coisa para o templo sagrado de Angkor Wat, no Camboja, e a Srª Chan aparece com um filho pequeno. O segredo não é desvendado, mas fica implícito o seu mistério. E, com ele, o amor transcende o próprio tempo; prenúncio de 2046. Por tudo isto, a obra emana, toda ela, nostalgia. E é não só profundamente romântica como derradeiramente trágica.

Enfim, um clássico absoluto e uma das mais belas histórias de amor que o cinema imortalizou. Prepare-se para ser seduzido!

Quizás, quizás, quizás...

segunda-feira, 1 de março de 2010

AS CINZAS DO TEMPO (1994)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
Título Original: Dung che sai duk
Realização
: Wong Kar Wai

Principais Actores: Brigitte Lin, Leslie Cheung, Maggie Cheung, Tony Leung Chiu Wai, Jacky Cheung, Tony Leung Ka Fai, Li Bai, Carina Lau, Charlie Yeung

Versão Redux

Crítica:

TEMPO E MEMÓRIA

A memória é a raiz dos problemas dos Homens.
Sem um passado, todos os dias seriam um novo começo.


De todas as minhas relações em cinema, aquela que estabeleço com Wong Kar Wai é, porventura, a mais exótica. E a mais difícil, també
m. À primeira visualização, gosto do que vejo. Gosto do que oiço. Vejo e oiço paixão, paixão poética. Sei que essa paixão está lá, mas não a sinto, todavia. E é esse o meu dilema. Aconteceu-me o mesmo com este As Cinzas do Tempo. Chegou até mim uma arte que é, apesar de visualmente arrebatadora, não só extremamente complexa na sua linguagem como aparentemente autista, que fala apenas para si e consigo mesma e à qual me é impossível aceder. Os planos raramente nos mostram a totalidade do seu objecto. Parecem querer esconder ou encobrir segredos... Kar Wai filma com demasiada proximidade as suas personagens, parece que não as deixa respirar. E a nós próprios, espectadores, não nos é por isso possível uma perfeita concepção e compreensão do espaço em que se desenrola a cena. Depois, o argumento das suas histórias tem diferentes narrações, nunca cai em explicações e nunca assume uma forma linear, narrativamente. A sua estrutura temporal assume-se, ao invés disso, entre flashbacks e flashbacks, por meio de um trabalho de montagem escrupuloso que imprime ritmos muito próprios e variados ao filme.

Atingir a plenitude de uma obra de Kar Wai é, contudo, uma questão de vontade e de resistência. Como em todos os grandes poemas, é na segunda, terceira ou posterior leitura que começamos a descodificar-lhe a forma, a desbravar novos horizontes e a chegar ao seu íntimo. Um sedutor véu encobre o mistério. Se simplesmente nos deixarmos levar... um filme de Kar Wai poderá revelar-se uma experiência única e inesquecível de viscerais sensações e emoções. Porque Kar Wai é um poeta e é um mago. Cada uma das suas obras é um processo de encantamento. E como em todas as magias, é preciso acreditar para acontecer.

Se fecharmos os olhos e apenas ouvirmos a obra (dominando o idioma corre
nte, evidentemente), será possível compreendê-la. Não é necessário vê-la. Kar wai concebeu-a dessa forma. A música e os sons são uma balada para os nossos ouvidos e por si sós invadem-nos o inconsciente. Contudo, é na imagem que reside outro dos maiores fascínios do filme, indispensável para o vivermos em toda a sua intensidade, complexidade e totalidade. A fotografia de Christopher Doyle é assombrosa. Apesar das dificuldades técnicas que não possibilitaram grande nitidez na imagem do deserto (devido à escassa iluminação, sobretudo), a imagem granulada acabou por tornar-se uma opção estética e é ela a responsável por grande parte do estilo gráfico do filme. A manipulação cromática também foi uma opção recorrente, o que enche a tela de tons saturados.

Ou-yang Feng e Huang Yao-Shi são já duas personagens míticas do imaginá
rio chinês, graças à trilogia de Louis Cha. O final da história de ambas as personagens é sobejamente conhecido. O que Kar Wai faz com As Cinzas do Tempo é dar dimensão e profundidade à tragédia pessoal e interior dessas personagens, numa incursão imaginária ao seu passado, que lhes justifique o desfecho. A partir do almanaque chinês e das mudanças das estações, o poeta transcende o género wuxia e explora vários caminhos possíveis para cada uma das personagens, todas elas a sofrer com os remorsos de um passado que não podem mudar. Como se poderão redimir? Quanto mais se tenta esquecer, mais nítida se torna a memória. Por isso, a única salvação é a lembrança, não o esquecimento. O tempo é um caminho de apaziguamento e só a memória nos permitirá ultrapassar o sofrimento, fazendo-nos crescer e encarar o futuro.

É extremamente interessante perceber como Wong Kar Wai parte para a concepção de um filme sem argumento.
As Cinzas do Tempo nasce, pois, de uma visão inspirada e apaixonada que se constrói à medida que se sente. Não há riscos. Há apenas convicção e puro génio poético. Não conheço mais ninguém que faça cinema desta forma. É por essa razão que o cinema de Kar Wai é não só raro como único. E precioso.


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CINEROAD ©2020 de Roberto Simões