★★★★★
Realização: Michael Haneke
Principais Actores: Susanne Lothar, Ulrich Mühe, Arno Frisch, Frank Giering
Crítica:
Ouve-se, ao longe, o eco de Laranja Mecânica. Porém, o cinema de Michael Haneke confronta-nos com outros horizontes. Brincadeiras Perigosas não é senão um estimulante exercício narrativo, aberto a múltiplas interpretações, filmado com realismo e frieza quanto baste. O tom é marcado pela verdadeira - ainda que improvável - união entre tragédia e comédia. E o resultado é, no mínimo, insólito. Eis, pois, uma experiência intensa, de viscerais emoções, que certamente não deixará ninguém indiferente e que, cumprirá, desse modo, os desígnios para que foi concebida.
Realidade ou ficção, ambas podem ser perversas, inquietantes, perturbadoras, cruéis ou, simplesmente, más. Sabemo-lo bem. O que muda, consoante cada dimensão, é a nossa função nela. Na realidade, somos os próprios actores da história - agressores ou vítimas. Na ficção, estamos condenados ou limitados ao papel de leitores/espectadores e, à partida, estabelecemos uma relação passiva para com os actos praticados. Mas será bem assim? Será a relação dos espectadores meramente passiva? Ao consumir violência na literatura e nos media, não terá o papel do espectador sérias implicações na realidade?
É disso que nos dá conta este filme magistral. Como? Sendo uma obra auto-reflexiva, o mundo ficcional de Brincadeiras Perigosas estabelecerá uma relação de cumplicidade - meta-diegética - com o espectador. Mais concretamente, é a personagem Paul (Arno Frisch) que nos pisca os olhos e que, intencionalmente, nos convida a entrar no jogo e a tomar consciência do quão participativos somos ou podemos ser enquanto espectadores de uma representação de violência. É por meio deste artifício narrativo que Haneke nos atinge o consciente: porque é que assistimos àquela tortura assustadora, quais voyeurs sem escrúpulos, e desenvolvemos alguma empatia por aqueles dois... simpáticos e extremamente delicados, depois indiscretos e absolutamente inconvenientes e, às tantas, autênticos sádicos e hediondos monstros, inteiramente desprovidos de valores e sentimentos?! Somos convidados a entrar no jogo e, de repente, jogamo-lo quase compulsivamente querendo saber como será o seu desfecho. E você o que acha? Acha que têm hipóteses de ganhar? Está do lado deles? Em quem vai apostar? Como é que nós, sem abandonar a sala ou desligar o ecrã, alinhamos na aposta? Seremos também, e de alguma forma, monstros? Parceiros de uma juventude que se rende ao fascínio da violência e da apatia moral? Paul e Peter são meros artefactos, é certo, mas basta ler um jornal para saber como existem nos nossos dias. E, quando menos esperarmos, podem estar à nossa porta, inesperadamente. A ficção imita a realidade? Claro que sim. Mas a realidade imita - e cada vez mais, aparentemente - a ficção. De artefactos a concretizações de alma, carne e osso é, às vezes, um passo. E por isso temos que nos questionar a propósito da violência gratuita que, constantemente, invade a literatura, a televisão, o cinema, a internet... sem apelo à reflexão. Quantas gerações não têm crescido com a violência gratuita como capítulo imprescindível dos comportamentos em sociedade? É que nos media estamos no plano ficcional, ainda pode possibilitar divertimento. Agora na realidade as consequências existem e causam sofrimento e destruição.
Cada vez que Paul se vira para a câmera e nos olha nos olhos, reconhecemos o carácter conceptual que a obra assumiu: há pura manipulação; e muita ironia, nisto tudo. Se ainda algumas dúvidas restassem, isso torna-se mais do que evidente quando Anna dispara sobre Peter e finalmente vibramos com o sabor da vingança (muito satisfeitos, admitamos). É aí que Paul trata logo de procurar o comando e de rebobinar a acção. Volta atrás no tempo e altera o curso que a acção havia tomado. Estamos, por isso, num terreno onde tudo é possível e onde tudo pode acontecer: a ficção. Podemos respirar de alívio. Na realidade, não teremos comando. E, se o tivermos, certamente não rebobinará. Há, por isso, uma importante e pertinente reflexão a fazer sobre as consequências possíveis da representação da violência. Brincadeiras Perigosas convoca toda essa reflexão.
No final, o diálogo entre Peter e Paul é por demais elucidativo:
O filme? O filme tem uma mise-en-scène relativamente simples, mas é em tudo eficaz; um pouco como os enquadramentos, que apesar de tudo ajudam a construir uma estranha sensação de claustrofobia. O filme põe as personagens numa situação-limite. E, por meio delas, somos igualmente levados ao extremo da dor e da humilhação. É duro. É chocante. E é preciso ser forte. Enfim, o filme? É uma obra incontestavelmente brilhante. A não perder.
UM-DÓ-LI-TÁ
Ouve-se, ao longe, o eco de Laranja Mecânica. Porém, o cinema de Michael Haneke confronta-nos com outros horizontes. Brincadeiras Perigosas não é senão um estimulante exercício narrativo, aberto a múltiplas interpretações, filmado com realismo e frieza quanto baste. O tom é marcado pela verdadeira - ainda que improvável - união entre tragédia e comédia. E o resultado é, no mínimo, insólito. Eis, pois, uma experiência intensa, de viscerais emoções, que certamente não deixará ninguém indiferente e que, cumprirá, desse modo, os desígnios para que foi concebida.
Realidade ou ficção, ambas podem ser perversas, inquietantes, perturbadoras, cruéis ou, simplesmente, más. Sabemo-lo bem. O que muda, consoante cada dimensão, é a nossa função nela. Na realidade, somos os próprios actores da história - agressores ou vítimas. Na ficção, estamos condenados ou limitados ao papel de leitores/espectadores e, à partida, estabelecemos uma relação passiva para com os actos praticados. Mas será bem assim? Será a relação dos espectadores meramente passiva? Ao consumir violência na literatura e nos media, não terá o papel do espectador sérias implicações na realidade?
É disso que nos dá conta este filme magistral. Como? Sendo uma obra auto-reflexiva, o mundo ficcional de Brincadeiras Perigosas estabelecerá uma relação de cumplicidade - meta-diegética - com o espectador. Mais concretamente, é a personagem Paul (Arno Frisch) que nos pisca os olhos e que, intencionalmente, nos convida a entrar no jogo e a tomar consciência do quão participativos somos ou podemos ser enquanto espectadores de uma representação de violência. É por meio deste artifício narrativo que Haneke nos atinge o consciente: porque é que assistimos àquela tortura assustadora, quais voyeurs sem escrúpulos, e desenvolvemos alguma empatia por aqueles dois... simpáticos e extremamente delicados, depois indiscretos e absolutamente inconvenientes e, às tantas, autênticos sádicos e hediondos monstros, inteiramente desprovidos de valores e sentimentos?! Somos convidados a entrar no jogo e, de repente, jogamo-lo quase compulsivamente querendo saber como será o seu desfecho. E você o que acha? Acha que têm hipóteses de ganhar? Está do lado deles? Em quem vai apostar? Como é que nós, sem abandonar a sala ou desligar o ecrã, alinhamos na aposta? Seremos também, e de alguma forma, monstros? Parceiros de uma juventude que se rende ao fascínio da violência e da apatia moral? Paul e Peter são meros artefactos, é certo, mas basta ler um jornal para saber como existem nos nossos dias. E, quando menos esperarmos, podem estar à nossa porta, inesperadamente. A ficção imita a realidade? Claro que sim. Mas a realidade imita - e cada vez mais, aparentemente - a ficção. De artefactos a concretizações de alma, carne e osso é, às vezes, um passo. E por isso temos que nos questionar a propósito da violência gratuita que, constantemente, invade a literatura, a televisão, o cinema, a internet... sem apelo à reflexão. Quantas gerações não têm crescido com a violência gratuita como capítulo imprescindível dos comportamentos em sociedade? É que nos media estamos no plano ficcional, ainda pode possibilitar divertimento. Agora na realidade as consequências existem e causam sofrimento e destruição.
- Porque é que nos matam? - pergunta Anna, brilhantemente interpretada por Susanne Lothar.
- E o valor do entretenimento? Seríamos privados desse prazer - responde Peter (Frank Giering).
- E o valor do entretenimento? Seríamos privados desse prazer - responde Peter (Frank Giering).
Cada vez que Paul se vira para a câmera e nos olha nos olhos, reconhecemos o carácter conceptual que a obra assumiu: há pura manipulação; e muita ironia, nisto tudo. Se ainda algumas dúvidas restassem, isso torna-se mais do que evidente quando Anna dispara sobre Peter e finalmente vibramos com o sabor da vingança (muito satisfeitos, admitamos). É aí que Paul trata logo de procurar o comando e de rebobinar a acção. Volta atrás no tempo e altera o curso que a acção havia tomado. Estamos, por isso, num terreno onde tudo é possível e onde tudo pode acontecer: a ficção. Podemos respirar de alívio. Na realidade, não teremos comando. E, se o tivermos, certamente não rebobinará. Há, por isso, uma importante e pertinente reflexão a fazer sobre as consequências possíveis da representação da violência. Brincadeiras Perigosas convoca toda essa reflexão.
No final, o diálogo entre Peter e Paul é por demais elucidativo:
- Mas a ficção é real, não é?
- Como Assim?
- Vê-se no filme, certo?
- Claro.
- É, então, tão real quanto a realidade que vemos.
- Como Assim?
- Vê-se no filme, certo?
- Claro.
- É, então, tão real quanto a realidade que vemos.
O filme? O filme tem uma mise-en-scène relativamente simples, mas é em tudo eficaz; um pouco como os enquadramentos, que apesar de tudo ajudam a construir uma estranha sensação de claustrofobia. O filme põe as personagens numa situação-limite. E, por meio delas, somos igualmente levados ao extremo da dor e da humilhação. É duro. É chocante. E é preciso ser forte. Enfim, o filme? É uma obra incontestavelmente brilhante. A não perder.
Sem dúvida, um dos melhores filmes do senhor Haneke. A primeira vez que o vi foi já há bastante tempo numa transmissão da rtp2 e lembro-me bem que fiquei completamente atónito.
ResponderEliminarVi o outro Funny Games (com a Naomi Watts) e gostei bastante. Terei que ver este também.
ResponderEliminarÁLVARO MARTINS: É de deixar qualquer um atónico, de facto. As imagens e as vivências daquelas personagens ainda me assombram a memória :D O filme é brilhante.
ResponderEliminarRICARDO V.: Ainda não vi a versão americana, é possível que ainda a veja. Na verdade, estou muito curioso para vê-la, apesar de saber o que sei a seu respeito. Ou seja, que é uma cópia fidedigna. Quanto a este original, recomendo-o mesmo.
Cumps.
Roberto Simões
CINEROAD - A Estrada do Cinema
Eu vi a versão americana de Funny Games - Violência Gratuita, por aqui. Comparado ao original perde muito. Primeiro porque os tempos hoje são outros, algumas coisas não chocam tanto como antes. E, segundo, por não existir mais surpresas, como é o caso do primeiro.
ResponderEliminarO que me pergunto é o porquê do remake plano-a-plano.
Outro filme que trata muito bem da banalização da violência é Onde Os Fracos Não tem Vez, dos irmãos Coen.
Abraço.
Cinema para Desocupados
Muito boa análise, Roberto! Apesar de ter visto o remake shot by shot, penso que é legítimo dizer-te que captaste bem a mensagem do filme. É esta a força de Haneke - a crítica social, quer pela via mais chocante, como é o caso deste filme ou de "Benny's Video", quer pela via mais contido, como eviencia o novo "O Laço Branco", que tens que ver enquanto está nas salas de cinema!
ResponderEliminarAbraço!
MATEUS, O INDOLENTE: O remake jamais prejudicará a qualidade da obra original, é certo. Ainda não o vi, mas conto vê-lo.
ResponderEliminarDada a natureza do remake (shot by shot), os efeitos 'surpresa' e 'choque' só funcionarão uma vez, é evidente. À partida, e do meu ponto de vista, só torna o remake um caso interessante para estudo. É por isso que estou ansioso por vê-lo.
FLÁVIO GONÇALVES: Obrigado! ;) É sem dúvida um filme brilhante. Quanto a'O LAÇO BRANCO, não sei se o verei no cinema. Mas o DVD não dispensarei nem por nada! ;D
Cumps.
Roberto Simões
CINEROAD - A Estrada do Cinema
Aguçaste-me, definitivamente, a curiosidade! Só vi o remake - e o veredicto foi muito positivo -, e este ainda será um a procurar!
ResponderEliminarAbraço
JACKSON: Eu ainda não vi o remake, mas à partida não esperes nada de diferente daquilo que já viste. Talvez diferenças tecnicamente subtis ou mais significativas nas interpretações, mas de resto... Remake cena a cena pelo mesmo realizador, não há porque esperar muito mais.
ResponderEliminarRAFHAEL VAZ: Muito obrigado! ;) O filme é sem dúvida chocante e sublime e revejo-me nas suas palavras.
Está falando sério? Pensou enviar-me um e-mail com essa sugestão? ;D Coincidência. Se tiver mais sugestões de resenhas que gostaria de ver aqui publicadas
por favor não hesite em formulá-las! O e-mail do blogue é: geral.cineroad@hotmail.com
Cumps.
Roberto Simões
CINEROAD - A Estrada do Cinema
Parabéns pela construção do texto! Um dos mais inspirados por aqui.
ResponderEliminarPrefiro a versão com Naomi Watts.
abração!
Curiosamente só vi este original depois do remake. Tive medo, muito medo. A música que aparece nos créditos finais (segundo me lembro surge noutros contextos durante o filme mas já não sei especificar quais) é aterradora, e fez-me acelerar na saída da sala do cinema, porque sinceramente já não aguentava mais tal martírio. (Quando cheguei a casa, já recuperada, vim procurá-la à net e penso que na altura até a postei no meu blog). Como seria de esperar, ambas as versões são muito parecidas, e ambos me deixaram taquicárdica.
ResponderEliminarCRISTIANO CONTREIRAS: A sério? Acho que exagera seriamente. Quando tiver tempo e inspiração, ainda sujeitarei o texto ao corte e à costura, para ficar mais fluido. Mas ainda bem que gostou! ;) Como já disse e redisse, ainda não vi o remake, mas fá-lo-ei em breve e depois darei conta da minha opinião.
ResponderEliminarADEK: :D E quase que não é para menos. Grande filme, incontornavelmente.
Cumps.
Roberto Simões
CINEROAD - A Estrada do Cinema
Assisti somente a refilmagem que fizeram recentemente, e como sempre Haneke manteve o ar de insanidade provocadora, ou seja no fundo nem tão insano asim...
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