Mostrar mensagens com a etiqueta Neo-Realismo. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Neo-Realismo. Mostrar todas as mensagens

sábado, 15 de abril de 2017

ALEMANHA, ANO ZERO (1948)

PONTUAÇÃO: RAZOÁVEL

Título Original: Germania Anno Zero
Realização: Roberto Rossellini
Principais Actores: Edmund Moeschke, Ernst Pittschau, Ingetraud Hinze, Franz-Otto Krüger, Erich Gühne

Crítica:

NAS CINZAS DA GUERRA

Una serena constatazione di fatti.

O olhar de uma criança é um olhar privilegiado para retratar a guerra ou a devastação que a mesma pode causar ao coração humano: as crianças são, sobre todos, o símbolo maior da inocência e do futuro da civilização, ambos corrompidos ou ameaçados pelo sangrento confronto. Os neo-realistas italianos sabiam disso e exploraram isso. Se pensarmos nas demais características do movimento artístico, identificamo-las facilmente num filme com Alemanha, Ano Zero, último capítulo da trilogia da guerra de Roberto Rossellini. É interpretado por actores não profissionais, é filmado nos locais reais da acção.

Não sou fã de nenhum movimento em particular, penso que qualquer escola tem as suas virtudes e que, através delas, pode expressar mais ou menos a sua arte. Acontece que Alemanha, Ano Zero, preso em demasia aos pilares da sua doutrina, serve-se mais do pretexto artístico para um registo histórico e documental do que do pretexto histórico para se afirmar como objecto iminentemente artístico. Nem sempre muito bem filmado, a cidade degradada em constante background grita o seu realismo, mas depois os indivíduos que fazem de actores são, na grande parte das cenas, tão pouco credíveis que o poder da história tende a cair por terra. A fotografia é, por vezes, tão miserável quanto a atmosfera em que os acontecimentos têm lugar. O desmazelo artístico é, na minha opinião, claro e evidente. Se a tal evidência me responderem: pois, mas neo-realismo é mesmo assim. Eu respondo com o também neo-realista Ladrões de Bicicletas, de Vittorio de Sica e do mesmo ano. Atentem-se, nesse magistral filme, à fotografia, à condução do conflito moral e à direcção dos indivíduos que fazem de actores. Basta compararem o carisma e o talento do Bruno de Enzo Staiola com o do Edmund de Edmund Moeschke - aliás, basta pesquisarem quantos filmes fez Enzo depois do filme de Sica e quantos filmes fez Edmund depois deste Alemanha. Não terá sido certamente por acaso.

Ainda assim, o argumento salva o filme da total tragédia: no rescaldo da guerra e antes do eventual renascimento da fénix, a sobrevivência entre os escombros da moral. Na mais plena amoralidade, uma criança não é uma criança: é obrigada pelas circunstâncias a corromper-se, a jogar um jogo demasiado cruel e monstruoso para a sua idade, para a sua maturidade. O caminho não é só perigoso, é irreversível.

Por tudo isto, um filme com interesse sobretudo histórico. Arte... arte é outra coisa.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

UMBERTO D. (1952)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
Título Original: Umberto D.
Realização: Vittorio de Sica

Principais Actores: Carlo Battisti, Maria-Pia Casilio, Lina Gennari, Ileana Simova, Elena Rea, Memmo Carotenuto

Crítica:
O VELHO E O CÃO


Os tempos da velhice podem ser cruéis, sobretudo quando a conjuntura sócio-económica do país não é a mais favorável. Ao fim de uma vida de trabalho e de impostos, Umberto Domenico Ferrari (Carlo Battisti) vê-se ameaçado de despejo pela sua padrona di case, a insensível, arrogante e desumana Antónia, cantora lírica de vocação. Umberto aluga-lhe um quarto modesto que não mais consegue pagar, numa casa onde se acendem fósforos na parede e as formigas resistem ao fogo. Ao todo, o sexagenário deve 15 mil liras e tem até ao dia 30 do mês para liquidar o total da dívida acumulada.

Sem família, sem poupanças e com uma reforma miserável, vê-se na rua a lutar pela dignidade. Bens materiais, já quase não os tem. Vendeu-os, subentende-se. Desfaz-se agora, a custo, de um relógio de estimação. Quem o compra é o pedinte da esquina, por 3 mil liras; entre os pobres, talvez aquele com a fonte de rendimento mais fiável. Uma esmola, por caridade! Os livros, que durante toda a vida coleccionou - dotes do ofício, subentende-se uma vez mais - são vendidos como novos, por uma bagatela. Na verdade, Umberto não se encontra mais em posição de negociar. O dinheiro faz-lhe falta e por mais dinheiro que arranje, dificilmente conseguirá somar a considerável quantia em falta.

A manifestação com que abre o filme insere-nos directamente no contexto de crise e de contestação que o país atravessa. O protesto, que as autoridades se encarregam de dispersar e silenciar, deixa-nos antever que a culpa não é de Umberto. Ele é uma vítima do sistema, criteriosamente retratado pelas mãos de Vittorio de Sica, um dos expontes máximos do neo-realismo italiano que se insurgiu com o final da 2ª Grande Guerra. O pessimismo com que Sica se debruça sobre o Homem é por demais evidente. Em Umberto D., intensificam-se as dificuldades do velho, sem fim à vista, impossibilitando-se a sobrevivência na iminência da tragédia. Não há mais dinheiro para comer nem para curar a febre que o assola. Umberto está irremediavelmente só - o único alento que tem é o sorriso e a simpatia da empregada da casa, grávida de pai incógnito, a quem um dia dirá adeus, e o latir de Flike, companheiro de uma vida madrasta.

A banda sonora (Alessandro Cicognini), de cariz um tanto sentimentalista, entra em cena, no compasso certo da narrativa, reforçando a dramatização. A rodagem faz-se geralmente in loco e aquilo que a câmera capta é, como na arte do documentário, a exacta atmosfera em que histórias semelhantes à de Umberto têm lugar. A fotografia de G. R. Aldo pactua com as nuances e sensibilidades do movimento de câmera. Há um plano em especial que, defendo, faz o perfeito enquadramento do velho no contexto diegético que protagoniza: regressado a casa, depois de um internamento de dias no hospital (onde uma interesseira relação com as freiras se pode revelar vantajoso) e após a visita ao canil, onde se dá o aflitivo resgate de Flike, Umberto reencontra o quarto em obras. Um buraco enorme liga agora o seu quarto e a sala. A câmera avança da sala para o quarto, num chariot subtil. Umberto e Flike surgem-nos sobre a cama, emoldurados pelo enorme buraco. Penso que imagem mais expressiva e simultaneamente tão simbólica seria difícil de arquitectar. Ali jaz, emudecido pelo desespero, um velho sem mais vontade de viver. Não admira, pois, que pense no suicídio, que tente o suicídio. Do alto da janela ou no meio da linha férrea. Que triste, a noção de que a realidade não tem esperança. Perante a possibilidade da morte voluntária, por fim, a quem deixar o cão pelo qual nutre um sentimento tão forte e legítimo? E onde se arranja coragem para dizer adeus à única criatura que, durante anos, lhe fez companhia e partilhou consigo os momentos de um tremendo vazio humano? Grande cena, a da iniciação à mendigagem, no limiar da vergonha e da humilhação. Até Flike, sempre tão bem ensinado, tem nela uma participação especial.

O final é de partir o coração - o mais incrível de tudo é como Sica consegue a maior lição do filme a partir da relação entre o velho e... o cão. O cão, até aqui tomado como elemento essencial mas não central, assume-se como uma das personagens mais importantes de todo o filme, ao lado de Umberto, com personalidade própria. Se não com personalidade, pelo menos com motivação, habituação ou o que os demais pavlovianos quiserem chamar-lhe. A ternura e o coração das personagens resumidos à relação mais substimada e, ao mesmo tempo, mais importante. Magnífico filme.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

LADRÕES DE BICICLETAS (1948)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
Título Original: Ladri di Biciclette
Realização: Vittorio de Sica


Principais Actores: Lamberto Maggiorani, Enzo Staiola, Lianella Carell, Vittorio Antonucci, Gino Saltamerenda, Giulio Chiari, Elena Altieri, Carlo Jachino, Michele Sakara

Crítica:

A OCASIÃO FAZ O LADRÃO

Profundamente tocante e humano, Ladrões de Bicicletas é a prova irrefutável de como se podem criar obras de arte genuinamente brilhantes e inspiradoras a partir de escassos recursos. O neo-realismo italiano, aliás, foi o responsável por vários desses casos.

Magnificamente fotografado (Carlo Montuori) e musicalmente orquestrado (Alessandro Cicognini), é com a maior compaixão que seguimos o difícil percurso de Antonio Ricci (de corpo e alma interpretado por Lamberto Maggiorani), que faz de tudo para superar a miséria: em busca de sustento, estabilidade e felicidade para uma humilde e modesta vida em família. Porém, o roubo fatídico da sua bicicleta porá todas essas aspirações em causa. É com o intuito de reaver a bibicleta que encabeça uma perseguição desesperada pelas ruas de uma Roma assolada pela guerra. A bicicleta significa tudo. E essas mesmas ruas enchem-se de bicicletas a cada plano... que nem chuva num Domingo... mas não estão ao alcance de todos. Por isso, o retrato social intensifica-se, fiel a uma realidade por demais dura e implacável, injusta e desigual. A demanda pela bicicleta dá-nos também a conhecer o evoluir da relação entre pai e filho, sujeita a uma educação muito franca e cuidada. Mais próximos do final, todavia, deparamo-nos, tal como o próprio Antonio, com a expansão do conflito moral a uma maior dimensão: no plano humano, aquilo que nos faz muitas vezes optar um caminho em detrimento de um outro é algo de muito ténue. E, no entanto, basta para marcar a diferença e definir quem somos. E é tão-pouco aquilo que separa ladrões e roubados. Quando Antonio confronta o ladrão, dá-se um twist significativo na sua ordem de valores; provavelmente precipitado, mas absolutamente compreensível, à luz das circunstâncias. O acontecimento levá-lo-á ao dilema. E o dilema à inversão da sua identidade e imagem social; algo danoso para o exemplo deixado a Bruno.

De forma simples, mas absolutamente poderoso e essencial na sua mensagem, Ladrões de Bicicletas assume-se facilmente como um conto intemporal e um filme de valor inestimável, um inesquecível e incontornável marco na História do Cinema.


<br>


CINEROAD ©2020 de Roberto Simões