★★★★★
Título Original: 2046Realização: Wong Kar Wai
Principais Actores: Tony Leung Chiu-Wai, Maggie Cheung, Zhang Ziyi, Faye Wong, Gong Li, Takuya Kimura, Carina Lau, Chang Chen
Crítica:
O SEGREDO
Todas as recordações são rastos de lágrimas.
O título 2046 parece invocar o futuro, mas - antes de tudo - significa uma viagem ao passado. Lembremo-nos que 2046 era, em Disponível Para Amar, o número do apartamento para o qual Chow Mo-wan se mudara, em 1962, precisamente ao lado do de Su Li-zhen; mulher pela qual se apaixonaria para sempre. A relação deles era proibida, estavam ambos casados, e resumiu-se ao platonismo, ainda que o filho que aparece no final do filme sugira um fruto do amor de ambos. Desde o dia em que se despediram, sem que praticamente se tocassem, nunca mais se voltaram a encontrar. Arrepender-se-iam, pois estavam destinados um ao outro.
O amor é apenas uma questão de oportunidade.
De nada vale encontrar a pessoa certa antes ou depois da altura certa.
Se vivesse noutra época ou local, a minha história poderia ter tido um desfecho muito diferente.
De nada vale encontrar a pessoa certa antes ou depois da altura certa.
Se vivesse noutra época ou local, a minha história poderia ter tido um desfecho muito diferente.
Chow é o narrador. A sua narrativa não obedece a leis cronológicas, saltita por vários tempos, por diversas linhas diegéticas, dando conta dos seus sentimentos, das suas angústias e da forma como toda a sua existência influencia a sua criatividade e o seu universo de escrita. 2046 é, igualmente, o nome do romance que está a conceber; é como que uma ingressão futurista sobre a infindável busca do amor, muito à semelhança da sua vida.
Todos os que vão para 2046 têm a mesma intenção: querem resgatar memórias perdidas. Porque em 2046... nada muda. Mas ninguém sabe ao certo se isso é verdade ou não. Porque nunca ninguém de lá regressou. Excepto eu. Porque eu preciso de mudar.
Viajar ao futuro, no seu romance - e note-se a audácia da ideia -, não corresponde senão a um escape por meio do qual ele próprio regressa ao passado, às suas memórias. Só revivendo as memórias poderá reviver aquele grande amor.
Os anos passaram e ele está diferente. Arrepende-se todos os dias de não ter vivido o hoje no ontem... e, quiçá em busca do tempo perdido, procura o amor em todas as mulheres pelas quais se interessa minimamente. Torna-se um mulherengo, um bon vivant.
Primeiro, conhecemos Lulu - a cantora do clube nocturno de Singapura com a qual Chow se envolvera e que o jornalista reencontra no hotel, a ocupar o quarto 2046. Lulu não se recorda do nosso protagonista, que opta por ocupar o 2047, mas o reencontro proporciona-lhe, a ele, um nostálgico regresso ao passado. Depois, são-nos apresentadas as duas filhas do Sr. Wang, proprietário do hotel. Jing-wen, a mais velha, está perdidamente apaixonada por um japonês, o que motiva intensas discussões com o pai, ao som de uma ópera magnífica, ainda que ensurdecedora para os moradores. A mais nova é uma miúda precoce e irresponsável, com sede de experiências sexuais, que cedo foge e deixa a família. Em seguida, é-nos introduzida a nova ocupante do 2046: Bai Ling. Os dois virão a envolver-se ardentemente, mas Chow limitar-se-á a usar essa irrersistível mulher, pagando-lhe os préstimos sexuais. Prostituta. Bai Ling, contudo, deixar-se-á envolver demasiado e apaixonar-se-á verdadeiramente... Ah Ping, o editor e amigo do jornalista, bem que a alerta que ele não é de confiança: Chow tem em Bai Ling uma oportunidade para se sentir realmente amado. Não obstante, jamais conseguirá substituir Su Li-zhen no seu coração. As memórias do passado não se extinguem.
Encontremo-nos novamente. Se continuares a achar que não devemos estar juntos, diz-mo sinceramente. Naquele dia, há seis anos, formou-se um arco-íris no meu coração. Ainda lá está. Arde como uma chama dentro de mim. Mas qual é a verdadeira natureza dos teus sentimentos por mim? São como um arco-íris, que se forma depois de uma chuvada? Ou será que... esse arco-íris se desvaneceu há muito? Espero uma resposta tua.
Quando Jing-wen regressa ao hotel, o seu amor proibido com o japonês continua... Chow revê-se naquela relação adiada... e torna-se amigo da jovem. Primeiro, passa a receber as cartas do enamorado nipónico, evitando as habituais discussões entre o senhorio e a filha. Depois, tornam-se amigos... Têm mais coisas em comum, Jing-wen também escreve e os dois inter-ajudam-se. Há uma altura em que Chow parece confundir as coisas, mas depressa percebe que isso não seria verdadeiro, antes ajudar aqueles dois amantes a unirem-se para sempre e a encontrarem a felicidade. Inspirado nesta história de paixão, Chow escreve 2047, um lúgubre conto entre o herói do seu romance e uma deslumbrante e ternurenta andróide, assistente do comboio (interpretada pela mesma Jing-wen).
Antigamente, se alguém tivesse algum segredo que não quisesse partilhar, subia uma montanha, procurava uma árvore... abria um buraco nela... e sussurrava o segredo dentro do buraco. A seguir, cobria-o com lama. E lá deixava o segredo para sempre...
Eles amam-se, ele deposita-lhe o seu segredo, mas ela hesita em partir com ele e os dois separam-se. Ela espera por ele 10 anos. 100 anos. 1000 anos. E o conto acaba com uma espera interminável, sem esperanças de um reencontro.
Na vida real, todavia, Jing-wen e o namorado acabam juntos. O amor é possível. O pai dela acaba por aceitar a relação e por dizer que o que quer, acima de tudo, é a felicidade da filha. Chow fica surpreendido com o sucesso da relação, com aquela felicidade que pensou inimaginável. Afinal, por 10, 100, ou 1000 anos, valerá sempre a pena esperar pelo verdadeiro amor. Jing-wen lê 2047, identifica-se bastante com a história, mas pede-lhe que altere aquele trágico e triste final. Face a este caso de sucesso, Chow lamenta - uma vez mais - as oportunidades perdidas no passado para amar a Srª Chan e percebe que quando não aceitamos uma resposta negativa, há sempre a possibilidade de conseguirmos o que queremos.
Por fim, em Singapura, aparece-lhe a Aranha Negra. Mais uma mulher, misteriosa e com uma mão enluvada. Coincidência? Chama-se Su Li-zhen. É fisicamente muito semelhante à sua amada de 62. Não é a mesma pessoa, ele sabe disso e esforça-se por convencer-se disso. Mais do que nunca, poderia tentar substituir aquela mulher que o marcou, mas seria mais um erro. No dia que se despediram, ela dise-lhe: abrace-me. Podem passar-se anos antes de nos voltarmos a ver. A invocação daquela fatídica despedida de 62 vem-nos novamente à memória. Desta vez, ele não resiste a convenções, não perde tempo, não quer repetir o passado: beija-a intensamente, demoradamente. Talvez um dia escape ao seu passado. Se isso acontecer, procure-me.
Um dia cruza-se ainda com Bai Ling. Ela ainda o ama. Mas Chow segue a sua viagem:
Ele não se virou para trás. Foi como se tivesse embarcado num comboio muito longo, rumo a um futuro incerto... atravessando a noite insondável.
Visualmente perfeita, filmada com elegância, sedução e intensa paixão artística, eis, pois, uma obra esteticamente irretocável, a começar no trabalho fotográfico de Christopher Doyle e a terminar nas qualidades multifacetadas de William Chang (direcção artística, figurinos e montagem). Os actores, meticulosamente enquadrados, emanam desejo e pura infelicidade na expressividade dos seus semblantes... como que num derradeiro requiem ao amor. Tony Leung Chiu-Wai, Maggie Cheung, Zhang Ziyi, Faye Wong, Gong Li, Carina Lau... que elenco impressionante. A banda sonora (Shigeru Umebayashi, entre outros) é absolutamente extraordinária, majestosa, inesquecível.
Eis, pois, uma obra-prima incontornável. Um dos mais belos e mais puros pedaços de cinema a que tive o prazer de assistir...
Tenho alguma curiosidade em saber a nota que deste. Já falámos bastantes vezes deste filme e do realizador...
ResponderEliminarJOÃO: Obrigado ;) Suponho que te refiras ao IN THE MOOD FOR LOVE. Ainda não vi. A falha será colmatada em breve. Aliás, Kar-Wai está-me nesta altura altamente convidativo, pelo que me irei aventurar pela sua obra nos tempos próximos. 2046 deixou-me "água na boca".
ResponderEliminarSei que gostaste da crítica. Não sei é se concordaste... E gostava que me confrontasses. Fala-me de 2046. O que achaste do filme? Da história, nomeadamente?
Cumps.
Roberto Simões
CINEROAD - A Estrada do Cinema
Morro de vontade de ver este filme, mas até agora não encontrei.
ResponderEliminarps: vou te enviar o e-mail hoje a noite! desculpe pela demora, mas é que a semana foi tumultuada. ;)
Não conheço muito a obra de Kar-Wai, ainda, e apesar deste 2046 ser paradoxal, o certo é que se percebe perfeitamente o gabarito de um realizador como este. Não tenho como não to recomendar.
ResponderEliminarQuanto ao outro assunto, quando quiseres! ;)
Cumps.
Roberto Simões
CINEROAD - A Estrada do Cinema
JOÃO: Eu gosto bastante da banda sonora... É uff... é muito boa mesmo. A repetição dos temas faz com que o filme ganhe uma cadência hipnótica. A mim, deu-me para a sonolência. Os efeitos secundários são sempre muito subjectivos e dependem de inúmeros factores, como se sabe. O certo é que a primeira vez que me aventurei pelo filme, adormeci 15 minutos depois de ter começado. A segunda vez, adormeci aos 30 minutos e dormi durante largas horas. Em plena tarde. A terceira vez consegui vê-lo de princípio ao fim. Algures entre o fascinado e o entediado, acabando incontornavelmente entediado. Não só pela banda sonora, mas também. É aquilo que eu disse: o filme é esteticamente irretocável. Mas não tem conflitos maiores e logo não há estímulo. Falta-lhe, a meu ver, substância narrativa. Acredito que se ver filmes como IN THE MOOD FOR LOVE todo aquele universo venha a ganhar algum fascínio. Como filme isolado, não é lá muito fascinante, apesar da parte visual.
ResponderEliminarKar-wai é um autor. E quando se trata de autores, a obra ou o compêndio de obras é significativo para a análise de cada filme. A minha crítica e a minha opinião pessoal carece assumidamente desse desconhecimento da obra do autor.
Analisando a obra, é provável que venha a reconhecer maiores qualidades a um filme como 2046. Como filme isolado - e o próprio Kar-wai afirmou que 2046 não é necessariamente uma continuação - falta-lhe qualquer coisa. Lá está, no caso específico de Kar-wai, 2046 não funcionará, porventura, isolado, mas apenas contextualizado na sua obra artística/carreira cinematográfica.
Por isto te pedi especialmente para me/nos falares mais sobre 2046. Sobretudo para perceber melhor a obra, para além do que já li e a partir da tua opinião, uma vez que depreendi que este esclarecimento me seria - particularmente - interessante.
Obrigado ;)
Cumps.
Roberto Simões
CINEROAD - A Estrada do Cinema
JOÃO: Fá-lo-ei, seguramente. Obrigado pelas sugestões e pela orientação. Nos próximos meses darei depois a conhecer as minhas descobertas.
ResponderEliminarCumps.
Roberto Simões
CINEROAD – A Estrada do Cinema
Parece que essa ânsia de o rever deu os seus frutos... ;D Fico à espera de um novo texto (ainda fui ler o antigo mal li o do In the Mood).
ResponderEliminarAbraço
Meu sonho é encontrar este filme para ver!
ResponderEliminarEste filme foi re-avaliado a 25 de Julho de 2010.
ResponderEliminarA classificação anterior era BOM.
Roberto Simões
» CINEROAD - A Estrada do Cinema «
TIAGO RAMOS: Primeiramente não percebi muito do filme, mas agora que vi o DISPONÍVEL PARA AMAR apercebi-me da extraordinária obra-prima que 2046 constitui.
ResponderEliminarFLÁVIO GONÇALVES: E que frutos! Descobri um filme novo! ;) Genial.
WALLY: Veja primeiro o DISPONÍVEL PARA AMAR - IN THE MOOD FOR LOVE. Depois veja esse. É o melhor filme de Kar Wai que conheço.
Obrigado uma vez mais ao João Gonçalves, do Voices of a Distant Star. Redescobri uma obra-prima e dou-te total razão.
Cumps.
Roberto Simões
» CINEROAD - A Estrada do Cinema «
(peço desculpa pela falta de acentos mas estou com um problema no teclado)
ResponderEliminarAinda nao vi mas gostei muito da critica. Vou ver se o arranjo.
DIOGO F: Muito obrigado! ;) Aconselho-te a veres primeiro o DISPONÍVEL PARA AMAR. Será mais fácil, depois, entrares na esfera de compreensão de 2046.
ResponderEliminarJOÃO GONÇALVES: Muito obrigado, João. Kar Wai tornou-se, em poucos meses, um dos meus realizadores de eleição.
Cumps.
Roberto Simões
» CINEROAD - A Estrada do Cinema «
Ótimas postagens sobre o wong kar wai, preciso ver esses filmes!
ResponderEliminarSAULO S: Obrigado ;) É sem dúvida um virtuoso cineasta. A descobrir!
ResponderEliminarCumps.
Roberto Simões
» CINEROAD - A Estrada do Cinema «
Ò roberto, descrveste exactamente a mesma coisa que me aconteceu quando vi o "2046" (alugado na Bloclbsuter na altura - tal como "In The Mood for love" muito tempo antes).
ResponderEliminarFoi um aluguer para fim-de-semana inteiro (5 dias salvo erro). Adormeci das duas primeiras vezes, em ambos os filmes, por pouco acontecer e serem muito hipnóticos (o som e o visual languido, ajudam muito).
Mas depois quando o vi inteirinho (e por algumas partes já ter visto mas não fazerem sentido ainda)... bum! Que filmaço!!! Que cores, num cruzamento sci-fi deslocado por ser uma história de amor irrepetível e que se nota claramente que já vinha de trás, do "In the Mood for love". A mesma personagem, a mesma dor, tudo mas agora amplificado e até com mais entrega.
Desde que o entendi (penso eu que o entendi pois é bem complexo quando se pensa nele com o filme anterior de Kar Wai), como dizia, desde então que o classifiquei de ovni cinéfilo.
É um filme que só resulta depois de instaladas algumas condições: além da predisposição... os sentimentos.
É bom mas mesmo assim prefiro o "In the mood for love", que é bem mais autónomo.
Obs. desconhecia essa relação do filme "Days of being wild".
Sendo assim temos aqui uma aparente trilogia:
"Days of being wild" > "In The Mood for love" > "2046" ... hummm!
ARM PAULO FERREIRA: Sim, sim, a trilogia não é, digamos, oficial, mas depreende-se nas entrelinhas. Ainda não vi esse primeiro, OS DIAS SELVAGENS, mas quero muito ver.
ResponderEliminarQuanto a 2046 é um "ovni" assombroso! Genial! ;) Gosto imenso do DISPONÍVEL PARA AMAR, é um clássico absoluto, mas ainda considero este superior.
Cumps.
Roberto Simões
» CINEROAD - A Estrada do Cinema «
Também não vi o ponto inicial desta suposta trilogia disfarçada. Desconfio que se o vir, vai ser para adormecer nas 2 ou 3 primeiras vezes também... e depois Zás! Faz-se luz... mas isto se o visse. na realidade não ando muito virado para estes (tenho já alguns por ver e o tempo é cada vez mais escasso.)
ResponderEliminarObs: é o pouco tempo e ter-se vida familiar e filhos, não é fácil e muda um cinéfilo -acredita! É a vida!!!
Força com essas reviews!
Ahh... e vê se apanhas/descobres o "La Graine et Mulet" - O segredo de um cuscuz (2007) de Abdel Kechiche. Eu fiquei muito agradado pelo filme (já o vi há meses) e pelas ilações que se tiram dele. Recomendo.
ARM PAULO FERREIRA: Não duvido! ;) Já vi esse filme e é, sim, um bom filme!
ResponderEliminarCumps.
Roberto Simões
» CINEROAD - A Estrada do Cinema «