sábado, 8 de março de 2014

O ARTISTA (2011)

 PONTUAÇÃO: MUITO BOM
★★★
Título Original: The Artist
Realização: Michel Hazanavicius
Principais Atores: Jean Dujardin, Bérénice Bejo, John Goodman, James Cromwell, Penelope Ann Miller, Missi Pyle, Beth Grant, Ed Lauter, Joel Murray, Bitsie Tulloch, Ken Davitian, Malcolm McDowell, Basil Hoffman, Bill Fagerbakke, Nina Siemaszko

Crítica:

O CREPÚSCULO DO CINEMA MUDO

 If only he could talk.

O Artista é uma viagem no tempo: um caso de puro revivalismo, de homenagem, não tanto de nostalgia, como alguns críticos avançam. É certo que a saudade do cinema de outrora terá estado, seguramente, na sua origem, mas é muito bem humorado, dramático quando assim tem de ser, romântico porque é essa a sua natureza. É um filme mudo (a prodigiosa e espirituosa banda sonora de Ludovic Bource dá voz aos silêncios, com toda a graça e eloquência), a preto e branco, como se tivesse sido feito nos anos 20 do século XX, à parte uma ou outra sequência que (inteligentemente) brinca com as potencialidades do som - como naquele pesadelo mordaz em que o som e as gargalhadas assaltam e assombram o protagonista. O Artista resulta, por isso e como não podia deixar de ser, numa experiência curiosa e rara.

Inicia-se com o filme dentro do filme, num jogo de espelhos, em auto-observação. Assume-se: é, sobre todas as coisas, um filme artístico, sobre a própria arte cinematográfica. É, também, sobre as estrelas cadentes e o seu irremediável pathos, sobre os atores maiores do cinema mudo, plenos de uma expressividade física e teatral exagerada, que são ultrapassados ou caem no esquecimento pela novidade, chamariz e sucesso do cinema sonoro. É, pois, justo, porventura imediato, estabelecer um paralelismo entre George Valentin (carismaticamente interpretado por Jean Dujardin) e a extravagante Norman Desmond (memorável Gloria Swanson), do magistral de Billy Wilder O Crepúsculo dos Deuses. Apesar de terem personalidades completamente distintas, os protagonistas de ambos os filmes têm em comum o malfadado percurso no seio da velha Hollywood. Também o genial Serenata à Chuva foi claramente uma influência.

Ironia do destino, pois, que George se apaixone pelo brilho e encanto da jovem Peppy Miller (Bérénice Bejo), que se tornará - por mérito próprio -  nada mais nada menos do que a mais recente heroína do cinema americano - sonoro, claro está. Enquanto ele, inadaptado à modernidade, fica no desemprego, entregue ao álcool e à desesperante solidão após gastar a sua fortuna no comovente embora fracassado Tears of Love (do qual foi produtor, realizador e estrela, e no qual é literalmente sugado pelas areias movediças; o que adquire uma dimensão simbólica, metafórica), ela alimenta as bilheteiras como ninguém, bilheteiras que se estendem a perder de vista pelas ruas, enriquecendo a máquina capitalista dos Kinograph Studios, para contentamento do patrono Al Zimmer (John Goodman). Valha-lhe - a George - o cão (Uggie), fiel companheiro para todas as horas, também artista, mas sem qualquer ego ou vedetismo. Ou mesmo o serviente motorista Clifton (James Cromwell), que acaba por despedir por não ter mais rendimentos. E por fim valha-lhe mesmo a suposta rival Peppy Miller, pela qual o seu coração sangra, que tanto o admira sem ele saber... As fases da tragédia grega sucedem-se: catástrofe, anagnórise, catarse. Bem que desconfiamos do final feliz, com música e dança como num bom e antigo musical que se preze. No fim, a comédia vence a tragédia.

Michel Hazanavicius é virtuoso. Estudou bem os clássicos, nota-se, e O Artista reflete toda essa herança: a cada cena no movimento de câmera, na precisão com que insere os quadros de legendas, na montagem e na iluminação (a fotografia de Guillaume Schiffman é um autêntico portento), na esmerado guarda-roupa (Mark Bridges) ou na majestosa cenografia (Laurence Bennett e Robert Gould) que asseguram a verosímil reconstituição histórica. O filme é, todo ele, tecnicamente irrepreensível e o elenco é fabuloso - a dupla principal tem, efetivamente, a aura de outros tempos (o que não é senão o resultado do seu extraordinário trabalho de composição). A obra acaba por triunfar e conquistar o espetador, sobretudo pelo seu despretensiosismo e pela simplicidade da sua história.

Uma última ironia do destino? Passados tantos anos, O Artista arrebata prémios por todo o globo. O mudo encontra um novo auge em tempos do sonoro e do 3D. Que o apaixonado filme de Hazanavicius inspire à descoberta dos primórdios do cinema.

sexta-feira, 7 de março de 2014

RELATÓRIO KINSEY (2004)

PONTUAÇÃO: BOM
Título Original: Kinsey
Realização: Bill Condon
 
Principais Atores: Liam Neeson, Laura Linney, Chris O`Donnell, Peter Sarsgaard, Timothy Hutton, John Lithgow, Tim Curry, Oliver Platt, Dylan Baker 

Crítica:
 
A NATUREZA 
DA SEXUALIDADE HUMANA 

The gap between what we assume people do
 and what they actually do... is enormous. 

A publicação dos estudos de Alfred Kinsey sobre a sexualidade de homens e mulheres foram, para a sociedade norte-americana dos finais dos anos 40 e inícios dos anos 50 do século XX, como uma bomba atómica. Eu diria, uma bomba atómica para o mundo. Atentando contra a sociedade conservadora, de costumes profundamente religiosos e puritanos, eis a verdade sobre a prática sexual humana, sem eufemismos: sexo oral, anal, posições sexuais, masturbação, preliminares, homossexualidade, bissexualidade, heterosexualidade, frequência de orgasmos, de relações sexuais, etc. Falar abertamente de sexo e de prazer, rompendo pudores, desmistificando tabus e esclarecendo toda uma população na ignorância até perceber que everybody's sin is nobody's sin, and everybody's crime is no crime at all

As barreiras quebradas por Kinsey permitiram a sociedade que hoje conhecemos, com maior abertura para o sexo e para a sexualidade. É preciso ter bem presente que até então a masturbação era entendida como um pecado maior, capaz de levar à loucura, à cegueira ou à epilepsia, ou mesmo até à morte; tal era o medo e a culpa impostos pela cultura da época. A solução recomendada para o alívio, como alternativa à masturbação, era - no caso dos homens - mergulhar os testículos em água fria, ler o Sermão da Montanha ou - imagine-se - pensar na própria mãe. Se Relatório Kinsey, o biopic dramático de Bill Condon sobre Kinsey, ainda chocar, provocar ou de alguma forma causar desconforto no espetador, é sinal que ainda muita coisa está para mudar no que toca à abertura e naturalidade das pessoas para falar da sexualidade - aspeto determinante na formação da personalidade de qualquer indivíduo.

O apaixonante - para ele, Kinsey (memorável desempenho de Liam Neeson, num dos grandes papéis da sua carreira) - estudo da vespa-dos-galhos, da qual colecionou milhares e milhares de espécimes, levou-o a concluir que não há dois seres iguais, que a diversidade é irredutível, mas que, apesar de todos diferentes, há variações entre os indivíduos. Criado por um pai protestante e por demais castrador (John Lithgow, o qual entrevistará mais tarde, apercebendo-se dos seus traumas de infância), a sua investigação da sexualidade será uma luta metafórica contra o próprio pai, o qual sempre amou mas do qual nunca sentiu reconhecimento e uma continuação dessa sede de conhecimento, de respostas, iniciada com a vespa-dos-galhos. Afinal, tinha que ter provas científicas para argumentar com os pacientes que acreditam que a gravidez pode ter origem no sexo oral. Naturalmente, zoologia e biologia não são a mesma coisa, lidam com forças de opinião distintas na sociedade e desconstruir o mito da sexualidade trouxe-lhe muitos dissabores. Sex is a risky game, because if you're not careful, it will cut you wide open. Mas compensou.

Começou por destronar a ineficácia das aulas de higiene na Indiana University com o seu próprio curso. Let's start with the six stages of the coital sequence. Stimulation... lubrication, erection... increased sensitivity... orgasm and nervous release. Both sexes experience all six stages equally. Através de questionários pessoais, anónimos e confidenciais, iniciou as suas estatísticas e a descoberta foi por demais reveladora. Kinsey apercebeu-se de que a maioria da população é bissexual, embora essa maioria esconda os seus comportamentos desviantes (desviantes, considerando a cultura dominante que a heterossexualidade é a normalidade) por vergonha. As pessoas traem a sua própria natureza para serem aceites, para integrarem os grupos sociais. Assim sendo, compreendemos melhor os costumes da antiguidade clássica, por exemplo, ou mesmo os contrastantes e atuais. Kinsey refere-se ao assunto: Homosexuality happens to be... out of fashion in society now. That doesn't mean it won't change someday. A prática e a orientação sexual surge-nos não só predeterminada pelas necessidades biológicas mas inequivocamente influenciada pelos contextos sociais, ao fim e ao cabo também como uma questão de moda. Kinsey estabeleceu uma escala de 1 a 6 para classificar os indivíduos, sendo 1 exclusivamente homossexual e 6 exclusivamente heterossexual. Assistiu a encontros sexuais, filmou muitos deles, experimentou outros tantos. O amor pela mulher Clara McMillen (estupendo desempenho de Laura Linney) viu-se às tantas abalado pelas experiências extraconjugais, até que Clara também experimenta o amante do marido, Clyde Martin (Peter Sarsgaard). Acabam por redefenir o amor de ambos e entender-se perfeitamente até à velhice, salientando a necessidade e a importância de certas convenções para que as pessoas não se magoem mutuamente. 

Clyde Martin: Just one more question. You've just told me your entire history: childhood, family, career, every person you've ever had sex with. But there hasn't been a single mention of love. 
Alfred Kinsey: That's because it's impossible to measure love. And, as you know, without measurements there can be no science. But I have been thinking a lot about the problem lately (...)
When it comes to love, we're all in the dark.

A dado momento, Kinsey diz: Love is the answer, isn't it? But, sex raises a lot of very interesting questions... Há depoimentos insólitos, perturbantes, outros especialmente tocantes, outros até repugnantes como casos de incesto, de violações ou de pedofilia, obviamente condenáveis. O testemunho final, excecionalmente interpretado por Lynn Redgrave, a respeito da sua homossexualidade, é derradeiramente comovente e acaba por simbolizar o reconhecimento e o agradecimento de todos quantos viram as suas vidas melhorar graças ao trabalho e à coragem de Kinsey:

We'd been married for years, with three marvelous children. And as soon as my youngest left to go to college... I took a job in an arts foundation. I met a woman there - secretary in the grants office. We became fast friends, and... before long, I fell in love with her. Hmm. This came as quite a shock, as you might imagine. The more I tried to ignore it... the more... powerful it became. You have no idea... what it's like to have your own thoughts... turn against you like that. I couldn't talk to anyone about my situation... so I found other ways to cope. Uh, I took up drinking. Eventually, my husband left me. Even my children fell away. I came very close to... ending it all (...) Things have gotten much better (...) After I read your book, I realized... how many other women were in the same situation. I mustered the courage to talk to my friend... and she told me, to my great surprise... that the feelings were mutual. We've been together for three happy years now. You saved my life, sir.

Relatório Kinsey não é, com toda a certeza, o melhor dos filmes (como a maioria dos biopics, aliás), assim como Bill Condon não é o melhor dos realizadores. No entanto, não sejamos injustos: apesar de aqui e ali inequivocamente formatado, tem grandes interpretações, valores seguros de produção (montagem, direção artística, fotografia ou banda sonora) e um interessantíssimo argumento, muito bem humurado, que acaba por enfatizar a sua natureza ensaística e didática. O argumento deste filme é essencial para o filme mas também para o conhecimento público, sobretudo para todos quantos desconhecem a figura histórica e o seu legado para as gerações futuras. Para todos esses, o filme terá passado despercebido, mas é de visualização obrigatória. Para todos os outros, poderá sempre conduzir a alguma descoberta, quando muito não seja sobre eles próprios.

PROCUREM ABRIGO (2011)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
★★★★★ 
Título Original: Take Shelter
Realização: Jeff Nichols
Principais Atores: Michael Shannon, Jessica Chastain, Tova Stewart, Shea Whigham, Katy Mixon, Natasha Randall, Ron Kennard, Scott Knisley, Robert Longstreet

Crítica:

O PRESSÁGIO DO APOCALIPSE

 There's a storm coming like nothing you've ever seen,
 and not a one of you is prepared for it.

Procurem Abrigo evoca o melhor suspense de Hitchcock a Shyamalan: até os pássaros trazem o pior augúrio e a dualidade entre o real e o imaginário ou entre o natural e o sobrenatural renova, a cada instante e até ao final, a dúvida no espetador. O medo impera - o drama cede, não raras vezes, ao thriller psicológico e ao terror. Há como que uma sensação de ameaça omnipresente e iminente, lançada pelo negrume daquelas nuvens carregadas; as mesmas que instalam, logo desde a abertura, o mistério e o pânico interior no assustado Curtis de Michael Shannon - naquela que é, seguramente e até agora, a sua mais notável e intensa performance.

Assolado por terríveis sonhos que lhe angustiam a existência depois de acordar, Curtis vê-se involuntaria e obsessivamente obrigado a mudar as suas atitudes, o seu dia-a-dia. Sonha que uma tempestade apocalítica se aproxima e começa a ampliar o abrigo subterrâneo do quintal, qual Arca de Noé, para a proteção da família quando a intempérie chegar. Retira o cão de casa e constrói um cercado na rua, não vá o animal morder-lhe como no pesadelo. Precipitam-se visões e o ouvir de trovoada quando ela, na realidade, não existe. A mãe está há anos internada num lar psiquiátrico e Curtis teme que a genética comece a falar mais alto. Esse passado, aliás, assombra-o mormente. Estranhamente, esconde toda a situação da mulher e da filha surda-muda, que tanto ama e que tanto o amam incondicionalmente, numa paisagem rural tão desoladora que parece acentuar as suas perturbadoras circunstâncias. As premonições não param e Curtis afasta-se de tudo e todos, pondo em causa as suas relações pessoais e o emprego, cujo seguro pagará a operação da filha.

A ação torna-se inquietante, de suster a respiração. Quase que penetramos a conturbada dimensão interior do protagonista e sufocamos nela. Sem artifícios maiores, a humanidade das personagens vem ao de cima, graças à inteligente construção do argumento (Jeff Nichols escreve e realiza) e à verdade das emoções, extraída da direção de atores fora-de-série. Destacam-se, naturalmente, Shannon e a Jessica Chastain - a graciosa Srª O'Brien de A Árvore da Vida, obra-prima de Terrence Malick, que em 2011 ascendeu ao estrelato de Hollywood como uma das suas mais promissoras atrizes. A cena em que Curtis revela à mulher o que lhe está realmente a acontecer é seguramente a melhor do filme (o drama familiar atinge aí o seu auge); pelo menos até então, porque o falso final no abrigo e o efetivo final na praia são tremendos: na encenação, na banda sonora (por David Wingo, uma das principais responsáveis pelo desconforto da experiência), inclusivé na fotografia (Adam Stone)... O escape à claustrofobia imposta pelo abrigo é tão libertador para as personagens como para nós, espetadores.

Procurem Abrigo consegue, pois, surpreender, transcender-nos em emoções e superar-se enquanto objeto fílmico, ascendendo claramente a um patamar superior. Desta obra em diante, Jeff Nichols não é senão um nome a ter em conta. Procurem Abrigo arrebatou-me. Foi uma conquista inesperada e arrepiante, daquelas que justificam e alimentam a nossa paixão pelo cinema. Que excecional pedaço de cinema. Absolutamente imperdível.


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CINEROAD ©2020 de Roberto Simões