sexta-feira, 29 de abril de 2011

RELATÓRIO MINORITÁRIO (2002)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
Título Original: Minority Report
Realização: Steven Spielberg

Principais Actores: Tom Cruise, Samantha Morton, Colin Farrell, Max Von Sydow, Lois Smith, Steve Harris, Peter Stormare, Neal McDonough, Tim Blake Nelson, Joel Gretsch

Crítica:

A PROFECIA DO CRIME

In the land of the blind, the one-eyed man is king.

Mistura explosiva de acção, noir e ficção científica, Relatório Minoritário afirma-se como um sofisticado e por demais refinado pedaço de cinema, perturbante até às entranhas, capaz de projectar as mais pertinentes questões éticas e morais sobre a evolução do modelo social e tecnológico num futuro tão fantasioso quanto verosímil, onde a eterna luta pela sobrevivência continua a potenciar o progresso. Perfeccionista, visionário e, uma vez mais, reinventando-se a si próprio, Steven Spielberg conduz uma obra de entretenimento empolgante e inteligente, capaz de desafiar o espectador a cada compasso.

A atmosfera é sinistra e plena de suspense - a qual em muito se deve ao candor inebriante da fotografia e iluminação de Janusz Kaminski (tremendamente assombroso, o trabalho do técnico; notem-se os tons saturados e o grão, os feixes e as sombras, os enquadramentos non-stop), à esquizofrénica, distópica mas a espaços esperançosa banda sonora do mestre John Williams e à ambiciosa e prodigiosa estética conceptual e imagética, na qual assentou o incrível esplendor dos cenários de Alex McDowell. Em suma, o núcleo sólido das produções de Spielberg.

Washington, 2054. Entre arranha-céus de vanguarda e monumentos do passado, entre auto-estradas verticais e divisões transparentes - quão transparente é todo o universo idealizado, como que anunciando o fim da privacidade -, entre veículos revolucionários e murais publicitários que, por acção intermédia de scanners identificadores, se dirigem aos potenciais consumidores - há toda uma parafernália criativa que, num reflexo bem mais positivo do que o de Blade Runner, espelha a própria evolução do género. Tecnicamente irrepreensíveis, a propósito, os efeitos digitais e sonoros que, com uma aplicação não só notável como claramente eficaz, nos envolvem no complexo imaginário de presságios e sistemas perfeitos (?) de detecção de pré-crime, confluindo a dimensão sobrenatural com o delírio filosófico-científico. O futuro como certeza ou como possibilidade. A dúvida, sobre os outros e sobre nós próprios. Seremos nós capazes? Será que o faríamos? Que consequências traria a adivinhação do amanhã? Quais os perigos da total entrega a um sistema dito infalível? O entendimento e a não-aceitação da morte. O estudo do hipotético, do livre-arbítrio e do drama humano, onde o thriller policial mergulha no espectro trágico e devastador do infortúnio.

There hasn't been a murder in six years.
The system, it is perfect.

A aura angelical de Samantha Morton, oráculo essencial, precipita o ritmo electrizante da narrativa, a fuga e a perseguição sem-tréguas, de cortar a respiração e humurada à boa maneira americana: a personagem de Tom Cruise, John Anderton, chefe da unidade de Pré-Crime prestes a expandir-se a todo o território nacional, é confrontado com uma pré-acusação de homicídio. O predador torna-se, de um momento para o outro, a presa - a matriz é por demais conhecida - mas aqui é alvo de um tratamento verdadeiramente ímpar. Max von Sydow completa um trio de performances cristalinas. Colin Farrell desempenha, com uma competência assinalável, um primeiro vilão, numa intriga tão plena de personagens carismáticas como de aparências, onde nada é aquilo que parece. Às tantas, a imprevisível viagem conhece paragens profundamente intimistas, onde a dor de perder um filho e a invocação da sua memória, num holograma, perpetuam, mais do que nunca, o carácter universal da história de Scott Frank e Jon Cohen, a partir do conto de Philip K. Dick.

Sometimes, in order to see the light,
you have to risk the dark.

sexta-feira, 22 de abril de 2011

A QUEDA DO IMPÉRIO ROMANO (1964)

PONTUAÇÃO: EXCELENTE
★★★★★
Título Original: The Fall of the Roman Empire
Realização: Anthony Mann

Principais Actores: Sophia Loren, Christopher Plummer, Stephen Boyd, Alec Guinness, James Mason, Anthony Quayle, John Ireland, Omar Sharif, Mel Ferrer, Eric Porter, Finlay Currie, Andrew Keir

Crítica:

O ÚLTIMO IMPÉRIO

A great civilization is not conquered from without
until it has destroyed itself from within.
Will Durant*

Roma renasceu das cinzas - em todo o esplendor e máxima glória - pelas mãos dos artistas, arquitectos e estudiosos que, com esmerado entusiasmo, assumiram a direcção artística deste majestoso e opulento A Queda do Império Romano. Pelos grandiosos cenários, desfilam centenas de figurantes, todos criteriosamente trajados e caracterizados (todos os méritos vão para a dupla Veniero Colasanti e John Moore), movendo-se perante as cadências da sinfónica e genial composição musical de Dimitri Tiomkin. Do aspecto romântico da pintura apuram-se, entre tons e texturas, verdadeiros e impressionantes quadros vivos. Frame by frame. Absolutamente assombroso, o trabalho do director de fotografia Robert Krasker, em constante uníssono com as orientações e potencialidades da mise-en-scène. Anthony Mann capta toda a aura do tempo romano e da civilização antiga com assaz verosimilhança e com uma mestria profundamente conhecedora das técnicas cinematográficas. A câmera capta a imitação da realidade com uma fluidez precisa; notem-se os enquadramentos e os movimentos de câmera, sempre irrepreensíveis, elevando a nobreza da arte de contar uma história.

Quando falamos de elenco, a beleza inconfundível de Sophia Loren (Lucilla) tende a ofuscar-nos o verbo; contudo, não esqueçamos as extraordinárias interpretações de Alec Guiness (como Marcus Aurelius), Christopher Pulmmer (como Commodus), Stephen Boyd (como Livius) ou James Mason (como Timonides). Envolvente e extremamente bem construído, o storytelling, ao longo das três horas de duração; os créditos, atribuem-se ao trio de argumentistas Ben Barzman, Basilio Franchina e Philip Yordan que, sem fantasiar crassamente a História, conceberam um retrato e um ensaio sobre a ambição desmedida e a tremenda sede de poder que, algures no passado, cegaram um homem, condenando um sonho baseado na igualdade, na paz e na liberdade, em ideais gregos de cidadania que se perpetuaram pela filosofia e pela ética. Um sonho chamado Roma.

Oh, Livius. What a world... when its future rests in such as these.
Timonides

Igualmente notável e determinante para o triunfo narrativo, diga-se, é a montagem de Robert Lawrence. Das batalhas e sequências de acção aos bastidores da cena política, da retórica do senado à intriga palaciana e de volta ao espectáculo de larga escala, a montagem esculpe, perante as mais variadas necessidades narrativas, uma velocidade eximia e proporcionalmente doseada.

Poucos filmes do género poderão rivalizar com a magnificência deste A Queda do Império Romano. Sem envelhecer num só compasso que seja, a obra de Anthony Mann alcança o panteão da imortalidade. É, sem sombra de dúvida, um dos maiores e melhores épicos de todos os tempos.

______________________________________________
(*) O consagrado historiador Will Durant foi contratado para aconselhar os argumentistas e artistas da produção, zelando pela objectividade e pela acuidade histórica. É com esta sua frase que o épico encerra.

O SEGREDO DOS PUNHAIS VOADORES (2004)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
Título Original: Shi mian mai fu
Realização: Zhang Yimou 
Principais Actores: Takeshi Kaneshiro, Andy Lau, Ziyi Zhang, Dandan Song

Crítica:

A DANÇA DO VENTO

Uma pérola de cores e encantos, sedutoramente belo. Um puro regalo para os sentidos, visualmente arrebatador, cristalino nos sons e nas melodias. De um sublime romantismo, O Segredo dos Punhais Voadores continua o percurso de excelência do cineasta Zhang Yimou.

A magnificência da obra estende-se, magistralmente, a todos os departamentos: tecnicamente, note-se a deslumbrante e mágica fotografia de Xiaoding Zhao, a exímia montagem de Long Cheng ou o sumptuoso guarda-roupa de Emi Wada. A paisagem e o primor estético da direcção artística (Tingxiao Huo, Zhong Han e Bin Zhao) perpetuam a arte do belo. No notável virtuosismo da arte de filmar, o slow motion e a graciosidade dos movimentos, que ecoam na excepcionalidade das coreografias. Extrema sensibilidade na perfeição dos enquadramentos, que absorve o espectador numa espiritualidade que o extasia e pacifica, continuamente. Subtil e extremamente eficaz, o recurso aos artifícios digitais.

No argumento, fluído como o vento, há poesia nas palavras. Ziyi Zhang e Takeshi Kaneshiro - quão talentosos se assumem os jovens actores - protagonizam a paixão central, inesperada e irresistível, tão intensa quanto proibida, ameaçada e condenada ao mais trágico dos destinos. Andy Lau compõe o terceiro vértice, no jogo de estratégias e aparências, máscaras e farsas partilhadas entre os guerreiros do governo e os rebeldes do clã - às tantas, sacrificando o seu próprio segredo, o seu próprio coração.

A cegueira da qual Mei padece é, ela própria, um elemento fundamental na construção da ilusão, tanto a um nível diegético como a um nível metadiegético, na percepção e compreensão que o espectador tem ou vai tendo, surpreendentemente, da história. As cenas memoráveis são incontáveis, os destaques vão para as fabulosas sequências de acção, com lutas de cortar a respiração, para as cavalgadas e perseguições nas florestas, ou para aquela dança inicial dos tambores.

Magnífica execução. Um clássico instantâneo e absolutamente apaixonante.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

CLEÓPATRA (1963)

PONTUAÇÃO: BOM
Título Original: Cleopatra
Realização: Joseph L. Mankiewicz, Rouben Mamoulian, Darryl F. Zanuck

Principais Actores: Elizabeth Taylor, Richard Burton, Rex Harrison, Pamela Brown, Martin Landau, Robert Stephens, Andrew Keir, Kenneth Haigh, George Cole, Cesare Danova, Martin Benson, Francesca Annis, Hume Cronyn, Roddy McDowall, Desmond Llewelyn

Crítica:

A ESFINGE

Queens. Queens. Strip them naked
as any other woman, they are no longer queens.

A megalomania no cinema encontra em Cleópatra, de Joseph L. Mankiewicz, um dos seus expoentes máximos. Chegava ao fim a era de ouro dos épicos, plenos de esplendor e majestade, ou, pelo menos, uma das mais proeminentes eras do género. Na verdade, depois de Cleópatra, poucos mais épicos se fizeram assim, em Hollywood; a odisseia que foi produzir o filme, numa loucura para lá da ousadia, quase arruinou os estúdios da 20th Century Fox. Raramente encontraremos, de forma tão real, massiva e impressionante, tantos e tão grandiosos cenários, tantos e tão ornamentados figurinos, tantos e tão bem orquestrados figurantes. Da deslumbrante fotografia de Leon Shamroy, emana uma beleza quente, sensual e exótica, que cristaliza na memória a perfeição de tão exacerbado primor técnico. A escala alcançada - e longe de qualquer carácter hiperbólico - mais parece ultrapassar o humanamente possível e tocar o divino.

O filme imortalizou, para sempre, o talento e o encanto de Elizabeth Taylor. Ao lado de Rex Harrison e de Richard Burton (Júlio César e Marco António, respectivamente), montou-se o triângulo principal do elenco, com magníficas prestações. Memorável e absolutamente espectacular, a cena da chegada de Cleópatra, a Roma; sem dúvida, a melhor cena do filme, de uma encenação tremenda. Ela, a mulher, a governante e a divindade - para lá do poder, das ambições e das traições políticas, as ligações amorosas, o sonho de Alexandre e o trágico destino de todos os homens e mulheres que cobiçaram o divino: a ascensão e o declínio.

Ironia ou não, o filme teve a mesma ambição e o mesmo destino: ainda que não totalmente, acabou por fracassar e dele contam-se hoje as grandes façanhas. Diria que o seu maior erro foi o desequilíbrio narrativo - não a duração, propriamente, como tantos apontam. Afinal, a longa duração de um filme não dita, por si só, a sua qualidade. Importa que haja história para contar - e aqui há quanto baste - e um equilíbrio salutar entre a declamação e a acção. Às tantas, terá faltado mais acção à história. A partir da Batalha de Ácio, no último quarto do filme, é notório o equilíbrio entre ambas as componentes, acabando a narrativa por triunfar magistralmente; fosse todo o filme assim. Depois de todos problemas e contrariedades que a produção atravessou, o desequilíbrio foi certamente um reflexo disso mesmo.

Na pedra, resistente a qualquer erosão, fica a marca de um filme que, ainda que desproporcionado, se consagrou monumental.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

CLEÓPATRA (1934)

PONTUAÇÃO: BOM
Título Original: Cleopatra
Realização: Cecil B. DeMille

Principais Actores: Claudette Colbert, Warren William, Henry Wilcoxon, Joseph Schildkraut, Ian Keith, Gertrude Michael, C. Aubrey Smith, Irving Pichel, Arthur Hohl, Edwin Maxwell, Ian Maclaren, Eleanor Phelps, Leonard Mudie, Grace Durkin, Ferdinand Gottschalk, Claudia Dell, Harry Beresford, Jayne Regan, William Farnum

Crítica:
Together we could conquer the world.

Um guarda-roupa faustoso (Vicky Williams), desfilando por entre cenários grandiosos e imponentes (Roland Anderson, Hans Dreier), é sublimado pelo olhar ambicioso e perfeccionista de Cecil B. DeMille. Esta estética megalómana e refinada, de elevado esplendor visual (quão requintada é a fotografia de Victor Milner), é, aliás, uma das grandes marcas do realizador.

Claudette Colbert, a musa, por detrás de um olhar sedutor e enigmático, magnetiza o espectador numa performance verdadeiramente memorável. Henry Wilcoxon e Warren William destacam-se, no protagonismo dos seus papéis, da tragédia shakespeariana - a sombra de Shakespeare e do seu Júlio César foi inultrapassável, desde os tons do discurso e da proclamação à construção ou reconstrução episódica da narrativa, até certo ponto.

Entre intrigas e traições, o triunfo do amor. E, mais espectacular do que totalmente magistral, um épico absolutamente apaixonante.

sexta-feira, 8 de abril de 2011

CISNE NEGRO (2010)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
Título Original: Black Swan
Realização: Darren Aronofsky

Principais Actores: Natalie Portman, Mila Kunis, Winona Ryder, Vincent Cassel, Barbara Hershey, Ksenia Solo, Kristina Anapau, Benjamin Millepied, Janet Montgomery, Sebastian Stan, Toby Hemingway, Mark Margolis, Tina Sloan


Crítica:

I just want to be perfect.

O LAGO DOS CISNES

Perfection is not just about control.
It's also about letting go.

Esvoaça, arrepiante, o assombro da noite. Respiração, pirouette. Desferindo o luar com a graça das suas monstruosas e negras asas, invade o silêncio do vazio e a quietude das águas, num movimento voraz. É a fúria da natureza, o íntimo libertador. Do sangue e trevas do seu olhar, emana o terror. É o espectro da morte, consumido pela obsessão, invejando o amor. É o Cisne Negro, o lado oposto da criação, que triunfa sobre a pureza das coisas... O bailado, por força e impulso da magistral composição de Tchaikovsky, conduz a fábula ao clímax trágico e apoteótico. O passo final, delicado e sublime, toca a catarse e a trascendência, no interior ora angustiado ora aliviado do espectador. É essa a beleza da arte, o de mexer com as nossas emoções e Aronofsky - um dos mais ousados e geniais realizadores dos nossos dias - fá-lo extraordinariamente bem, doseando paixão e mestria num uníssono retumbante. Não admira, pois, que assistir a uma das suas obras se torne numa experiência avassaladora e absolutamente inesquecível.

Do sonho à concretização da perfeição, a vida real da bailarina Nina Sayers (brilhante Natalie Portman, num papel duro e devastador) transforma-se num pesadelo vertiginoso. As notas acentuadas de Clint Mansell insistem e persistem num ritmo pulsante, que penetra o nosso inconsciente (genial banda sonora, diga-se de passagem). A pressão é imensa: ao palco voltará o clássico O Lago dos Cisnes, numa nova produção que se pretende visceral, e o director artístico, Thomas Leroy (Vincent Cassel), procura a sua nova little princess, uma vez que a cobiçada diva Beth Macintyre (Wynonda Rider) - You all have had the chance and the privilege to be enchanted, transported, and even sometimes devastated by the performances of this true artist - se vê afastada pela fonte e crueldade da profissão: a juventude, da qual já não dispõe.

We all know the story. Virginal girl, pure and sweet, trapped in the body of a swan. She desires freedom but only true love can break the spell. Her wish is nearly granted in the form of a prince, but before he can declare his love her lustful twin, the black swan, tricks and seduces him. Devastated the white swan leaps of a cliff killing herself and, in death, finds freedom.
Thomas

Candidatas ao lugar não faltam ou não fosse esta a oportunidade de uma vida. Porém, haverá entre elas alguma capaz de personificar, simultaneamente, o Cisne Branco (a virgem inocência) e o Cisne Negro (a perversa e libidinosa malvadez)? A qualidade técnica de Nina é reconhecida, mas será ela capaz de desempenhar também o traiçoeiro Cisne Negro, ser absolutamente confiante, sensual e possuído pelo Mal?

Thomas: The truth is when I look at you all I see is the white swan. Yes you're beautiful, fearful, and fragile. Ideal casting. But the black swan? It's a hard fucking job to dance both.
Nina: I can dance the black swan, too.
Thomas: Really? In 4 years every time you dance I see you obsessed getting each and every move perfectly right but I never see you lose yourself. Ever! All that discipline for what? (...) Perfection is not just about control. It's also about letting go. Surprise yourself so you can surprise the audience. Transcendence! Very few have it in them.

Para Nina, o Cisne Negro torna-se uma obsessão, desde logo. Sempre foi determinada, incansável e tremendamente exigente consigo própria, mas aquilo que fará para conseguir o papel transgredirá todos os seus limites. À sua volta, as colegas. Numa competição feroz e implacável, revelam-se tudo menos amigas. Só poderá contar consigo mesma e a pressão tenderá a estrangulá-la: the only person standing in your way is you. Thomas provoca-a, intimida-a e destabiliza-a, deixando-a ainda mais insegura.

Thomas: You could be brilliant, but you're a coward.
Nina: I'm sorry.
Thomas: Now stop saying that! That's exactly what I'm talking about. Stop being so fucking weak!

Em casa, vê projectados sobre si os sonhos e as frustrações de uma mãe possessiva e opressiva (Barbara Hershey, como Erica Sayers), uma fracassada bailarina no passado. As subtilezas narrativas deixam perceber uma relação incestuosa que é escondida com vergonha. O quarto de Nina, aliás, é um quarto de menina. O cenário fala por si: Nina ainda não tem independência moral, as suas decisões reflectem os juízos da mãe. É por isso que é tão simbólico quando Nina agarra em todos os seus peluches e os atira ao lixo. É um corte com a infância e com a inocência do Cisne Branco, o que tenta fazer. O caminho é a incessante busca pela perfeição. A transformação é literal e começa no seu interior.

I got a little homework assignment for you.
Go home and touch yourself. Live a little.
Thomas

Os espelhos. Sempre os espelhos, de decór em decór. A mise-en-abyme começa: o Cisne Branco tem um gémeo, o Cisne Negro. O alter ego, a sombra que o lago reflecte perante a lua cheia. A dicotomia Bem e Mal, agente da criação. Nina tem igualmente que encontrar o seu reflexo, a face oculta da alma, para interpretar o papel na sua plenitude. Essa descoberta pessoal é essencial a qualquer artista, a qualquer performer que se entregue totalmente. A masturbação é, ela também, uma metáfora do espelho - touch yourself - a exploração da sexualidade connosco próprios. A sexualidade define, em certa medida, a nossa própria personalidade. A concretização das nossas fantasias e desejos reprimidos levar-nos-á - sempre - de encontro à nossa essência. Não será por acaso, porventura, que para os artistas a libertação sexual é tão importante e determinante para aquilo que eles fazem. Só um espírito verdadeiramente livre será capaz de exprimir o outro com verdade, sendo inteiro naquilo que desempenha. Por mais que Nina beije ou seduza Thomas, numa tentativa de libertação, não será a cunha que a conduzirá ao triunfo. E por mais que ele a deseje - That was me seducing you. It needs to be the other way around -, não serão esses impulsos que se sobreporão aos desígnios da arte.

The real work would be your metamorphosis into her evil twin.
I know I saw a flash of her yesterday, so get ready to give me more of that bite.

Thomas

Para riso e intriga da companhia, o papel é-lhe atribuído. O êxtase não poderia ser maior, nesse momento, mas como honrar a elevadíssima confiança e expectativa que nela depositaram? Como superar-se a si própria, silenciando todos os rumores e realizando-se pessoalmente? Espera-a o abismo, nos meandros da psicose.

What did you do to get this role? He always said you were such a frigid little girl. What did you do to change his mind? Did you suck his cock? (...) You fucking whore! You're a fucking little whore!
Beth

Às tantas, a obsessão transtorna-a ao ponto de as suas atitudes se tornarem irreconhecíveis. This role is destroying you, diz-lhe a mãe. Nina perde a noção do real, começa a sofrer alucinações que transformam o realismo trémulo da câmera ao ombro no surrealismo visual que as feridas e as visões fantasiosas fortalecem, progressivamente. Os golpes nas costas prenunciam a metamorfose. Os contornos do drama e do thriller psicológico dão então lugar ao susto e ao suspense, a traços marcadamente tenebrosos. A atmosfera depressiva torna-se assustadora e sufocante, para a qual a sofisticação dos efeitos sonoros se mostra decisiva. Os efeitos digitais são subtis e permitem, com eficácia, a materialização da metáfora. O arrojo técnico é, aliás, permanente e notável. A impressionante fotografia de Matthew Libatique, sempre sensível à luzes e às sombras, ao branco e ao preto, procura, no primor da mise-en-scène, os enquadramentos mais significantes (pelo constante jogo de espelhos, nomeadamente). O espectador - completamente aprisionado - sustém a respiração, perante o imprevisível. Nina aceita finalmente o convite da colega Lily (Mila Kunis), bailarina com o perfil ideal para desempenhar o Cisne Negro, e sai à noite, contrariando as regras maternais. Aventura-se com os homens, com o álcool e com as drogas, deixando-se levar. Depois, a horas tardias, torna a casa com Lily e fecham-se no quarto, envolvendo-se ambas para além do erotismo. It's called privacy, I'm not 12 anymore! Confluem, no limiar da emancipação, os medos e os desejos reprimidos.

Erica: What happened to my sweet girl?
Nina: She's gone!

Pontas, pó, figurino e plumas. Cisne Negro assume, no último acto, uma cadência alucinante, para a qual contribuiu, determinantemente, a montagem de Andrew Weisblum. Mais do que por rebeldia, Nina é assolada por uma violência incontrolável e desconhecida. Os reflexos no espelho ganham vida própria. Está possuída pela obsessão, qual Odette pelo feitiço de Rothbart. Tornou-se um monstro, consumida pela ambição. Mais do que tantas vezes contraproducente, como é destrutivo, o caminho para a perfeição. Natalie Portman atinge o zénite da sua transfiguradora performance. O espectador perde-se entre o real e o imaginário e rende-se à imponência do espectáculo que Aronofsky concretiza, poderosamente. A obsessão pelo perfeccionismo ecoa também na realização. Sobre o palco, a spotlight desce sobre Nina. Fecha-se a estrutura circular da obra. É o seu momento; conseguirá Nina superar-se? E, como em todas as danças ao longo do filme, a câmera de Aronofsky flui com uma leveza, destreza e eloquência exímias, como se puro ballet executasse. Que virtuosismo, na arte de filmar. Fossem todos os filmes assim. Sobre o colchão, por fim, abate-se a tragédia. O adeus, o último aplauso. Um clássico instantâneo.

I was perfect...

quarta-feira, 6 de abril de 2011

OS CORISTAS (2004)

PONTUAÇÃO: BOM
Título Original: Les Choristes
Realização: Christophe Barratier

Principais Actores: Gérard Jugnot, François Berléand, Jean-Baptiste Maunier, Jacques Perrin, Kad Merad, Marie Bunel, Philippe Du Janerand, Jean-Paul Bonnaire

Crítica:

A VOZ DO CORAÇÃO

Os Coristas, primeira longa-metragem de Christophe Barratier, é um filme encantador e profundamente inspirador. A sua melodia sentimental, repleta de esperança, encontrará certamente ressonância nas nossas emoções.

Magistralmente fotografado (Jean-Jacques Bouhon, Dominique Gentil, Carlo Varini) e com uma competente direcção artística, a obra é um regresso à infância de Pierre Morhange e de Pépinot - a 1948, mais precisamente - quando a música, que tem o poder de transformar pessoas, atmosferas, tempos e lugares, irradia pelo Fond de l' Etang, um colégio interno algures na França ainda assombrada pelo trauma da guerra. Atrás do gradeamento do portão esperam dezenas e dezenas de rapazes, crianças, tão delinquentes quanto sós no mundo... A sua rebeldia é contrariada por uma educação pavloviana (acção - reacção), que os castiga, reprime, oprime e revolta. A escola funciona mais como uma prisão de correcção, liderada pelo director Rachin (François Berléand) - um homem extremamente frio, exigente e rigoroso. Tudo se altera quando o bondoso e sensível professor Clément Mathieu (Gérard Jugnot, perfeito no seu papel), o cabeça de ovo, entra em cena e traz consigo as partituras, o sorriso, a amizade, a capacidade de sonhar e a possibilidade de redenção. É a música que lhe permite ultrapassar as dificuldades de um confronto infecundo e, nessa linguagem vibrante e transcendente, tocar o íntimo daquelas crianças.

A fórmula cinematográfica já é conhecida, é certo, mas Barratier jamais nos cansa com o arrojo e, ao mesmo tempo, com a simplicidade com que trata o argumento. Para além disso, a banda sonora (Bruno Coulais, J.P. Rameau) é verdadeiramente arrepiante e comovedora! Jean-Baptiste Maunier, o cara de anjo, tem - mais do que uma beleza inequívoca - uma voz celestial, que nos enebria em absoluto.

Recordar é viver e aqui está um filme sem pretensões maiores, dotado de um carisma incrivelmente tocante, que merece ser recordado. Uma autêntica lição de humanidade.

sábado, 2 de abril de 2011

O FABULOSO DESTINO DE AMÉLIE (2001)

PONTUAÇÃO: EXCELENTE
★★★★★
Título Original: Le Fabuleux Destin D'Amélie Poulain
Realização: Jean-Pierre Jeunet
Principais Actores: Audrey Tautou, Mathieu Kassovitz, Rufus, Lorella Cravotta, Serge Merlin, Jamel Debbouze, Clotilde Mollet, Claire Maurier, Isabelle Nanty, Dominique Pinon, Artus de Penguern, Yolande Moreau

Crítica:

A VIDA É UM MILAGRE

Les temps sont durs pour les rêveurs.

O Fabuloso Destino de Amélie é um daqueles raros, preciosos e apaixonantes filmes capazes de mudar uma vida. Uma comédia genuína, excêntrica e original, sobre os simples prazeres do dia-a-dia. Por intermédio da contagiante e encantatória composição de Yann Tiersen, deixa-se docemente invadir... pela melancolia, pela nostalgia da infância e pela solidão trágica do ser humano. É cinema em estado puro, de irrepreensível sofisticação técnica, visual e narrativa. Um universo mágico, repleto de cores e de fantasia, dotado de memoráveis performances, onde o pequeno fait divers encontra uma dimensão hilariante e universal. Onde a bondade e a humildade, no fim de contas, renovam a esperança no ser humano. Genial, a obra-prima de Jean-Pierre Jeunet, com uma adorável e carismática Audrey Tautou no papel principal.

A pequena e graciosa Amélie (Flora Guiet) acompanha-nos nos créditos iniciais: colando a boca e o nariz aos vidros, fazendo brincos com cerejas, pintando de bonecos, o queixo e as mãos. Os prazeres da infância, nas muralhas em dominó, que ao mais simples toque ou sopro se destroem, a música que nasce dos dedos, à volta sobre a boca dos copos de cristal, o barulho do chupar das palhinhas, o assobio com as folhas de árvore, o descolar das peles de cola dos dedos, o soprar das serpentinas, o rodar das moedas sobre a mesa, o comer das amoras, uma a uma enfiadas nos dedos. Ainda nos lembramos nós do que foi sermos crianças? Desde logo e por identificação, Amélie invoca em nós, espectadores, a memória e a recordação.

Desde o prólogo, que antecede os créditos, e até ao final da obra, a narração - pilar tão fundamental neste filme. Omnisciente, a voz de André Dussollier introduz - de uma forma tão peculiar e com um detalhe e precisão notáveis - as mais variadas e caricatas personagens. Amélie é sobretudo um filme de personagens e é através da sua pluralidade que a mensagem do filme sai enriquecida. Para apresentar a sua protagonista, no presente diegético, o narrador recua e principia no momento da concepção:


Le 3 Septembre 1973 à 18 heures, 28 minutes et 32 seconds, une mouche bleue de la famille des Calliphoridés pouvant produire 14670 battements d'ailes la minute se posait rue Saint-Vincent, à Montmartre. A la même seconde, à la terrasse d'un restaurant, le vent s'engouffrait sous une nappe, faisant danser les verres sans que personne ne s'en aperçoive. Au même instant, au 5e étage du 28, avenue Trudaine dans le 9e, Eugène Koler, après l'enterrement de son ami, Émile Maginot, en effaçait le nom de son carnet d'adresse. Toujours à la même seconde, pourvu d'un chromosome X de M. Raphaël Poulain atteignait l'ovule de Mme Poulain, née Amandine Fouet. 9 mois plus tard naissait Amélie Poulain.

Depois, descreve os ambientes e as personagens (reais ou imaginárias) que figuraram no passado de Amélie. Começa, pois, por falar dos pais da menina. Permitam-me, a propósito, a irresistível e bem humurada paráfrase: Raphaël Poulain (Rufus), o pai de Amélie, não gosta: de urinar com alguém ao lado, de um olhar de desdém sobre as suas sandálias, sair de água e sentir o fato-de-banho colado. Raphaël Poulain gosta: de arrancar bocados inteiros do papel de parede, de alinhar e polir os seus sapatos, de esvaziar, limpar e tornar a arrumar a sua caixa de ferramentas. Amandine Fouet (Lorella Cravotta), mãe de Amélie, não gosta: que os dedos fiquem enrugados pela água quente do banho, que alguém de que não goste lhe toque ao de leve na mão, de acordar com as marcas dos lençóis no rosto. Amandine Fouet gosta: dos fatos de patinagem artística que vê na televisão, de pôr o soalho a brilhar com o suor dos seus chinelos, de esvaziar, limpar e tornar a arrumar a sua mala.

Amélie teve uma infância solitária. A sua personalidade presente não é senão o reflexo dessa vivência especial e concreta: o pai, médico militar, nunca lhe expressou afecto. A intimidade excepcional de uma das habituais consultas entre pai e filha até fez com que o seu juvenil coração disparasse. Tanto, que Raphaël se convenceu de que a filha sofria de anomalia cardíaca. Por isso, nunca foi à escola, nunca se relacionou com crianças da sua idade. A nervosa da mãe, nada afectuosa também, acabou por ser a sua professora. Até Cachalot, o alaranjado peixe lá de casa, se tornou neurasténico e suicida com tamanho mau ambiente. O escape de Amélie era a fantasia, a Kodak instantânea que a mãe lhe oferecera e os conflitos com os vizinhos que, tão convictamente, levava a cabo. Quando um turista se atira das alturas da Notre Dame e cai bizarramente sobre Amandine Fouet, Amélie fica órfã de mãe. Até crescer e sair de casa, viverá com a irremediável apatia do pai e com o confortável silêncio do seu ursinho de peluche.


Amélie Poulain gosta: de se virar para trás no cinema e ver a cara dos outros espectadores, de notar os pormenores, na tela, nos quais mais ninguém repara, dos antigos filmes americanos onde os condutores dos automóveis nem olham para a estrada enquanto guiam, de afundar a mão nas sacas de sementes, de partir o leite queimado com a ponta da colher, de coleccionar pedrinhas para fazer ricochetes na água.

C'est l'angoisse du temps qui passe qui nous fait tant parler du temps qu'il fait.

La vie n'est qu'une interminable répétition d'une représentation qui n'aura jamais lieu.
Hipolito

Paris, bairro de Montmartre, 1997. Amélie não é uma jovem especial. Não será vítima da tragédia nem do sucesso. Divide a sua simples e humilde existência entre os afazeres de casa, o trabalho no Café des Deux Moulin e os sonhos mais mirabolantes, na parafernália da cidade ou na quietude do seu quarto. Em seu redor, os mais vulgares exemplares da espécie humana: Suzanne, a patroa e proprietária do estabelecimento, é coxa mas jamais entornou um copo. A eficiente Gina gosta de estalar os dedos e de testar a bondade dos outros através de provérbios. Georgette tem a mania das doenças, Joseph gosta de reventar bolhas de plástico e Hipólito é um poeta fatalista e falhado. Philomene é assistente de bordo e gosta de ouvir o bater da taça do gato sobre o chão. Será a cúmplice de Amélie nos passeios internacionais do gnomo de Raphaël Poulain pelos quatro cantos do mundo. É esta riqueza e pormenor na descrição das mais variadas personagens que é deveras apaixonante. Ao nível da comédia e sempre acompanhadas por flashbacks (tantos deles a preto e branco), revelam uma eficácia tremenda. No rol de habitués do bairro, faltam ainda o mal-disposto e resmungão Sr. Collignon, proprietário da mercearia da esquina (também ele, mais tarde, alvo do Zorro justiceiro de Amélie) e o coitado do cretin Lucien, sempre alvo das rimas fanfarronas do patrão. Felizmente, e por contraste, é um eterno bem-disposto e, ainda que não directamente, é capaz de gozá-lo à altura: Collignon, crêpe-chignon! Collignon, face de fion! Collignon, tête à gnon!

O dia 30 de Agosto de 1997 traz pela televisão - sempre a televisão - a chocante notícia da morte da Lady Di. A vida mais ou menos inconsequente de Amélie mudaria, então, para sempre. O ímpeto da notícia faz com que Amélie deixe cair a tampa do perfume, que descobrirá num esconderijo do rodapé uma misteriosa caixa de lembranças de infância. Às 4 da manhã do dia 31, tem uma ideia luminosa: esteja onde estiver, encontrará o dono da caixa e devolver-lhe-á o seu tesouro. Se isso o comover, está decidido: intrometer-se-á na vida dos outros.

Na demanda em busca de Dominique Bretodeau, o legítimo dono da caixa, como descobrirá mais tarde, conhecerá a chorosa Madeleine Wallace (magistral Yolande Moreau), cujo cão petrificou à espera do dono desaparecido há décadas, os pais do merceeiro Collignon e o eterno falsificador de Renoir, Raymond Dufayel (Serge Merlin), l'homme de verre, com o qual partilhará as mais deliciosas cassetes de vídeo.

C'est drôle la vie. Quand on est gosse, le temps n'en finit pas de se trainer, et puis du jour au lendemain on a comme ça 50 ans. Et l'enfance tout ce qui l'en reste ça tient dans une petite boite. Une petite boite rouillée.
Dominique Bretodeau

Bretodeau emociona-se bastante ao reencontrar a sua caixa. É precisamente da mesma natureza, o sentimento que nos invade ao reconhecermos ou compararmos a nossa infância naquelas imagens. Dado o sucesso da sua missão, Amélie avança então no sentido de se intrometer na vida das pessoas à sua volta, proporcionando-lhe felicidade. A sua missão não é, repare-se, salvar o mundo, nem sequer o seu bairro. É tão-somente a de trazer um sorriso a quem se cruzar com ela; fosse essa a missão de todos nós, ainda que num só dia por ano. O cego: Amélie encontra um cego a escutar a solidão nos versos de Piaf, na estação do metropolitano. Cena memorável, a que se segue: Amélie dá-lhe o braço e atravessa com ele a rua, descrevendo-lhe tudo aquilo que vê, tal é a euforia que sente em poder ajudar os outros. Uma luz divina desce sobre aquele homem, quando ela o deixa, como que metaforizando a nobreza do gesto. No café, servirá de cupido entre Joseph e Georgette. O estabelecimento até estremecerá, tão comicamente, ao ritmo do sexo que se pratica contra a porta do W.C..

Uma felicidade imensa compensa o altruísmo de Amélie. Ela sente-a por dentro. Contudo, ao chegar a casa, vê espelhado no televisor o reflexo da sua solidão. Adagio for Strings potencia a atmosfera desoladora. É uma boa samaritana, uma Madre Teresa de Calcutá. É uma jovem bonita e adorável, mas está só. Porque não arrisca Amélie a sua própria felicidade?

Raymond Dufayel: [sobre a misteriosa rapariga do copo de água, no Le Déjeuner des Canotiers] Autrement dit, elle préfère s'imaginer une relation avec quelqu'un d'absent, plutôt que de créer des liens avec ceux qui sont présents.
Amélie: Non, p'têtre même qu'au contraire elle se met en quatre pour arranger les cafouillages de la vie des autres.
Raymond Dufayel: Mais elle, et les cafouillages de la sienne, de vie, qui va s'en occuper?
Amélie: Bin en attendant, mieux vaut se consacrer aux autres qu'à un nain de jardin!


Ao passar pelo photomaton do metro, um dia, Amélie vislumbra, pela primeira vez, Nino Quincampoix (Mathieu Kassovitz). É o destino, avança o narrador. Já em pequenos comunicavam sem se conhecerem, cada um na sua janela e com o seu espelho brilhante. Nino divide a sua existência entre a feira de diversões, na Casa Fantasma, e o trabalho numa sex shop. Não é um galã rico e bonitão, é um jovem comum que gosta de coleccionar as fotografias rasgadas dos photomatons num álbum já impressionante. É precisamente nos photomatons, pelo metro ou na Gare d'Lest, que Amélie o reencontrará, num outro dia em que Nino perderá o seu precioso álbum em busca do enigmático L'inconnu des photomatons. Será Amélie quem ficará com ele e que, assim, terá a oportunidade ou a desculpa perfeita para se aproximar de Nino, escapando à timidez e ultrapassando os seus medos e inseguranças. É a oportunidade para ser feliz, como merece.

La chance, c'est comme le Tour de France: on l'attend longtemps et ça passe vite!


Voilà, ma petite Amélie, vous n'avez pas des os en verre. Vous pouvez vous cogner à la vie. Si vous laissez passer cette chance, alors avec le temps, c'est votre cœur qui va devenir aussi sec et cassant que mon squelette. Alors, allez y, nom d'un chien!
Raymond Dufayel

Um jogo de escondidas vai começar; como Amélie é perita nestas brincadeiras. O romantismo ganha aqui uma pureza infantil. O encontro desejado entre os dois acontecerá inesperadamente e com uma beleza e ternura indescritíveis. Abre-se a porta e nem uma palavra. Apenas o olhar apaixonado... Amélie envolve-se, subtilmente, naquela delicada sequência de beijinhos... no canto do lábio, no pescoço, no sobrolho... depois, é Nino quem repete os beijos subtis. Não há palavras para descrever um clímax desta sensibilidade... Não há muitos filmes românticos assim, estou certo.

Amélie a soudain le sentiment étrange d'être en harmonie totale avec elle-même. Tout est parfait en cet instant: la douceur de la lumière, ce petit parfum dans l'air, la rumeur tranquille de la ville. Elle inspire profondément et la vie lui parait alors si simple et si limpide, qu'un élan d'amour, comme un désir d'aider l'humanité entière, la submerge tout à coup.

Zooms, chariots, os mais variados split screens, fast motion, e toda uma variedade de técnicas numa câmera em movimento constante. A exímia montagem de Hervé Schneid junta-se à criatividade sem limites de Jeunet, na marcação de um ritmo imparável e imprevisível. A mise-en-scène, tratada ao pormenor, alia-se magistralmente ao jogo de cores e de luzes da belíssima fotografia de Bruno Delbonnel. Excepcional, toda a concepção artística dos cenários e da decoração (Aline Bonetto, Volker Shäfer, Marie-Laure Valla). Não admira, pois, que assistir a O Fabuloso Destino de Amélie se torne uma experiência tão arrebatadora. Amélie é um sublime pedaço de arte e um milagre de filme! C'est tout.


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CINEROAD ©2020 de Roberto Simões