quinta-feira, 30 de junho de 2011

OS CONTOS DA LUA VAGA (1953)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
Título Original: Ugetsu monogatari
Realização: Kenji Mizoguchi
Principais Actores: Masayuki Mori, Machiko Kyô, Kinuyo Tanaka, Eitarô Ozawa, Ikio Sawamura

Crítica:

O PREÇO DA AMBIÇÃO

Quem tudo quer, tudo perde, já diz o ditado, e a Os Contos da Lua Vaga, aclamado filme de Mizoguchi, poucas máximas lhe poderiam assentar tão perfeitamente. Pese o acentuado travo de moral e tragédia que, em crescendo, configura o retrato, eis a perdição do Homem que, sem valorizar os seus pilares fundamentais - já adquiridos - condena-se a si próprio à destruição. Menosprezando a família, irresponsavelmente, desprezando-a até e abandonando-a à sorte na cega esperança de um dia cumprir os seus desígnios, avançam os tolos para o precipício. Numa perspectiva cristã, pisariam o Paraíso sedentos da posse de glória e atravessariam o Purgatório, pleno de espectros sedutores e amaldiçoados, rumo ao Inferno irreversível.

Genjûro (Masayuki Mori) e Tobei (Eitarô Ozawa) são vizinhos, manuseiam a arte e a terra. O primeiro sonha ser rico, o segundo sonha ser guerreiro samurai, ambos de fama e reputação considerável. Insatisfeitos com o baixo reconhecimento da sua condição social, acabam por deixar a família, a casa e a terra, abraçando a ilusão. A guerra civil bate-lhes à porta, sem piedade, anunciando o infortúnio.

Quem só procura a glória,
faz sofrer os que o rodeiam.

Do estilo de Mizoguchi denota-se um imenso e apurado sentido visual (deslumbrante e encantatória, a fotografia de Kazuo Miyagawa, tão escura quanto cintilante em todas as nuances da iluminação. Há quadros belíssimos, por entre a fluidez dos planos-sequência). A montagem e a extraordinária orquestração de música (Fumio Hayasaka, Tamekichi Mochizuki, Ichirô Saitô) e sons conferem à obra uma dimensão fantasmagórica e espiritual, bem antes da natureza sobrenatural ou mística de algumas das personagens. O argumento, misto das ideias de vários criadores, desenvolve a trama com um doseamento equilibrado do mistério e da revelação.

Às tantas, a aparente ascendência do percurso obsessivo sai da sombra e a queda mostra-se profundamente cruel e sentensiosa. Separados pelo destino, cada marido e cada mulher acolhe a desgraça. As almas de outrora, penadas, cantam o adeus e a memória. O final de Tobei e da mulher Ohama acaba por confrontá-los com a dureza das circunstâncias e com a inevitabilidade da vida - profundamente irónico, o reencontro no bordel -, mas sobretudo o poético e transcendente desfecho de Genjûro e da esposa Miyagi, entre as ruínas de Kutsuki e o filho adormecido, vem alertar para as derradeiras consequências do egoísmo e do orgulho, da traição, da inveja e da vaidade: a dor da solidão e o vazio existencial. O verdadeiro ouro esteve sempre ali... e foi posto em causa por tão levianos devaneios.

Certamente, um clássico absoluto e intemporal.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

A QUADRILHA SELVAGEM (1969)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
★★★★★
Título Original: The Wild Bunch
Realização: Sam Peckinpah
Principais Actores: William Holden, Ernest Borgnine, Robert Ryan, Edmond O'Brien, Warren Oates, Jaime Sánchez, Ben Johnson, Emilio Fernández, Strother Martin, L.Q. Jones, Albert Dekker, Bo Hopkins, Dub Taylor, Paul Harper, Jorge Russek, Alfonso Arau, Chano Urueta

Crítica:

OS PISTOLEIROS DO ENTARDECER

If they move, kill 'em!

Numa das primeiras imagens de A Quadrilha Selvagem, um escorpião vê-se cercado e vencido por um exército de formigas. Metáfora e sinédoque de todo o filme, a aclamada obra de Peckinpah supera a criatividade dos créditos de abertura com uma das mais brilhantes sequências de todo a obra. Nela, as grandes marcas do cinema do realizador e especialmente dos seus westerns - género pelo qual, aliás, se consagrou com irreverência: a acção desenfreada e explosiva (dos tiroteios), o humor e a crueza radical da tremenda exploração da violência no ecrã e a acutilância da montagem (Louis Lombardo) que, dando continuidade às várias linhas da cena num elegante slow motion, conferem à obra uma linguagem extremamente dinâmica, ritmada e prazerosa de se assistir.

A Quadrilha Selvagem trata o fim do oeste americano ou pelo menos o fim e a queda daquele oeste americano que o cinema tanto ajudou a mitificar. As primeiras décadas do século XX trouxeram a mudança dos tempos e novos modelos sociais, culturais e, por conseguinte, civilizacionais. A violência passou das mãos de justiceiros e noutros casos ladrões e assassinos detentores de um prezado código de honra, para as mãos de capitalistas ganaciosos e amorais, somente sedentos de poder. Peckinpah passa o filme inteiro a humanizar a quadrilha. Nos olhos de Pike (William Holden) e de Deke (Robert Ryan) - outrora amigos, pelo que sugerem alguns dos inúmeros flashbacks que povoam a obra - é espelhada a angústia interior de um grupo de cowboys que não soube fazer mais nada, ao longo da vida, senão perseguir, fugir ou disparar uma arma e que, meditando a sua existência, entende que se tiver que voltar a matar, que o fará por um motivo digno. Peckinpah contrapõe perfeitamente o companheirismo e a união destes bandidos pelos quais acabamos por empatizar à desumanidade e ao despudor com que o general Mapache e os seus guerrilheiros mexicanos disfrutam das mulheres e dos prazeres da vida, do carro, da metralhadora e da alta tecnologia dos armamentos americanos, à margem da lei negociados. Note-se, a propósito, a forma leviana e doentia com que os experimentam, indiscriminadamente sobre a população, sempre embebidos em álcool e em música. Há, portanto, um claro e evidente choque geracional que transfigura a paisagem e os valores, ao qual Pike e companhia jamais se rendem. Preferem sacrificar-se e aceitar a morte, que a Pike chega ironica, tragica e simbolicamente pelas mãos de uma criança. Qual escorpião cercado pelas formigas.

We all dream of being a child again, even the worst of us.
Perhaps the worst most of all.

Assistir à Quadrilha Selvagem de Peckinpah lembra-me sempre, pese muito embora o anacronismo da questão (que Harold Bloom facilmente fundamentaria) o também magistral Aguenta-te, Canalha, de Sergio Leone. São os dois objectos diferentes, mas com vários pontos em comum, quando muito não seja o espaço e o tempo históricos. Vivem ambos, e tanto, do virtuosismo da arte de filmar e também Aguenta-te, Canalha se inicia com um inglório império de formigas, que Leone rapida e engenhosamente desfaz com o espumante mijo de Rod Steiger (no filme, o hilariante Juan Miranda). Enfim, fica a nota de comparação.

Moral sem alguma vez cair, propriamente, no moralismo e sobretudo excitante e divertido, sem nunca parecer ridículo ou pouco realista, A Quadrilha Selvagem terá porventura contribuído para a estética do cinema de acção como poucos, no legado que se lhe seguiu. Eleva-se à memória como uma verdadeira fonte de inspiração, fotografado pelo suado e empoeirado esplendor de Lucien Ballard.

sábado, 11 de junho de 2011

CERCADOS (2001)

PONTUAÇÃO: BOM
Título Original: Black Hawk Down
Realização: Ridley Scott
Principais Actores: Josh Hartnett, Ewan McGregor, Jason Isaacs, Tom Sizemore, William Fichtnerv, Eric Bana, Sam Shepard, Ewen Bremner, Tom Hardy, Ron Eldard, Charlie Hofheimer

Crítica:

ESTADO DE GUERRA

Apenas os mortos viram o fim da guerra.
Platão

Cercados não é propriamente um filme onde reine a subtileza. Não obstante, impera nele a elegância e a sofisticação que marcam, obra após obra, o estilo visual de Ridley Scott. Qual olhar de Deus, o cineasta desce sobre uma região particular do globo, que nem um satélite de análise: Somália, inícios dos anos 90 e o seu conflito civil. Mais particularmente, a demorada Batalha de Mogadíscio, com a intervenção americana no ar e no terreno. Quase milimetricamente, disseca a paisagem, a cultura e a atmosfera. Fornece-nos as coordenadas espácio-temporais, uma e outra vez, com uma preocupação obsessiva em simular o retrato histórico com detalhe e exactidão.

Resgatam-se as cores tórridas de Apocalypse Now (da obra-prima de Coppola resgatam-se também, com certeza, os gloriosos helicópteros) e capta-se a acção em movimento de um Spielberg em busca do seu Soldado Ryan. A fria mas implacável montagem de Pietro Scalia impõe um ritmo não só empolgante como absolutamente electrizante. E para a sublime captação da atmosfera, a direcção artística funde habilmente o real e o artificial (ou o propositadamente construído para o filme, entenda-se) na edificação de uma noção de realismo visceral. O filme - e a experiência em que consiste a sua visualização - vive ainda da exploração das infindáveis potencialidades do som e dos seus efeitos (Michael Minkler, Myron Nettinga e Chris Munron) e da carga emocional da banda sonora (Hans Zimmer, ao serviço do drama e da tensão crescente, a espaços aliviada por toda uma panóplia de canções cool que acompanham as overdoses de humor americano dos jovens soldados, sedentos de escape à seriedade do tema e das circunstâncias).

O elenco conta com uma constelação de estrelas em ascenção à data da estreia (Josh Harnett, Ewan McGregor, Eric Bana ou Orlando Bloom) que, com assaz competência, partilha o protagonismo colectivo que o argumento propõe. Não há heróis, no meio da pura, tremenda e impressionante acção. A guerra é cruel, profundamente devastadora e dilacerante e não reúne preferências. Nela, não há qualquer triunfo. Às tantas, o ódio perde o sentido e todas as mortes caem no vazio. Um soldado de intervenção, estrangeiro, ao qual se abriram as portas de um outro mundo, sucumbe perante os desígnios políticos, qual número ou peça de Xadrez. Não é nada, somente um instrumento que é tudo. O que vale uma vida humana? Cercados acaba por potenciar consideráveis discussão e reflexão.

Consideração final? Um soberbo e revigorante filme de guerra, que acaba por condensar e executar exemplarmente um pouco de toda a técnica e linguagem do género, até ao seu ano de produção.

sexta-feira, 3 de junho de 2011

GALLIPOLI (1981)

PONTUAÇÃO: BOM

Título Original: Gallipoli
Realização: Peter Weir
Principais Actores: Mel Gibson, Mark Lee, Bill Kerr, Robert Grubb, Tim McKenzie, David Argue, Harold Baigent, Bill Hunter, Peter Ford, Ian Govett, John Morris, Les Dayman

Crítica:

A IRMANDADE AUSTRALIANA

Archy Hamilton: I'll see you when I see you.
Frank Dunne: Yeah. Not if I see you first.

Deslumbrante, o trabalho de fotografia de Russell Boyd, aliado à graciosidade e ao inspirado movimento da câmera de Weir. Nem sempre regular mas sempre altamente patriótico, contudo, o filme ostenta algumas passagens banalizadas pelo excesso de humor, prejudicando o drama e tratando a seriedade da guerra com alguma leviandade jovial e aventuresca (que caracterizava a inocência e coragem inconsciente daqueles australianos, entendi, mas creio-a aqui por demais romanceada). Nota máxima para os virtuosos trechos musicais que acompanham a obra - sobretudo esse magistral adágio de Albinoni - e classificação não diria mínima mas estranha e duvidosa à aplicação do Oxigénio de Jarre a algumas das sequências. O saldo é francamente positivo, mas longe das suas reais potencialidades.


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