quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

O HOBBIT - A DESOLAÇÃO DE SMAUG (2013)

PONTUAÇÃO: BOM
Título Original: The Hobbit - The Desolation of Smaug
Realização: Peter Jackson
Principais Actores: Ian McKellen, Martin Freeman, Richard Armitage, Orlando Bloom, Evangeline Lilly, Aidan Turner, Luke Evans, Lee Pace, Stephen Fry, Ken Stott, Graham McTavish, William Kircher, James Nesbitt, Stephen Hunter, Dean O`Gorman, Benedict Cumberbatch

Versão Alargada

Crítica:


A MONTANHA SOLITÁRIA

If this is to end in fire, then we will all burn together!

É difícil avaliar um filme como O Hobbit - A Desolação de Smaug porque é um filme e não é - não deixa de ser uma parte, ainda para mais a parte do meio. E no final, os três filmes deverão resultar como um só, assim como aconteceu com a trilogia O Senhor dos Anéis, sendo que muito provavelmente se estabelecerá a hexalogia. Enquanto filme isolado, estará sempre alguns furos abaixo dos restantes porque não tem individualidade, não tem um desfecho próprio - como se conseguiu, sui generis, n'As Duas Torres. O cliffhanger é gritante, como nunca o foi até então. Depois, mesmo perspectivando a trilogia, ainda se desconhece o terceiro capítulo, pelo que se desconhece obrigatoriamente a eficácia da construção narrativa deste pedaço, que se completa no seguinte. Uma coisa é certa: a versão alargada é uma versão superior, conferindo maior robustez à história e ao filme, enriquecendo o retrato político-social da Cidade do Lago e recuperando o arco e a sequência de Thrain (pai de Thorin), erroneamente eliminada da versão dos cinemas.

Por entre o corropio da acção, não creio que se perca o fio à história. Após um prólogo inesperado e anacrónico, que reposiciona o espectador na demanda de Thorin Escudo-de-Carvalho, eis a aguardada continuação da viagem de Bilbo, Gandalf e os anões
pela reconquista de Erebor. Do abrigo de Beorn, ora homem ora urso, mudador-de-peles, ao ataque das aranhas gigantes na asfixiante claustrofobia da floresta de Mirkwood (e como Jackson a torna sufocante!), passando pelo incomensuravelmente belo Reino dos Elfos da floresta, liderado pelo igualmente belo porém egoísta Thranduil (Lee Pace) e pelas tramas políticas da Cidade do Lago, a aventura evolui a um ritmo imparável e alucinante. O génio do realizador para as sequências de acção sobressai com todo o virtuosismo na divertidíssima fuga nos barris. Que cena alucinada e plena de humor! As lutas são como bailados, coreografadas entre actores, figurantes e câmeras. Regressa Legolas (Orlando Bloom), príncipe da floresta, aqui muito mais próximo da arrogância do pai Thranduil, apaixonado pela deslumbrante Tauriel (Evangeline Lilly) - em boa hora adicionada à trama - cujos encantos recaem sobre o atraente anão Kili. Legolas e Tauriel mostram-se exímios na arte de matar à velocidade da elegância. Luke Evans e o seu notável Bard, o contrabandista, permitem a travessia do Lago rumo a Esgaroth e muito para além das ruínas de Dale - a desolação de Smaug -, até aos confins da Montanha Solitária, onde o temível dragão adormecido protege a imensidão do tesouro roubado. Bard parece predestinado a um feito maior, esperemos pelo próximo capítulo. Ainda em termos de interpretações, a realçar o crescente Balin de Ken Stott, a graça do roliço Bombur de Stephen Hunter e a hilariante caricatura de Stephen Fry, como ávido senhor da cidade de canais, peixe e trocas comerciais. Sentimos a falta do protagonismo de Martin Freeman durante a maior parte do filme, ainda que a mesma seja mais ou menos compensada no último acto.

O Smaug the Unassessably Wealthy. I merely wanted to gaze upon your magnificence, to see if you were as great as the old tales say. I did not believe them. (...) Truly songs and tales fall utterly short of your enormity, O Smaug the Stupendous...
Bilbo

Chegados à Montanha Solitária, a narrativa está tripartida. Bilbo e vários dos anões defrontam as chamas do perigo (acção principal), Gandalf encontra-se com Radagast e enfrenta o Necromante e Kili recupera de uma flecha envenenada graças à medicina e aos cuidados da elfo Tauriel. A eficácia da divisão é duvidosa, até porque a transição entre as várias linhas diegéticas, após o tão aguardado despertar de Smaug, 
parece forçada. Queremos focar-nos somente na acção principal; o que acontece nos outros núcleos não tem a mesma importância ou interesse, naquele momento. Mas enfim, o filme lá termina abruptamente com o vôo incandescente e ameaçador do dragão e continua na terceira parte. Por isso, é ingrato julgar um filme para já incompleto. O espectador, esse, fica em inevitável suspense. Propositadamente, com um sentimento de vazio ou insatisfação, sem saber bem se pelo que assistiu ou se pelo que faltou assistir.

Na generalidade da obra e ainda em termos técnicos, a sofisticação impera, como esperado; ou não fosse a equipa a mesma de sempre. Dos cenários e decoração aos figurinos, aos penteados e à caracterização, da fotografia e iluminação aos efeitos digitais e à pujante banda sonora de Howard Shore, o filme é um festim visual e sonoro absolutamente impressionante e colossal. 


Agora, aponto o dedo: incompreensivelmente, Peter Jackson reforça aquele que já n'Uma Viagem Inesperada se evidenciava como o potencial calcanhar de Aquiles da nova saga, dando alguma razão à maior parte dos detractores das suas aventuras na Terra Média, que resumem O Senhor dos Anéis a um amontoado de efeitos especiais exibicionistas, extraordinariamente artificiais e que tendem a desvirtuar a narrativa. Por mais credibilidade que a fantasia construa, até determinado ponto e pelos mais variados méritos, é difícil digerir wargs tão mal conseguidos e as contracenas entre Azog e Bolg, tão notoriamente artificiais. Estes dois líderes, por exemplo, destoam completamente dos restantes constituintes das negras hordas de mauzões, criados pela excelência da caracterização real, assim como sempre aconteceu desde A Irmandade do Anel. Foi claramente uma opção falhada, que faz destoar e colapsar as suas cenas. Menos do que terríveis, tornam-se personagens insuportavelmente ridículas. Depois da autêntica maravilha que é Gollum, nos filmes anteriores, não nos venham com estes orcs asquerosos. Evidenciar as fraquezas ao invés de disfarçá-las é um erro tremendo. Há abelhas, aranhas e até o dragão monumental, todos digitais, e todos merecem o nosso aplauso. Smaug não está, de todo, livre de lhe apontarem o dedo, mas dificilmente a equipa da Weta conseguiria fazer melhor, por certo. Agora Azog e Bolg, tenham piedade de nós. Não os perdoamos, porque não acreditamos que constem no filme por falta de alternativa ou talento; antes por capricho.

Concluída a visualização d'A Desolação de Smaug, vejo-me finalmente obrigado a ponderar a necessidade efectiva de estender a adaptação de um livro apenas por três longos filmes. E torno à defesa. A priori e distanciando-me do massivo coro crítico da trilogia de Jackson, não vejo essa decisão como um problema real, ainda que esteja ciente dos interesses capitalistas que a cimentam. Assistido o segundo filme, continuo a não sentir essa questão como um problema real. Para a adaptação, Jackson parte d'O Hobbit, de variadíssimos anexos e de anotações de Tolkien, mas também se apropria daquele mágico universo para criar uma ou outra personagem, uma ou outra situação. Aquele universo também é dele (não será só dele? Lembro a eterna questão: o livro é o livro, o filme é o filme). O que nos mostra é eficaz? Muito, tanto para a história como para assegurar a sua épica duração. Os filmes jamais se arrastam, perdendo a capacidade de enriquecer o seu e o nosso imaginário, perdendo a capacidade de nos maravilhar... Quem julga a nova trilogia do cineasta baseado no preconceito (ou tomado por ele) não sabe os filmes que perde. Eles existem e é ver para crer.


O Hobbit - A Desolação de Smaug não cumpre, porventura, todas as expectativas sobre ele criadas e consegue a proeza de levantar outras tantas. Ainda assim, soergue-se que nem o dragão, possante e banhado a ouro, como um grande filme de fantasia e aventuras. Resta-nos esperar pela incógnita da terceira e última parte.

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

O HOBBIT - UMA VIAGEM INESPERADA (2012)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
Título Original: The Hobbit: An Unexpected Journey
Realização: Peter Jackson
Principais Actores: Martin Freeman, Ian McKellen, Richard Armitage, Ken Stott, Graham McTavish, William Kircher, Cate Blanchett, Elijah Wood, Hugo Weaving, Christopher Lee, Andy Serkis

Versão Alargada

Crítica:


A PRIMEIRA AVENTURA 

In a hole in a ground, there lived a hobbit.

O Hobbit - Uma Viagem Inesperada marca o regresso à alta fantasia e ao maravilhoso universo da Terra Média, criado por Tolkien e recriado e imortalizado no cinema por Peter Jackson. É a tão aguardada prequela à incontornável trilogia O Senhor dos Anéis, dividida igualmente em três partes, embora desta feita a partir de um livro apenas. All good stories deserve embellishment, dir-nos-á Jackson pela voz de Gandalf, às tantas, e queremos acreditar que é o caso. Afinal, o vasto imaginário de Tolkien (entre livros publicados, apêndices e anotações) constitui uma reluzente mina de ouro, somente equiparável, porventura, às imensas galerias de tesouros de Erebor.

Este primeiro tomo assemelha-se muito e não por acaso, na sua estrutura narrativa, à saudosa Irmandade do Anel. Abre no Shire verdejante - Howard Shore apronta-se a convocar a nostalgia, pelo arranjo melódico - no preciso dia em que abre O Senhor dos Anéis. Bilbo Baggins inicia os escritos e a narração no Fundo do Saco, na data do seu aniversário. Frodo parte para a floresta, onde esperará por Gandalf. Estabelece-se pois, perfeitamente, a ponte para a saga já existente. Posicionados que estamos na epopeia, conscientes do espaço e do tempo (seja ele o passado do Reino dos Anões, o futuro da Terra Média que já tão bem conhecemos ou o presente da narração), viajamos sessenta anos atrás e aí nos manteremos. O Bilbo de Ian Holm dá lugar ao Bilbo de Martin Freeman. E a aventura começa: contratado como assaltante e herói improvável, o desconfiado hobbit parte na companhia do feiticeiro cinzento e de uma companhia de treze inusitados mas guerreiros anões - Thorin, Balin, Dwalin, Fili, Kili, Dori, Nori, Ori, Óin, Glóin, Bifur, Bofur e Bombur - numa arriscada viagem que mudará, para sempre, a sua vida e o destino da Terra Média. Num permanente e absorvente road movie, sempre de um local para o outro - e cada um mais deslumbrante do que o anterior, com paragem obrigatória em Rivendell - avançam rumo à Montanha Solitária, onde esperam defrontar o temível dragão Smaug, senhor das infindáveis riquezas de Thrór, e recuperar, por fim, o lar dos anões. Após a introdução, necessariamente mais demorada, a história mantém-se genericamente fluída.

Martin Freeman compõe um hobbit memorável, em todos os seus trejeitos e riqueza de carácter, numa junventude credível para o Bilbo de Ian Holm. What... have I got... in my pocket? Note-se como o hobbit pleno de dúvidas, receios e fraquezas do início dá lugar, progressivamente, a um ser cada vez mais engenhoso e corajoso. Ian McKellen torna ao seu carismático e eloquente Gandalf, intenso em cada olhar e com a voz sempre tão bem colocada. Richard Armitage e o seu Thorin Escudo-de-Carvalho recupera, de certa forma, o halo do Aragorn de Viggo Mortensen. Herdeiro do trono, espera-se igualmente o regresso do rei, embora Thorin mostre sempre algum desprezo para com Bilbo ou, encoberto ou descoberto pela sua liderança, alguma sede de poder. Ostenta, claramente, uma dualidade na personalidade que Aragorn, mais sábio e ponderado, jamais ostentou (ou ostentará, diegeticamente falando). Como é bom rever Elijah Wood, Cat Blanchett, Hugo Weaving e Christopher Lee nas suas extraordinárias personagens, para sempre suas. Ainda no elenco, a destacar Radagast (Sylvester McCoy), o Castanho, mago da natureza, personagem caricata quanto baste, quando muito não seja pelo seu ninho defecado debaixo do chapéu, sempre tão cheio de vida, ou pelos seus olhos pedrados, sempre tão afectados pelos efeitos alucinogénicos dos cogumelos.

Como não podia deixar de ser, O Hobbit, revela-se-nos um espectáculo visual e tanto. O primor, o detalhe e a sofisticação da direcção artística (Dan Hennah, Ra Vincent e Simon Bright) é, em todos os cenários, um verdadeiro assombro, aliando-se à beleza estonteante e hipnótica da fotografia de Andrew Lesnie e aos prodigiosos efeitos digitais da Weta Digital. Os wargs serão, porventura, o calcanhar de Aquiles da equipa de efeitos especiais, pela pouca autenticidade alcançada, mas a sua presença nunca chega a ser dominante o suficiente para pôr o filme em causa. Mais uma vez, o deslumbramento contínuo e a cada fotograma passa inevitavelmente pela beleza natural da Nova Zelândia, onde decorreram as filmagens. A caracterização (pela equipa de Peter King) assume-se como um trabalho absolutamente portentoso; vejam-se, por exemplo, os looks que diferenciam cada um dos anões - em si, um feito verdadeiramente épico. O tom do filme, até pelo carácter infantil do conto, é muito mais cómico e desafogado do que o d'O Senhor dos Anéis e o grupo de anões que entra porta adentro e se instala em casa de Bilbo não deixa margem para dúvidas. Note-se a sequência do jantar, entre cânticos alegres e pratos voadores, que é simplesmente hilariante. Há ainda vários momentos musicais, a pontuar e a enriquecer a narrativa (na versão alargada, até o Rei dos Goblins tem um momento surpreendente).

O sentido de Jackson para o espectáculo, para a construção de ambiciosas e empolgantes cenas de acção non-stop, a grande escala e a grande velocidade, jamais pára de nos surpreender. É preciso muito engenho e criatividade para tamanhas coreografias - inclusive da câmera. O confronto com os trolls ou a luta entre os Gigantes de Pedra resultam em cenas de vibrante entretenimento, mas o que dizer da colossal montanha russa de emoções que nos está reservada para os confins das Montanhas Sombrias, repletas de goblins? Os nossos heróis escapam aos perigos, uma e outra vez; talvez os sintamos demasiado invencíveis, por vezes, mas o que assistimos é tão cool que perdoamos o atrevimento. O culminar da perseguição de orcs sobre o desfiladeiro, liderada pelo assustador Azog - entre chamas e pinhas incandescentes, altas árvores e redentores vôos de águias - resulta num final fabuloso e poderosíssimo para este primeiro capítulo da trilogia. A coda, em que um singelo e esvoaçante tordo desperta, de um sono soberbo, um gigante adormecido, é por demais simbólica e metafórica... Ecoa, então, pelas galerias de ouro e pela nossa memória, a profecia das runas lunares, que Elrond descobriu da invisibilidade no mapa dos anões. Abre-se um enorme olho. Augura-se, pois, a mais entusiasmante e promissora continuação para a história. Mal podemos esperar pel'A Desolação de Smaug.

A melhor cena do filme é, quanto a mim, a do encontro entre Bilbo e Gollum e a troca de adivinhas na escuridão. A encenação e a contracena entre Freeman e a criação digital, mais real do que nunca e tão humanamente interpretada por Andy Serkis, é tremenda. Eis, então, a primeira aparição do Anel Um, one ring to rull them all, que despoletará a guerra às portas de Minas Tirith e a destrutiva demanda de Frodo rumo ao coração de Mordor.

A aventura pode, pois, principiar em O Hobbit - Uma Viagem Inesperada. E como estamos perante um triunfante filme de aventuras! Mas para nós, amantes desta Terra Média, este será sempre um regresso a casa. Um desejado e reconfortante regresso a casa. Talvez os anões reconquistem o seu lar, lá par o final, mas nós não temos dúvidas: ganhámo-lo desde o primeiro instante.

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

OS MISERÁVEIS (2012) - Ultimate Trailer

Comente o filme OS MISERÁVEISaqui!

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

OS MISERÁVEIS (2012)


PONTUAÇÃO: MUITO BOM
Título Original: Les Misérables
Realização: Tom Hooper
Principais Actores: Hugh Jackman, Russell Crowe, Anne Hathaway, Amanda Seyfried, Eddie Redmayne, Helena Bonham Carter, Sacha Baron Cohen, Samantha Barks, Aaron Tveit, Daniel Huttlestone

Crítica:

Do you hear the people sing?
Singing a song of angry men?
 
A REVOLUÇÃO DO POVO

It is the music of a people
Who will not be slaves again!


Um musical monumental, absolutamente majestoso - puro e duro na sua essência - como há muito tempo não se via. Assim é Os Miseráveis, de Tom Hooper, a partir do sucesso homónimo dos palcos, por sua vez a partir do célebre romance de Victor Hugo. Não é de espantar que a gente com menos tradição ou cultura do musical o menospreze, subvalorize ou injustice, nomeadamente entre a crítica cinematográfica. Basta aliás consultar o histórico de alguns críticos ou bloggers para, simplesmente, nos esbatermos com a ausência da opinião ou apreciação sobre musicais... Nenhum género é menor e ridicularizar a priori um filme porque os atores cantam em vez de falarem é, mais do que uma questão de gosto, uma questão de falta de cultura. Ponto assente, haverá naturalmente os bons e os maus musicais, como os há - os bons e os maus - em tudo.

Dos tons e cores de Eugéne Delacroix - vem-nos imediatamente à memória o simbólico e imortal La Liberté Guidant Le Peuple - a obra prima pelo arrojo visual. Os verdadeiros quadros vivos pintam-se e deslumbram-nos frame by frame. Proeza irretocável do extraordinário diretor de fotografia Danny Cohen, herança da anterior colaboração com Hooper no igualmente magistral O Discurso do Rei. Sobressaem a matemática ou liberdade de cada enquadramento, como que num ato de júbilo, a plena consonância da palete cromática entre o esmerado guarda-roupa e a pomposa e detalhada (re)criação artística dos cenários (há sets impressionantes!) e, até, entre os demais efeitos digitais, na maior parte das vezes invisíveis ou camuflados. A imagem é tratada, requintada, estilizada ao mais ínfimo detalhe, na expressão máxima da beleza - o que constitui quase uma regra poética, comum a tantos musicais.


Falemos dos atores, desse fabuloso elenco de luxo que, com a intensidade das suas performances, confere ao filme uma profundidade dramática tremenda, à altura da exigência narrativa. Comecemos pelo notável Jean Valjean de Hugh Jackman, já que o filme acompanha o seu sofrido percurso, desde escravo da lei ou prisioneiro 24601 - por ter roubado pão para alimentar a sua sobrinha numa Paris assolada pela miséria - a criminoso procurado e perseguido pelas autoridades, em especial e numa demanda pessoal pelo inspetor Javert, interpretado por Russell Crowe. A busca pelo homem intensifica-se durante todo o filme (por Javert, numa servidão moral inquestionável que se deixará consumir pela dúvida) e a procura pela absolvição aos olhos de Deus também (por Valjean, que esconde a sua identidade para tentar um recomeço, mas que não consegue escapar ao passado). Jackman - já perceberamos que era capaz de grandes interpretações desde o genial The Fountain, de Aronofsky - transfigura-se pelo olhar e pela voz; é evidente a sua expressividade física e vocal, como se arrancasse às entranhas toda a sua força e vitalidade. Já o olhar de Crowe é misterioso e dissimulado e o seu corpo é como que escravo e contradição da sua vontade. É como se a carne desejasse tombar das alturas enquanto a alma, atormentada, reclamasse a imensidão da estrelas. Na cena que encerra o primeiro ato e em que canta Stars, sobre o crepúsculo do dia e os edifícios de Paris, essa ameaça é declarada, cumprindo-se mais tarde. A sua voz não tem o lirismo de outras, mas é cerebral e controlada, bem projetada e afinada, o que o salva da crítica maldosa. Temos depois a singela e desgraçada Fantine de Anne Hathaway, que após vender os dentes, o cabelo e o ventre, no porto da repugnância, arrebata um aplauso unânime com a interpretação sentida e por demais intimista de I Dreamed a Dream. É um close-up estático e sem cortes, de minutos sôfregos e dolorosos, em que sentimos cada respiração, cada lágrima. É uma cena puramente arrepiante. Temos depois a dupla cómica do também miserável mas igualmente sublime Sweeney Todd de Tim Burton, Helena Bonham Carter e Sacha Baron Cohen, aqui um hilariante casal de vigaristas, perfeitos nos seus papéis. Temos ainda as jovens Amanda Seyfried e Samantha Barks, seguras dos seus tons e dinâmicas, a segunda com maior expressividade física que a primeira, e o também jovem Eddie Redmayne, no topo do triângulo amoroso e dono de um timbre belíssimo, com uma entrega incrível... Não é por acaso que Empty Chairs at Empty Tables resulta numa cena completamente comovente, desoladora e memorável. O cast, até nos papéis menores ou figurantes, é portentoso e por demais extenso, destaquemos por fim o idealista de Aaron Tveit ou o genuíno e bem humorado savoir-faire do pequeno Daniel Huttlestone, como corajoso Gavroche.

Tom Hooper, dotado de inspirada gradiloquência épica (da mesma que se perpetua na assombrosa banda sonora), mostra-se mestre das mais variadas formas de filmar para extrair o melhor de cada ator, de cada cenário, em cada plano. Que era excelente diretor de atores, isso já sabiamos desde o seu filme anterior. Cada personagem tem o seu momento, tornando o filme um exemplo de abrangente pluralidade. Não há como não salientar a opção de gravar as performances musicais no exato momento em que as cenas são gravadas, evitando o perfecionismo das habituais dobragens da pós-produção e entregando o musical a um maior realismo e a um maior poder interpretativo, mesmo se com algumas imperfeições. Ou sobretudo por elas.

Da decadência social das ruas às barricadas e à rebelião do povo, não deixando esmorecer a memória da Revolução Francesa, a obra cresce da sátira para a imortalidade ao som do hino Do You Hear the People Sing? Os Miseráveis conquistou a generalidade do público e da crítica e impõe-se como um triunfo da ousadia, ou não fosse um musical operático - puro e duro como comecei por referir - com 158 minutos de duração, de ação imparável, a grande ritmo. Sem dúvida, um dos melhores filmes do ano e um dos melhores musicais de que há memória.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

O CAVALO DE TURIM (2011)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
Título Original: A Torinói Ló
Realização: Béla Tarr, Ágnes Hranitzky
Principais Actores: Erika Bók, János Derzsi, Mihály Kormos, Mihály Ráday

Crítica:

À ESPERA DO FIM DO MUNDO


Está tudo perdido para sempre!

O Cavalo de Turim
é um dos mais lúgubres filmes de que há memória. É acessível a todos, excepto aos que se aborrecem facilmente; não só pela monotonia dos longos períodos em que praticamente nada acontece como pela repetição diária das tarefas mundanas - vestir ou despir o velho pai, ir ao poço buscar água, olhar pelo cavalo no estábulo, cozer as batatas para a refeição, esperar sem maior esperança - , que conferem à narrativa uma previsibilidade assustadora, embora significante.

O mundo acaba quando Nietzsche perde a razão? Não creio, acabou para Nietzsche quando abraçou o maldito cavalo, cedendo logo depois à loucura. Mas o que aconteceu ao cavalo? A história é simples. O filme de Tarr acompanha os derradeiros (acreditamos) dias do cavalo após esse célebre episódio, algures nos confins de uma ruralidade ameaçada. De ar misteriosamente sinistro e com pouco interesse pela vida, o animal parece amaldiçoado, capaz de desgraçar a existência da família que o cria, família constituída apenas por pai e filha. Sem diálogos maiores, os atores trabalham a sua expressão corporal e facial. Não sabemos como era antes: certamente que a miséria já habitava aquela decadente casa de pedra e que a falta de comunicação entre as personagens solitárias já vingava, tal é o seu profundo desencanto pela vida (a recorrente música de Mihâly Vig é, ela própria, o espelho desse desencanto). Certo é que nem Ohlsdorfer nem a filha jamais voltarão à cidade, as suas condições piorarão agora, de dia para dia, na presença do cavalo e sem abandonar o casebre. Até o poço há-de secar. Quem sabe se o equídeo não ficou doente após o toque do filósofo, que esse sabemo-lo maldito e que de devedor a Deus não tinha nada.

Trata-se do julgamento do Homem, do ajuizar das suas próprias ações, nas quais Deus, obviamente, participa ou (...) nas quais toma parte ativa. E aquilo em que ele toma parte... é a criação mais pavorosa que alguém pode imaginar. Porque o mundo foi destruído, entendes?

É este o anúncio de um vizinho, que marca contraste pela sua eloquência e que traz à mesa as notícias alarmantes e uma mão cheia de crítica social: o céu é deles, bem como todos os nossos sonhos. Deles é o momento, a natureza, o infinito silêncio. A própria imortalidade é deles, entendes? Tudo! O bem e o mal, as vitórias dos ricos e a derrotas dos pobres, repetidamente, ao longo dos séculos. O fim da vida no campo, no interior, e a expansão para o oeste. Note-se o assalto dos ciganos ao poço, como se estivesse abolida a propriedade e se tivesse instalado o caos, idealizando a América.

A câmera no interior da casa estabelece o plano: numa aparente calma e serenidade, contemplamos a impávida jovem, que por sua vez contempla o exterior. Lá fora, o temporal: o vento, o vento e o vento, a poeira e as folhas. O silêncio versus o som. O contraste é claro, novamente. Pai e filha chegam a fazer as malas, a carregar a carroça e a amarrar o cavalo, subindo o ermo - finalmente rompem a rotina e decidem-se a procurar uma vida melhor - , mas logo ei-los tornados, a descer o monte, de volta a casa, sem grande arrependimento. No dia seguinte, os mesmos afazeres, a mesma resignação e apatia. Estão mortos, mas ninguém lhes disse ainda. São fantasmas, vazios, não têm mais existência.

A fotografia é belíssima, em cada demorado plano-sequência. Béla Tarr, mestre da câmera, encena a a sua despedida e, por meio do conto, sentimos a tragédia, o negrume, o pessimismo e eles instalam-se-nos na memória. Sentimos presente algum Dreyer, algum Bergman, algum Tarkovsky. Não o vemos, mas sabemo-lo: o cineasta também está sentado à mesa, enquanto lá fora a paisagem, fustigada, muda.

AMOR (2012)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
Título Original: Amour
Realização: Michael Haneke
Principais Actores: Jean-Louis Trintignant, Emmanuelle Riva, Isabelle Huppert, Rita Blanco, William Shimell, Laurent Capelluto

Crítica:

A PROVA DE AMOR

Les choses vont aller de plus en plus mal, et ensuite, ce sera fini.

Amor é, do ponto de vista visual, pura e assombrosa arte em movimento: a mise-en-scène de Haneke e a fotografia de Darius Khondji configuram autênticos e portentosos quadros, quase todos meticulosamente enquadrados e sem maior movimento de câmera, onde se descortinam luzes, sombras e os grandes vultos de expressividade e subtileza, os extraordinários atores Jean-Louis Trintignant e Emmanuelle Riva. Assistir à obra é, verdadeiramente, como contemplar e apreciar as enigmáticas pinturas de um museu (há inclusivé, a dado momento, uma sequência de pinturas que reclamam a liberdade pelas paisagens), onde se revelam segredos em olhares ou na sagrada disposição dos objetos - o apartamento é, também ele, personagem na companhia ou na solidão deste unido casal de velhos, até na morte. Se se tratasse de um filme mudo, Amor seria igualmente um filme belíssimo.

Quando os bombeiros arrombam com a porta e com o silêncio dos créditos iniciais, entramos, pela primeira vez, casa adentro. Sobre a cama jaz o corpo daquela mulher, idosa, falecida, entregue - para não dizer abandonada - ao dia e à noite do íntimo mausoléu, outrora lar de uma vida. Quando o plano se faz sobre uma plateia que aguarda em murmúrio pelo início de um concerto, procuramos, no tempo que nos é concedido, algum rosto familiar que, talvez não facilmente, encontraremos. Lá está o casal, expectante, pelo que está para vir. E quando regressam a casa, somos, tal como eles, feitos reféns, como que aprisionados. As futuras visitas não serão desejadas, mesmo que plenas de boa-vontade, como as dos vizinhos ou as da filha (Isabelle Huppert). As pessoas exteriores serão como que invasoras de privacidade ou de um refúgio muito deles, só deles, onde se fortalece um último isolamento, como que ensaiando ou preparando o fim. Quando Anne congela na mesa da cozinha, sofrendo o acidente vascular cerebral e assustando o marido Georges -  que cena absolutamente notável, a propósito - inicia-se o derradeiro estágio: a dignidade de Anne degradar-se-á de dia para dia e, com ela, o seu interesse e vontade de viver. Não importa mais que o marido a apoie em tudo (a dependência, os favores e os pedidos de desculpa multiplicam-se, aliás, a um nível constrangedor). Há como que uma força maior que lhe diz... chegou a hora.

Amor poderia chamar-se A Dor, sentimo-los ambos, em doses iguais. A história de Haneke e as profundas performances dos seus atores vêm expor, afinal, a aceitação da morte como um acto de amor. Como o acto inquestionavelmente maior de amor. Lá nos imaginamos a aceitar a morte da pessoa que mais amamos e estimamos, que nos fez companhia durante uma vida, que é - em primeira ou última instância - uma parte de nós próprios? É claro que tratar da mulher se afigura como uma certa forma de aprisionamento e Anne não aceita tornar-se um fardo. Mas não é essa a questão aqui: tratar Anne é mais do que uma obrigação social ou moral, é uma necessidade vital para Georges. O fim de Anne será o seu fim e Georges sabe e sente isso. O filme é, pois, o seu demorado e difícil processo de aceitação, à medida que a mulher vai perdendo a lucidez de encontro à demência e passa de uma meio-paralítica ciente de si e senhora da sua personalidade a um ser inútil e sem qualquer autonomia, quase criança, incapaz de tratar da sua própria higiene, impossibilitada de conseguir vingar a sua própria vontade.

Três momentos memoráveis: a curta embora aflitiva sequência do pesadelo, a bofetada capaz de suscitar as mais ambíguas e controversas reações e a decisão da almofada, ipsis verbis, que julgo, no entanto, acabamos por compreender e perdoar. A questão da culpa é tremendamente - e duplamente - devastadora para a personagem de Jean-Louis Trintignant: há a culpa por alimentar a vida da mulher, contrariando-a e de certo modo prolongando o seu sofrimento, de forma egoísta, e há a culpa final, por facilitar a libertação pelo ação que a ética ou o seu coração, em parte, condenam. O protagonista atravessa, pois, um dilema brutal e que o consumirá até ao último delírio.

De entre o retrato e a austeridade formal de Haneke, brota - uma vez mais - a crueldade. Desta vez, contudo, oriunda na ternura e na humanidade do amor. Talvez por isso, Amor seja uma das suas mais impiedosas obras; e tão bem que Schubert se lhe combina.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

O NÁUFRAGO (2000)

PONTUAÇÃO: BOM
Título Original: Cast Away
Realização: Robert Zemeckis
Principais Actores: Tom Hanks, Helen Hunt, Nick Searcy, Leonid Citer, David Allen Brooks, Semion Suradikov, Paul Sanchez

Crítica:

O SOBREVIVENTE

We live and we die by time. 
And we must not commit the sin of losing our track on time.

Quando Eurico de Barros disse «que há um filme a mais em Cast Away - O Náufrago, e que esse filme é o primeiro»*, não poderia estar mais de acordo. Há dois filmes neste O Náufrago: um que se completa com a abertura e com o final da obra e outro que consiste no seu meio. E este do meio é verdadeiramente sublime, desde o desempenho impressionante e transfigurador de Tom Hanks (a entrega do ator é total) a aspectos mais técnicos como o som, a fotografia ou a realização. Fosse só o filme este âmago inspirado e profundamente inspirador, que conta uma extraordinária história de sobrevivência, e atribuir-lhe-ia as cinco estrelas sem pestanejar; porque lhe são inteiramente merecidas e tem qualidade para se afirmar como um clássico absoluto. Porém, o restante filme, ainda que interessante e com uma prestação sentida de Helen Hunt, identifica-se facilmente como uma daquelas convencionais e sentimentais comédias americanas, sem especial mise-en-scène ou singularidade. Impõe-se, portanto, a questão: qual a necessidade?

Segue a reflexão: a necessidade do contraponto, para uma maior humanização da personagem e para o triunfo da mensagem junto da nossa consciência. Chuck Noland não é senão um ser humano comum, porventura igual a muitos dos espetadores: escravo do trabalho, de um sistema capitalista que nos conometra a respiração, e de uma civilização ocidental, que nos cega para o real sentido da vida e das coisas, para o que é verdadeiramente essencial e importante: o tempo para amar e ser amado, para construir uma família, para a realização pessoal. Não é por acaso que Chuck trabalha na FedEx, passe um de muitos casos de product placement, estabelecendo uma relação irónica com a estadia na ilha deserta. O dia-a-dia na distribuidora, a pressão, o stress, a viagem por todo o globo, o ritmo imparável, o verdadeiro consumo da existência, passando o tempo sem que se note. Quando a tempestade assola aquele fatídico avião e a tragédia se abate sobre o oceano, a morte bate à porta: e, se vier para ficar, todo o tempo gasto em prol da profissão foi tempo perdido, que jamais voltará. A possibilidade e a oportunidade de uma vida terá sido desperdiçada, sem que se tivessem alimentado raízes ou criado frutos; que é como quem diz: significados. Nesse momento, Zemeckis bate à porta do espetador: não como a morte, mas como mensageiro ou arauto: caro espetador, ainda vai a tempo de mudar a sua vida.

Encarando a reflexão e esta necessidade, compreendemos melhor a razão de ser do filme na civilização, em todos os seus contornos dramáticos, ainda que não a aceitemos totalmente. Podemos criar alguma ligação emocional com a sequência do regresso a casa (embora soe a anticlimático, a demasiado), mas seria preferível e mais enriquecedor deixar o final em aberto. Zemeckis e o argumentista William Broyles Jr. poderiam ter optado por deixar o ator à deriva ou partir para os créditos no momento em que o navio atravessa o frame em segundo plano. Mas enfim: qualquer filme é aquilo que é e não aquilo que gostaríamos que fosse. O Náufrago abre e fecha em círculo, numa encruzilhada - literalmente falando. Nunca sabemos aonde as nossas escolhas nos levam, percebemos o símbolo, e a escolha dos autores foi esta. Para todos os efeitos, o certo é que O Náufrago é um daqueles filmes aos quais retorno, de par em par de anos, e, a cada visualização, é como se tivesse o poder de me reposicionar perante a vida. A experiência de Chuck na ilha paradisíaca - que se tornará, durante anos, a ilha da solidão - remete-nos para a essência do ser humano no seu estado mais puro e primitivo e revela-nos aquilo que, porventura, esquecemos no nosso ocupado dia-a-dia. Ei-lo a (sobre)viver com a ajuda da imaginação, das memórias e da esperança, numa autêntica transformação física e psicológica. A escapar ao infortúnio, sabemo-lo, nunca mais será o mesmo.

Do imaginário de Robison Crusoé, o filme de Zemeckis invoca-nos as melhores recordações. A relação que estabelece com a bola de voleibol Wilson, qual Sexta-Feira, salva-lhe a vida, pela amizade e comunicação; caso contrário, o cerne do filme seria silêncio, vento e mar e pouco mais. Sem diálogos, sem música. A ação é deveras marcante e o nosso interesse jamais esmorece, tal é o fascínio com que o projeto é encenado, filmado e interpretado: um só ator, na posse plena do seu talento, na procura de um abrigo, de um navio no horizonte, de uma fagulha que desperte uma fogueira quente, que o proteja do frio. Contar os dias, as horas ou tentar esquecer o tempo... é tudo uma reaprendizagem, como se tivesse nascido novamente, noutra condição. A sonante música de Alan Silvestri, quando se ouve e sente, desvanece a desolação numa desejada sensação de conforto.

Não obstante e indubitavelmente, a força do filme está no homem e na ilha, na visceral e memorável performance de Tom Hanks.

___________________________________

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

PLANETA DOS MACACOS (2001)

PONTUAÇÃO: RAZOÁVEL
Título Original: Planet of the Apes
Realização: Tim Burton
Principais Actores: Mark Wahlberg, Tim Roth, Helena Bonham Carter, David Warner, Michael Clarke Duncan, Kris Kristofferson, Paul Giamatti, Estella Warren, Charlton Heston, Lisa Marie

Crítica:

O HOMEM QUE VEIO DO FUTURO

They all want to see this human who defies the apes.

Planeta dos Macacos recupera o imaginário do filme de 1968, protagonizado por Charlton Heston, que originou várias sequelas e que tem conquistado os mais acérrimos fãs ao longo das décadas. O lendário ator interpreta aqui o moribundo Zaius, que antes do último fôlego revela ao filho - o temível Thade de Tim Roth (a criação mais extraordinária de todas as caracterizações de Rick Baker e restante equipa) a profecia de Calima e as origens do seu povo. Planeta dos Macacos é, provavelmente, das mais interessantes propostas da ficção científica, pela visão e questões sociológicas que levanta. Afinal, inverte a condição humana e por meio dela a perspectiva das coisas: algures num futuro não tão distante quanto isso, um astronauta americano despenha-se num planeta incógnito, onde os mais variados símios são as espécies dominantes e mais evoluídas, no topo da cadeia e da lógica, e os humanos são a espécie primitiva que abunda pelas florestas, subjugada à escravidão brutal dos macacos. A reflexão impõe-se à medida que acompanhamos um grupo de humanos, feitos prisioneiros, e observamos as características culturais, sociais e religiosas dos mais poderosos. Aqui, somos os outros -  é impossível negar as semelhanças que temos com os nossos parentes evolutivos e perguntarmo-nos a nós próprios e se?

Lamentavelmente, a narrativa que Tim Burton encena não aprofunda o seu potencial, antes abandona-o em nome de uma versão juvenil e pouco dada a inquietações filosóficas, que se atropela de episódio em episódio sem maturar o essencial, ao som de uma banda sonora exagerada e usada em demasia. Há três personagens interessantes: a Ari de Helena Bonham Carter (irreconhecível como qualquer outro ator por detrás da excelência das próteses), defensora dos direitos dos animais; perdão, dos humanos (a questão é mesmo essa: até que ponto os animais têm alma e em que é que isso os diferencia) You kill him, and you'll only lower yourself to his level. (...) It's disgusting the way we treat humans. Pelo cómico de personagem, o Limbo de Paul Giamatti, caricatura dos mercenários. Pelo terror que cada olhar dos seus lança, o capitão chimpanzé de Tim Roth, confinado no entanto ao maniqueísmo. Três personagens limitadas, porque a história não lhes dá espaço para maior dimensão. Quanto ao protagonista, Mark Wahlberg é inexistente, predestinado a não transmitir coisa nenhuma, nem tão-pouco carisma. Não admira portanto que não sintamos a sua liderança na batalha, com que culmina a ação; uma resolução fácil e por demais óbvia do argumento, frustrando o desejo épico. De Tim Burton muito pouco... uns famigerados espantalhos, um céu com tons de negra fantasia e não mais que isso. Os cenários são de um trabalho criativo notável, embora nem sempre contribuam para a autenticidade da cultura e do planeta. O ambiente parece, por vezes, demasiado plástico; sobre essa séria ameaça triunfou a caracterização, como atrás referi. Que espanto! Parecem macacos reais, os sujeitados atores e figurantes, e como este fator seria determinante para o sucesso do filme.

O epílogo é qualquer coisa de insólito e inesperado,
em certa medida provocador e desconcertante, preparando uma sequela que não veio a acontecer. Mas enfim, não admira, o filme tenta ser tanta coisa e abraçar tantos géneros sem se preocupar em ser francamente bom em nenhum deles. Planeta dos Macacos de 2001 não teve provavelmente o realizador certo. Merecerá um remake ou uma revisita ao seu inesgotável e intemporal imaginário, à altura das suas imensas potencialidades.


quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

MELANCOLIA (2011)

PONTUAÇÃO: BOM
Título Original: Melancholia
Realização: Lars von Trier
Principais Actores: Kirsten Dunst, Charlotte Gainsbourg, Alexander Skarsgård, Brady Corbet, Cameron Spurr, Charlotte Rampling, Jesper Christensen, John Hurt, Stellan Skarsgård, Udo Kier, Kiefer Sutherland

Crítica:

O FIM DO MUNDO

The earth is evil. We don't need to grieve for it.
(...) we're alone. Life is only on earth, and not for long.

Melancolia é um filme bastante sui generis, como bastante sui generis é o cineasta Lars von Trier, todos sabemos. E este é o comentário mais redutor que se poderá tecer a respeito deste intenso e estranho melodrama de fim do mundo. 

Depois de um prólogo visualmente impressionante e irrepreensível, pleno de força cinematográfica ao som de Tristão e Isolda de Wagner, em que o slow motion anima a simbologia em tons de pesadelo, duas partes de filme: na primeira, intitulada Justine, seguimos a deslumbrante noiva de Kirsten Dunst, alheada numa depressão profunda, absorta numa existência inconsciente, como se a sua palavra ou ação não tivesse mais significado. Seguimo-la de trémula câmera ao ombro, desde a sinuosa curva que atrasa a limousine dos recém-casados ao mais inesperado copo d'água de que há memória, numa mansão-quase-castelo repleta de familiares e amigos que não se adoram propriamente. Cai a máscara, progressivamente, caindo com ela todas as aparências de um casamento feliz. O sonho dá lugar à frustração, à desilusão. Ao alto, na imensidão do firmamento, Justine identifica um ponto mais luminoso do que as restantes estrelas da noite - o mesmo ponto crescente que, na segunda parte, a irmã da noiva (herdou-se a Charlotte Gainsbourg do genial e anterior Anticristo), cujo nome Claire dá nome ao capítulo, prefere abster-se de vislumbrar ao telescópio, como se pela privação acalmasse o seu penoso pressentimento de que o planeta - chamado Melancolia - está a dias de colidir com a Terra e de acabar com todas as coisas. As previsões matemáticas e científicas de que isso não acontecerá e das quais o marido está tão seguro teimam em inquietá-la ao invés de pacificá-la. Essa ameaça que vem desde o prólogo, que na primeira parte não passa de um mero apontamento, mas que na segunda parte acaba por se tornar o centro de toda a ação, de todo o filme, funciona como força magnética e gravitacional, como se atraísse as personagens para a melancolia do seu nome e para a desgraça e o abismo inevitável que a sua colisão representa e significa. A sua omnipresença assola, em crescendo e irredutivelmente, o destino das duas irmãs, aniquilando quaisquer possibilidades de família ou de futuro. Por isso mesmo o casamento - instituição associada à união dos seres, à construção da relação ou da família - não deixa de funcionar como ironia, pois quaisquer tentativas de criação estão, a priori, condenadas pela destruição vindoura.

A ópera termina em tragédia; o que não admira, tal é o desencanto da visão. O que talvez surpreenda é o intimismo alcançado - tão contrastante com a natureza espetatular e desenfreada da maioria dos filmes apocalíticos - capaz de causar algum mal-estar no espetador, porém infinitamente distante do tom repugnante e provocatório de outras obras com a assinatura do realizador. Aqui contemplamos a apatia, distante de viscerais sentimentos, resignados, como de mãos e pés atados mas sem força ou vontade de ficarmos livres, por nos darmos por vencidos ou derrotados pelas circunstâncias. Não há escape nem salvação possível. Melancolia não deixa, portanto, de ser Lars von Trier fiel a si próprio, tanto na estética como na essência temática: tornamos à mulher como cúmulo da dor humana, como caminho para a transcedência. Fica a sensação de uma expiação criativa, de alguma fragilidade estrutural, todavia de absoluta singularidade.


<br>


CINEROAD ©2020 de Roberto Simões