★★★★★
Realização: Michael Haneke
Principais Actores: Juliette Binoche, Luminita Gheorghiu, Helene Diarra, Sepp Bierbichler
Crítica:
UM MUNDO FRAGMENTADO
Sozinha? Lugar secreto? Bandido? Má consciência? Triste? Aprisionada? Quem quebra o enigma? Quem sabe, ao certo, por que caminhos avança a nossa civilização? Se a primeira cena deixa o mote, a última esbofeteia-nos com a sua frontalidade e simplicidade: uma criança deixa a sua mensagem, em linguagem gestual, e não entendemos nada. Nem um único gesto. É um código desconhecido para a maioria das pessoas, um pouco como aquele que se impôs na vida e no dia-a-dia das sociedades modernas. O mundo conhece a globalização e, quando estaríamos num momento histórico de união, erguem-se entre nós barreiras que, misteriosamente, nos separam. Estaremos condenados à incomunicabilidade?
Código Desconhecido, de Michael Haneke, confronta-nos com o nosso reflexo. E o resultado abala-nos a consciência. A Humanidade avança para a desumanização. É desse modo que estamos e é desse modo que somos. Não é perturbante? É claro que tudo aquilo é representação, é ficção. Aliás, Haneke não perde a oportunidade - uma vez mais - para desenvolver aquela que é uma das suas temáticas predilectas: a auto-consciência da ficção enquanto artifício. Neste filme, o cineasta serve-se mesmo da mise en abyme: note-se a cena em que a personagem Anne está perante a câmera e o realizador lhe exige que seja verdadeira - há um paralelo imediato com a relação Binoche-Haneke. A cena da piscina e do miúdo no 20º andar, por exemplo, é-nos apresentada como se fizesse parte da diegese do filme. Às tantas, todavia, percebemos que é uma cena de um filme dentro do filme de Haneke. O que é interessante perceber é como o filme é tão real, mesmo com ficção dentro da ficção e sabendo nós perfeitamente o domínio que pisamos.
O argumento desenvolve-se em fragmentos, separados entre si por cortes bruscos e inesperados. Um pouco como as relações que as pessoas desenvolvem no dia-a-dia, se é que lhes podemos chamar relações. Talvez contactos seja a palavra mais apropriada. Sobretudo nos meios urbanos, o que as pessoas têm entre si são contactos. Meros contactos de ocasião, fugazes e superficiais. Aliás, as pessoas evitam o contacto umas com as outras, mesmo sem saberem bem porquê. Falemos, a propósito, das cenas que se passam no metro, que sinedoquizam tão bem isto de que estou a falar. E todos sabem do que estou a falar. Todos nós já entrámos num metro. As regras de existência dentro de um desses fatídicos meios de transporte são ainda mais exigentes. Damos por elas implicitamente e seguimo-las escrupulosamente. Não podemos tocar em ninguém. Não podemos olhar directamente para ninguém. Temos que ignorar os cheiros. E os mendigos. Não podemos ceder o nosso lugar à velhinha que está ali em pé, porque nem sequer a vimos ainda. Temos que segurar firmemente a mala e proteger a carteira. Sabemos que podemos ser assaltados a qualquer momento. Não são estas as regras de existência dentro de um metro? São. Mas porque é que somos assim? Porque é que aceitamos estes códigos como se fossem princípios inquestionáveis? Porque é que não dizemos mais um bom dia, um boa tarde ou um boa noite, um obrigado ou um desculpe, porque é que não somos delicados com as pessoas? Que monstros estamos nós a ser - todos os dias - sem querer admitir que o somos? Os monstros são os outros? Tão depressa são os outros como somos nós! A cena da mendiga, logo a princípio, dá alento a esta tese. O preto repreende o miúdo porque foi mal-educado para a mendiga. O preto acaba na esquadra, a mendiga deportada para o seu país de origem e o miúdo acaba impune. Efeito borboleta, efeito caos, efeito perdição. Estamos todos interligados, mas ignoramo-lo. Constantemente. E, à medida que o tempo passa, entendemo-nos cada vez menos. Somos intolerantes aos costumes, tradições, religiões e atitudes. E, por fim, somos intolerantes connosco mesmos. Nem o simples, necessário e tão humano acto de chorar toleramos mais. Estaremos condenados à incomunicabilidade? Estamos, parece-me, condenados ao assumir de uma nova identidade. Mesmo que não nos identifiquemos mais com ela.
Sublimemente interpretado e orquestrado, eis, pois, um filme magnífico que é, em simultâneo, um ensaio sociológico e antropológico extremamente importante e absolutamente memorável.
Código Desconhecido, de Michael Haneke, confronta-nos com o nosso reflexo. E o resultado abala-nos a consciência. A Humanidade avança para a desumanização. É desse modo que estamos e é desse modo que somos. Não é perturbante? É claro que tudo aquilo é representação, é ficção. Aliás, Haneke não perde a oportunidade - uma vez mais - para desenvolver aquela que é uma das suas temáticas predilectas: a auto-consciência da ficção enquanto artifício. Neste filme, o cineasta serve-se mesmo da mise en abyme: note-se a cena em que a personagem Anne está perante a câmera e o realizador lhe exige que seja verdadeira - há um paralelo imediato com a relação Binoche-Haneke. A cena da piscina e do miúdo no 20º andar, por exemplo, é-nos apresentada como se fizesse parte da diegese do filme. Às tantas, todavia, percebemos que é uma cena de um filme dentro do filme de Haneke. O que é interessante perceber é como o filme é tão real, mesmo com ficção dentro da ficção e sabendo nós perfeitamente o domínio que pisamos.
O argumento desenvolve-se em fragmentos, separados entre si por cortes bruscos e inesperados. Um pouco como as relações que as pessoas desenvolvem no dia-a-dia, se é que lhes podemos chamar relações. Talvez contactos seja a palavra mais apropriada. Sobretudo nos meios urbanos, o que as pessoas têm entre si são contactos. Meros contactos de ocasião, fugazes e superficiais. Aliás, as pessoas evitam o contacto umas com as outras, mesmo sem saberem bem porquê. Falemos, a propósito, das cenas que se passam no metro, que sinedoquizam tão bem isto de que estou a falar. E todos sabem do que estou a falar. Todos nós já entrámos num metro. As regras de existência dentro de um desses fatídicos meios de transporte são ainda mais exigentes. Damos por elas implicitamente e seguimo-las escrupulosamente. Não podemos tocar em ninguém. Não podemos olhar directamente para ninguém. Temos que ignorar os cheiros. E os mendigos. Não podemos ceder o nosso lugar à velhinha que está ali em pé, porque nem sequer a vimos ainda. Temos que segurar firmemente a mala e proteger a carteira. Sabemos que podemos ser assaltados a qualquer momento. Não são estas as regras de existência dentro de um metro? São. Mas porque é que somos assim? Porque é que aceitamos estes códigos como se fossem princípios inquestionáveis? Porque é que não dizemos mais um bom dia, um boa tarde ou um boa noite, um obrigado ou um desculpe, porque é que não somos delicados com as pessoas? Que monstros estamos nós a ser - todos os dias - sem querer admitir que o somos? Os monstros são os outros? Tão depressa são os outros como somos nós! A cena da mendiga, logo a princípio, dá alento a esta tese. O preto repreende o miúdo porque foi mal-educado para a mendiga. O preto acaba na esquadra, a mendiga deportada para o seu país de origem e o miúdo acaba impune. Efeito borboleta, efeito caos, efeito perdição. Estamos todos interligados, mas ignoramo-lo. Constantemente. E, à medida que o tempo passa, entendemo-nos cada vez menos. Somos intolerantes aos costumes, tradições, religiões e atitudes. E, por fim, somos intolerantes connosco mesmos. Nem o simples, necessário e tão humano acto de chorar toleramos mais. Estaremos condenados à incomunicabilidade? Estamos, parece-me, condenados ao assumir de uma nova identidade. Mesmo que não nos identifiquemos mais com ela.
Sublimemente interpretado e orquestrado, eis, pois, um filme magnífico que é, em simultâneo, um ensaio sociológico e antropológico extremamente importante e absolutamente memorável.
__________________________________________
Nota especial para o subtítulo, em português Relato Incompleto de Diversas Viagens, que acaba por justificar e enquadrar o tema e o modelo narrativo do filme.
Um must.
ResponderEliminarExcelente reflexão! (saltei uma parte para nao ter spoiler). Cada vez me identifico, impressiono e gosto mais de Haneke. É um verdadeiro antropólogo. Vou ver se consigo vê-lo até o final do mês... reza para que sim :P
ResponderEliminarGUSTAVO H.R.: Absolutamente!
ResponderEliminarFLÁVIO GONÇALVES: Danke ;) Eu não posso dizer que me identifique com o cinema de Haneke. Sinto sempre falta do "belo", por exemplo. Mas reconheço-lhe inúmeras qualidades enquanto cineasta e, como tu dizes, enquanto "antropólogo".
Rezas não é muito a minha praia, mas tenho a certeza de que se não o vires, não sabes o que perdes! É daqueles filmes que termina e desarma-te completamente.
Cumps.
Roberto Simões
CINEROAD - A Estrada do Cinema
Humm... fiquei mesmo ansioso. Mas, sabes, isso do belo é relativo, como tudo. Penso que Haneke propõe uma nova estética, e penso que o seu estilo, formalmente falando, é muito chamativo e aliciante. Encontrar a beleza na mais pura das realidades - é esse o principal objectivo!
ResponderEliminarAbraço
FLÁVIO GONÇALVES: Pois, ok, é relativo... mas quer dizer, não se poderá dizer que Haneke é dos autores com maiores preocupações em fazer um filme bonito e que seja um regalo para os olhos, entendes? Lá está, a estética dele é outra. É a do realismo. Apesar de ter cenas belíssimas, nunca escolherei um filme dele quando me referir a grandes trabalhos de fotografia, entendes? Pelo menos dentro das obras que vi dele. É nesse sentido que me refiro ao "belo", qualidade que muito aprecio em cinema e que não encontro na sua arte. Não é defeito! Se Haneke fizesse filmes bonitos não seria o mesmo Haneke que tanto admiro! Só referi "o belo" como um factor para não me identificar tanto com a sua forma de fazer arte.
ResponderEliminarCumps.
Roberto Simões
CINEROAD - A Estrada do Cinema
Ah, já compreendi, então, em que é que divergimos e entramos em consenso. Fica a sugestão do filme para todos os leitores ;)
ResponderEliminarAbraço
Olha, é magnífico. Depois escrevo opinião.
ResponderEliminarAbraço!!!
FLÁVIO GONÇALVES: Ah, gostaste, não foi? ;D Ok. Depois revela então o que achaste do filme.
ResponderEliminarCumps.
Roberto Simões
CINEROAD – A Estrada do Cinema
um dos filmes mais complexos e significativos de Haneke, falando da xenofobia, desconstruindo os valores franceses de fraternidade, igualdade e liberdade.é mais que uma crítica, é um retrato da verdade. e Haneke como sempre, frio, bruto e impiedoso. Seu cinema é assim.
ResponderEliminarJOHNATAN: Será, porventura, dos mais complexos da sua filmografia. E, curiosamente, dos seus filmes que mais estimo.
ResponderEliminarCumps.
Roberto Simões
CINEROAD - A Estrada do Cinema