quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

FORTE APACHE (1948)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
Título Original: Fort Apache
Realização: John Ford
Principais Actores: John Wayne, Henry Fonda, Shirley Temple, Pedro Armendáriz, Ward Bond, George O'Brien, Victor McLaglen, Anna Lee, Grant Withers
 
Crítica:

OFICIAIS,
CAVALHEIROS E SELVAGENS

De um candor elegíaco e grandioso, um western profundamente belo e humano: Forte Apache resplandece sob um radioso e imenso céu, tão monumental quanto a rocha e a poeira que envolvem o glorioso Monument Valley. No horizonte, as silhuetas de índios e cavaleiros - eternos inimigos deste cenário mítico - recortam a paisagem, manchada de sangue, de ódio e de racismo, mas igualmente suada de honra, de medo e de esperança. John Ford filma-o magistralmente, numa inconfundível e perfeita fusão de registos. Do romance ao drama, do humor à música, do silêncio da imensidão aos gritos e disparos da batalha. É o início da aclamada Trilogia da Cavalaria, que continuará com Os Dominadores e que terminará com Rio Grande.

Destacado para o meio de nenhures, o Tenente Coronel Owen Thursday (Henry Fonda, num fortíssimo desempenho), fazendo-se acompanhar da filha Philadelphia, torna-se o novo líder do Forte. Extremamente ambicioso e rigoroso, no que à sua carreira e postura militar diz respeito, respectivamente, Thursday será um oficial perfeitamente ciente da sua elevada patente e mostrar-se-á implacável e inflexível na aplicação da sua autoridade.

Gentlemen, I did not seek this command, but since it's been assigned me, I intend to make this regiment the finest on the frontier. I fully realize that prolonged duty in a small outpost can lead to carelessness... and inefficiency and laxity in dress and deportment. I call it to your attention that only one of you has reported here this morning properly dressed. The uniform, gentlemen, is not a subject for individual, whimsical expression. We're not cowboys at this post... or freighters with a load of alfalfa.
Thursday

Inicialmente habituados à liderança informal e carismática do Capitão Yorke (John Wayne, na competência que lhe é característica), os soldados terão alguma dificuldade em, dia após dia, se apresentarem de farda engomada, sóbrios e determinados na sua postura e resposta. Enfim, ordem e disciplina que a sua memória rapidamente se incubirá de restabelecer. Até o próprio Yorke, no terreno tão mais experiente do que o superior, terá que se reduzir à sua posição na hierarquia:

Thursday: What, no debate this time, Captain?
Yorke: No debate, sir; no questions.

Acostumada à vida da cidade, Philadelphia vê-se confrontada com uma nova realidade, despida de conforto e dos melhores móveis. Quando o seu destino se cruza com o do Sargento-mor Michael O'Rourke, é amor à primeira vista... Mas o senhor seu pai rapidamente se ocupará de manter a rédea curta entre os dois, proibindo-os de se encontrarem, nomeadamente.

Para além dos fait-divers do dia-a-dia na aldeia, tanto amorosos como militares, o filme aprofundar-se-á com a questão do choque cultural e civilizacional. Desde os finais da Guerra Civil Americana que o Forte tem a sensível missão de lidar com os índios locais e a chegada de Thursday terá sérias implicações nas conversações até então estabelecidas entre ambas as partes. Numa pertinente discussão entre o Tenente Coronel e o Capitão Yorke, nota-se a ignorância e o preconceito de um e o conhecimento e bom-senso de outro:

Thursday: We here have little chance for glory or advancement. While some of our brother officers are leading their well-publicized campaigns against the great Indian nations - the Sioux and the Cheyenne - we are asked to ward off the gnat stings and flea bites of a few cowardly digger Indians.
Yorke: Your pardon, Colonel. You'd hardly call Apaches digger Indians, sir.
Thursday: You'd scarcely compare them with the Sioux, Captain.
Yorke: No, I don't. The Sioux once raided into Apache territory. Old-timers told me you could follow their line of retreat by the bones of their dead.
Thursday: I suggest the Apache has deteriorated since then, judging by a few of the specimens I've seen on my way out here.
Yorke: Well, if you saw them, sir, they weren't Apaches.

As posições radicalmente distintas destes dois homens acabam por ser, ao fim e ao cabo, a sinédoque da mentalidade americana da época. Também os índios têm voz:

The Apaches are a great race. (...) They've never been conquered. But it is not well for a nation to be always at war. The young men die... the women sing sad songs... and the old ones are hungry in the winter. And so I led my people from the hills. And then came this man.

Quando a diplomacia falha e o orgulho e o egoísmo falam mais alto - Your word to a breech-clouted savage! An illiterate, uncivilized murderer and treaty-breaker! There is no question of honor, sir, between an American officer and Cochise - impõe-se a guerra como inevitável solução. Com ela e com a marcha da cavalaria pelo deserto, Forte Apache concretiza algumas das suas sequências mais extraordinárias e tecnicamente audazes. A fotografia de Archie Stout e do não-creditado William H. Clothier é verdadeiramente fabulosa: sucedem-se os grandes planos, em enquadramentos de cortar a respiração; tal é o seu esplendor visual. As sonantes composições de Richard Hageman preparam o espectáculo que se seguirá. Com a acção ao rubro, a câmera mover-se-á, empolgante, a um ritmo e destreza notáveis, num clímax absolutamente memorável.

No final, mais do que exacerbar o patriotismo, Ford acaba por imortalizar os heróis da História. Não pelo maniqueísmo redutor, fazendo deles modelos irrepreensíveis, agentes do bem vs. mal, mas dramatizando a ambiguidade da natureza humana que é, no fim de contas, universal. A mortal selvajaria dos homens residirá, sempre, na sua cruel intolerância e incompreensão.
A sua superioridade, por sua vez, na sua capacidade de diálogo e de entendimento.

They aren't forgotten because they haven't died. They're living - right out there. Collingwood and the rest. And they'll keep on living as long as the regiment lives. The pay is thirteen dollars a month; their diet: beans and hay. Maybe horsemeat before this campaign is over. Fight over cards or rotgut whiskey, but share the last drop in their canteens. The faces may change... the names... but they're there: they're the regiment... the regular army... now and fifty years from now. They're better men than they used to be. Thursday did that. He made it a command to be proud of.
Yorke

Enfim, que magnífica sessão de cinema. Grande filme de John Ford.

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

O TERCEIRO PASSO (2006)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
Título Original: The Prestige
Realização: Christopher Nolan

Principais Actores: Hugh Jackman, Christian Bale, Michael Caine, Scarlett Johansson, Rebecca Hall, Andy Serkis, Piper Perabo, David Bowie

Crítica:

A GRANDE ILUSÃO

Are you watching closely?

É tudo uma questão de encenação e de manipulação, no ilusionismo.

Every great magic trick consists of three parts or acts. The first part is called The Pledge. The magician shows you something ordinary: a deck of cards, a bird or a man. He shows you this object. Perhaps he asks you to inspect it to see if it is indeed real, unaltered, normal. But of course... it probably isn't. The second act is called The Turn. The magician takes the ordinary something and makes it do something extraordinary. Now you're looking for the secret... but you won't find it, because of course you're not really looking. You don't really want to know. You want to be fooled. But you wouldn't clap yet. Because making something disappear isn't enough; you have to bring it back. That's why every magic trick has a third act, the hardest part, the part we call The Prestige.
Cutter

Com base nestas três fases do truque mágico, chega-nos esta magnífica e assombrosa construção: O Terceiro Passo. Dos mesmos autores de um dos maiores quebra-cabeças da História do Cinema - refiro-me, claro está, ao aclamado Memento -, surge-nos mais um sofisticado, engenhoso e intricado puzzle, uma experiência intensamente lúcida, fria e cerebral e, ao fim e ao cabo, um exercício mental tremendamente complexo, intrigante e imprevisível, capaz de rivalizar prontamente com o filme do virar do século. Christopher e Jonathan Nolan edificam uma narrativa criteriosamente fragmentada e elíptica, verdadeiramente exigente para com o espectador, onde tempo, espaço e verdade, as coordenadas essenciais da história, são, qual truque, hábil e criteriosamente baralhadas, diante dos nossos próprios olhos. Impõe-se o mistério, o enigma, o segredo. As pistas, no entanto, estão todas lá. Are you watching closely? Prepare-se, pois, para ser iludido.

I. THE PLEDGE

Londres, finais do século XIX. São-nos apresentados dois colegas e assistentes de um mágico, aspirantes à profissão. Hugh Jackman e Christian Bale - duas ilustres cabeças de cartaz, diga-se de passagem - assumem, respectivamente, os papéis de Robert Angier e de Alfred Borden. Após a morte da jovem esposa de Angier, partner no arriscadíssimo número do tanque, ficam as suspeitas da envolvência de Borden em tão trágico desfecho: afinal, com que nó terá ele atado a belíssima e radiosa female, antes desta ter entrado na água? Resta a dúvida e, perante a incerteza, nasce a mágoa, o ódio e a rivalidade. A sede de vingança e, em nome dela, o sacrifício. Com plateias distintas daí em diante, tantas vezes disputando o protagonismo nas duas faces da mesma rua, Angier e Borden tornam-se mestres da ilusão, sempre um passo à frente, um do outro. A ambição e a inveja dos dois não conhecerá limites.

You're familiar with the phrase man's reach exceeds his grasp?It's a lie: man's grasp exceeds his nerve.

Angier revela-se um prodigioso showman, conquista a multidão com a sua grandiloquente oratória e esforça-se por trazer ao palco o número mais original. Many of you may be familiar with this technique, but for those of you who aren't, do not be alarmed. What you're about to see is considered safe. Borden, por sua vez, tem pouco jeito para lidar com o público. As ovações sucedem-se; contudo, a sua audácia ecoa no perigo, em técnicas e métodos inovadores e em atracções nunca dantes vistas, de difícil descodificação e, por isso mesmo, de improvável imitação. Secrets are my life.

The secret impresses no one. The trick you use it for is everything. (...) Never show anyone. They'll beg you and they'll flatter you for the secret, but as soon as you give it up... you'll be nothing to them.

II. THE TURN

Como que por magia, o espectador fica refém da narrativa, totalmente imobilizado e aprisionado. A atmosfera continua, tensa e pesada, sinistra e macabra. De cortar a respiração e de fazer gelar os nervos, verdadeiramente. O realizador põe à prova a disposição da sua audiência; testa, pelo brilhante mind game, as fronteiras psicológicas da sua arte. Are you watching closely? Por um lado, os elevados valores de produção mostram-se determinantes para a criação dessa atmosfera. Tanto o primor estético da iluminação e da fotografia (por irrepreensível talento do já conceituado Wally Pfister), como o refinado e irretocável arrojo da direcção artística (Nathan Crowley, Kevin Kavanaugh, Julie Ochipinti) e do guarda-roupa (Joan Bergin) autentificam a viagem no tempo. Por outro lado, igualmente decisivas e absorventes, as exímias composições musicais de David Julyan; um trabalho inteiramente notável. Depois, é claro, a montagem. Haverá revelação mais extraordinária, em todo o filme, do que a da destreza inconfundível de Lee Smith? Em flashback ou em flash-foward, ou até mesmo no presente diegético... que acutilantes e extasiantes manobras narrativas, que corte! Espantoso. Tão trabalhosa quão deliciosa seria, certamente, a prática da découpage num filme como este. Não determina a montagem senão a cadência e o ritmo da obra, pactuando e tanto para esse sombrio mistério que se complexifica em todas as voltas e reviravoltas com as quais somos, inevitavel e surpreendentemente, confrontados.

Os actores e as personagens. Imediatamente e à primeira vista, diria que se há falha neste O Terceiro Passo é a ausência de personagens amplamente dimensionadas. Reflectindo, porém, sobre a matéria, concluo que essa crítica seria não só inapropriada como injusta. Se pensarmos bem, é precisamente naquilo que se esconde sobre as personagens e naquilo que as personagens escondem sobre si próprias que assenta o enigma. Revelar para além do mínimo indispensável, no que às personagens diz respeito, iria contra a natureza do próprio filme. Os actores estão muito bem nos seus papéis (tanto os principais, Jackman e Bale, como os secundários Michael Caine, Rebecca Hall, Andy Serkis e David Bowie; apenas Scarlett Johansson parece perdida no seu jogo duplo) e só uma reflexão posterior ao próprio filme (porventura, após várias visualizações) restituirá uma dimensão maior e legítima a cada uma das personagens.

Após uma sangrenta e cruel sucessão de sabotagens, eis que O Homem Transportado - a última, grandiosa e indecifrável ilusão de Borden - vem elevar as hostilidades entre os dois artistas a um patamar obsessivo e fatal. A real magician tries to invent something new, that other magicians are gonna scratch their heads over. Em que consiste o número? Borden atira uma bola ao chão, numa das extremidades do palco, e desaparece por uma porta, reaparecendo, em seguida, numa outra porta, precisamente na outra extremidade do palco e apanhando a bola numa delirante salva de palmas. Como se faz? Não se sabe. Cutter, a perspicaz personagem de Caine, diz que o truque reside no recurso a um duplo. It was the greatest magic trick I've ever seen. Angier arranja rapidamente um duplo e imita o inimigo, numa apresentação bem mais elaborada e aparatosa, contudo não se convence de que a solução seja assim tão simples: deste modo, terminaria sempre o espectáculo sob o palco e o duplo, ainda que a tresandar de bêbedo, é que saborearia, uma e outra vez, o reconhecimento do anfiteatro. No one cares about the man in the box, the man who disappears. Consistiria a magia de Borden, então, em verdadeira magia? Que conhecimentos adquiriu Borden, afinal, ao ponto de ter ultrapassado Angier, quiçá definitivamente?

Na ânsia de desvendar o segredo, Angier viaja até Colorado Springs, onde conhece o histórico cientista Nikola Tesla, rival de Thomas Edison e um dos pioneiros da energia eléctrica. É no laboratório do visionário que O Terceiro Passo desenvolve uma ideia mais rebuscada e principia um rumo inesperado no campo do fantástico, distanciando-se do registo até então cultuado mas jamais caindo no ridículo. Pelo contrário, o mistério adensa-se ainda mais e as hipóteses para quebrar o enigma, no jogo que se estabelece com o espectador, expandem-se para além daquilo que é humanamente possível. Aquilo que Tesla promete a Angier é a construção de uma máquina de teleportação, por meio da qual o ilusionismo tocaria o divino.

The truly extraordinary is not permitted in science and industry. Perhaps you'll find more luck in your field, where people are happy to be mystified. You will find what you are looking for in this box. Alley has written you a thorough set of instructions. I add only one suggestion on using the machine: destroy it. Drop it to the bottom of the deepest ocean. Such a thing will bring you only misery.
Nikola Tesla

III. THE PRESTIGE

As aparências iludem. Are you watching closely? Nada é como parece. Nada é como nos foi apresentado ou como nos foi dado a entender. You're looking for the secret... but you won't find it, because of course you're not really looking. As pistas estavam todas lá e é com os derradeiros twists que nos apercebemos da eficácia dos artifícios narrativos. Fomos enganados, iludidos. Cedemos ao truque. O cinema, como grande caixa de teleportação, é a verdadeira magia... e O Homem Transportado é cada um de nós, espectadores. Para além da história das rivalidades entre os dois excelentes mágicos, para além do puzzle que somos activamente convidados a montar, O Terceiro Passo é a metáfora do próprio cinema, a arte da ilusão, e, por meio dele, surge-nos este magistral ilusionista do cinema contemporâneo: Christopher Nolan.

You never understood, why we did this. The audience knows the truth: the world is simple. It's miserable, solid all the way through. But if you could fool them, even for a second, then you can make them wonder, and then you... then you got to see something really special... you really don't know?... it was... it was the look on their faces...

É tudo uma questão de encenação e de manipulação, no cinema.

Grande, grande filme. Um aplauso.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

AS PONTES DE MADISON COUNTY (1995)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
Título Original: The Bridges of Madison County
Realização: Clint Eastwood

Principais Actores: Clint Eastwood, Meryl Streep, Annie Corley, Victor Slezak, Jim Haynie

Crítica:

TEMPO PARA AMAR

This kind of certainty comes but once in a lifetime.

É sempre tempo para amar. É sempre tempo para sermos nós próprios. Mas tempos houve em que os constrangimentos sociais ditavam uma total entrega da mulher ao marido, aos filhos, à casa e à família. As Pontes de Madison County é a história de Francesca, uma dessas mulheres: dona-de-casa casada e de meia idade, aprisionada pelas convenções morais do seu meio, desejou um dia um outro homem, desejou partir e ser livre pelo mundo fora. Desejou ser genuína, autêntica, sincera... consigo mesma. Não que odiasse o marido, não que não amasse cada um dos seus já crescidos filhos... amava-os e reconhecia no marido notáveis qualidades. Porém, nunca sonhara viver entre os verdes campos de Iowa. Sonhara, simplesmente, com uma outra vida, que lhe despertasse as paixões da juventude, que lhe refrescasse o sentido de viver. Até que ponto tem uma mulher esse direito? O de sonhar com a mudança? Ou o de arriscar a verdadeira mudança? Entre a aceitação e a felicidade... qual a escolha a fazer e quais as derradeiras consequências?

We are the choices we've made, Robert.

Aquela cena em que, à chuva, Francesca reencontra o seu forasteiro e inesperado Robert... do outro lado da estrada... à sua espera... O seu marido regressa e arranca com a viatura e Robert arranca à sua frente... O semáforo... a luz verde... a vontade de partir... a indecisão, aquele angustiante aperto no coração partilhado com o espectador... que cena memorável.

As Pontes de Madison County é um romance de uma sensibilidade extrema e um drama doloroso e acutilante; de partir o coração, verdadeiramente. Clint Eastwood filma sem artifícios e com movimentos de câmera simples ou subtis. O poder da narrativa provém, sobretudo, do argumento (Richard LaGravenese, a partir do romance de Robert James Waller - que diálogos incríveis!) e das magníficas interpretações. Eastwood actor - e quanto a esta questão, a minha opinião pouco oscila de filme para filme - é competente quanto baste, ainda que sempre igual a si próprio. Aqui, a sua personagem chama-se Robert Kincaid, mas podia chamar-se Bill Munny, Frankie Dunn ou Walt Kowalski, consoante a sua fase da vida. Eastwood actor não é camaleão, não existem nuances consideráveis que distingam as suas construções, se é que podemos falar em construções de personagem. Contudo, as suas personagens são sempre autênticas e isso basta para jamais ponhamos em causa as suas competência e eficácia. Já Meryl Streep, considero-a uma das maiores actrizes de todos os tempos. E a sua Francesca é absolutamente extraordinária. Nos gestos, nas expressões, nos olhares, na dicção... As capacidades e potencialidades da sua arte de representação são imensas. Fenomenal desempenho, o seu, neste tocante, intimista e inspirador pedaço de cinema, formalmente irrepreensível.

Veredicto final? Um marco incontornável do género, seja ele o romance ou o drama. Um dos melhores filmes americanos dos anos 90. E, sem dúvida, um dos melhores e mais belos filmes jamais realizados por Clint Eastwood. Tão triste quanto apaixonante.

POLAR EXPRESS (2004)

Comente o filme Polar Express, aqui!

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

ALL THAT JAZZ - O ESPECTÁCULO VAI COMEÇAR (1979)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
Título Original: All That Jazz
Realização
: Bob Fosse

Principais Actores: Roy Scheider, Jessica Lange, Leland Palmer, Ann Reinking, Cliff Gorman, Ben Vereen, Erzsebet Foldi, Michael Tolan, Max Wright, William LeMassena, Irene Kane, Deborah Geffner, Kathryn Doby, Anthony Holland, Robert Hitt, David Margulies, Sue Paul, Keith Gordon, Frankie Man, Alan Heim, John Lithgow

Crítica:

O ÚLTIMO ENSAIO
It's show time, folks!

Antes da morte, o adeus. O adeus sob a forma de vida. All That Jazz - O Espectáculo Vai Começar não é senão o 8 1/2 de Bob Fosse. Entre a comédia e a tragédia, flui a audácia e a extravagância, a complexidade na leitura e a concretização de uma narrativa nada convencional. As sequências musicais intensificam-se, entre o cinema e o teatro, entre o palco e o hospital, entre o sonho e a realidade e a auto-consciência ficcional da obra. A extraordinária montagem de Alan Heim coreografa e determina as próprias cadências do filme, conferindo-lhe um ritmo contagiante. As repetições, nomeadamente, marcam as transições entre os actos, ao som do Concerto em Sol Maior de Vivaldi. E Lange, como lightspot da beleza feminina, está para Fosse como Cardinale para Fellini. Joe Gideon, por sua vez, surge-nos como o Guido do show business americano.

Gideon (Roy Scheider, numa performance brilhante) é um homem de vícios e de paixões fortes: as mulheres, as anfetaminas, os cigarros e o trabalho. A música e a dança - o suor, os corpos e o movimento -, o delírio da entrega. Os excessos de uma vivência levada ao limite. Genial na profissão, obcecado por sexo e tão instável no percurso pessoal, Joe Gideon, o perfeito alter-ego do próprio Bob Fosse, que aqui assina a realização e as coreografias, e que com o argumento, claro está, desenvolve uma inspirada e ousada semi-autobiografia. Take Off With Us (Air-otica, que erotismo!) e Bye Bye, Life apresentam-se como as sequências mais retumbantes e memoráveis do filme, assim como as alucinações durante a cirurgia do protagonista: After You've Gone, There'll Be Some Changes Made, Who's Sorry Now e Some of these Days. A esmerada direcção artística (Philip Rosenberg, Gary J. Brink e Edward Stewart), aliada à criteriosa iluminação, formulam um requinte visual que ressoa eficazmente no trabalho fotográfico de Giuseppe Rotunno.

No final, não o circo como no clássico italiano de 1963... mas o mais estrondoso espectáculo de que há memória. A despedida, o adeus para sempre...

Eis, pois, efeverscente e refrescante, um inimitável pedaço de cinema. Espectacularmente bem filmado.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

SACANAS SEM LEI (2009)

PONTUAÇÃO: EXCELENTE
★★★★★
Título Original: Inglourious Basterds
Realização
: Quentin Tarantino

Principais Actores: Brad Pitt, Christoph Waltz, Eli Roth, Michael Fassbender, Diane Kruger, Daniel Brühl, Til Schweiger, Mélanie Laurent

Crítica:

A OBRA-PRIMA

I think this might just be my masterpiece.

Tentem imaginar uma mente genial e excêntrica que, no auge da sua arte de reinvenção, arrisca uma mistura explosiva. Pois bem, é assim que nasce Sacanas Sem Lei. E a criativa origem não poderia ter outro nome se não Quentin Tarantino... o seu cinema tem um cunho singular, tão irreverente quanto autêntico. E aqui, mais do que, num plano absolutamente ficcional, ousar reescrever a História (dando um final porventura merecido a uma das mais hediondas criaturas que habitou esta Europa), o seu cinema atinge a maturidade e concretiza a ambição da obra de arte completa, sendo que há uma perfeita coesão de estilos, registos e géneros que nunca se torna ridícula, apesar do non-sense.

A narrativa é estruturada em cinco capítulos. A efabulação é desde logo invocada pelo Once upon a time. Once upon a time in Nazi-occupied France onde judeus se escondem, quais ratazanas, aterrorizados pelo extermínio. A cena inicial é das melhores cenas de abertura de todos os tempos. Em termos artísticos é, simplesmente, qualquer coisa de... transcendente. E de absoluto detalhe. A paisagem impõe-se e lembra-nos a ambiência do western: no alto de uma colina campestre, mais um dia de esperança. Uma casa, várias árvores. O gado vagueia pelo verde pasto. Um agricultor corta a lenha a machado, uma mulher estende a roupa ao vento. Poderíamos estar no oeste americano. Porém, detrás dos brancos lençóis não se descobrem cavaleiros empoeirados, justiceiros ou malfeitores. Vislumbra-se um carro e duas motas. Soldados alemães. Nazis. Mortinhos pela desratização.

O primeiro capítulo marca o extraordinário grau de qualidade que se perpetuará por toda a obra: cenas longas, diálogos inteligentes, irónicos e mordazes, interpretações de luxo (o sádico e engenhoso Coronel Hans Landa, magistralmente interpretado por Christoph Waltz, é uma criação memorável!), uma mise-en-scène criteriosa e um trabalho de fotografia deslumbrante (Robert Richardson), assim como uma montagem em tudo brilhante, a marcar o compasso e o ritmo da obra. Tarantino serve-se tanto do texto como da sua inspirada e sublime arte de filmar para construir momentos de alta tensão e de verdadeiro terror psicológico, aqui e ali atenuados por eficazes e hilariantes comic reliefs. Recordo, por exemplo, quando no auge da sua assustadora retórica, Hans Landa retira do bolso um cachimbo de um tamanho descomunal - creio que é impossível não libertar uma gargalhada, nesse preciso instante, descomprimindo assim do intenso acumular do suspense que até ali imperava.

Brad Pitt é o tenente Aldo Raine, caricatura do americano e líder dos Sacanas. A missão da sua tropa? We're gonna be doin' one thing and one thing only... killin' Nazis. O escalpe dessas bestas alemãs é o seu objectivo primeiro. Ainda que dados ao discurso, à sátira e ao ludo linguístico - ou não fossem eles personagens tarantinescas (e Tarantino, por sua vez, um dos grandes artistas da palavra) -, os Sacanas servem a retaliação a sangue frio, numa violência brutal e explícita; mas nunca gratuita, sempre estilizada. Alguma da encenação que antecede a corporal punição sobre os nazis tem mesmo direito a Morricone, convocando os bons velhos tempos de Leone e d'O Bom, O Mau e O Vilão. Tarantino aliás, e como sempre, conflui estéticas e invoca as mais variadas referências na elaboração do pastiche. O próprio filme de 2ª Guerra Mundial, enquanto género, é aqui desconstruído, reinterpretado e reconstruído. O resultado é algo completamente novo, genuíno e único.

Poder-se-á dizer que o tema de Sacanas Sem Lei é a vingança. Num nível metadiegético, é claro que a efabulação tarantinesca representa a vingança da Arte sobre a História. Dentro da diegese, Shosanna Dreyfus (Mélanie Laurent, numa virtuosa performance) empreende um plano maquiavélico para acabar de uma vez com Hitler, Landa e os seus súbditos leais e assim vingar o raticídio que lhe dizimou a família e do qual escapou, por um triz. As cenas em Paris concentram um sem fim de mise en abymes de elevadíssimo potencial semântico. A começar pelo cinema que a judia terá herdado dos tios Mimieux. É no cinema que se desencadeia a vingança, estabelecendo um paralelo com os espectadores, que assistem ao filme: o ecrã em chamas é o ecrã dentro do ecrã. E a metragem Stolz der Nation é o filme (de 2ª Grande Guerra) dentro do filme (de 2ª Grande Guerra), ambos com Daniel Brühl como actor.

A imprevisibilidade da narrativa é uma das características mais notáveis do filme. Nunca sabemos bem o que pode acontecer. Ou melhor, o que vai acontecer. Porque sabemos que tudo pode acontecer. A cena do bar, em que uma conversa se arrasta por mais de vinte e tal minutos e depois, num ápice, se resolve numa chuva de tiros fatais é a prova disso. Há um momento, ainda antes disso, em que o ecrã se divide em dois e somos surpreendidos por um narrador desconhecido, que nos dá conta do quão inflamável pode ser uma película cinematográfica. Depois há metáforas incríveis e insólitas. Aquela massagem no pé só para rematar com looks like the shoe's on the other foot é qualquer coisa... Percebe-se, com tudo isto, que Sacanas Sem Lei é muito mais do que entretenimento sofisticado. É uma criação de amor, de puro amor à arte e a uma estética que dialoga consigo própria.

Um clássico instantâneo. A masterpiece, indeed.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

VOANDO SOBRE UM NINHO DE CUCOS (1975)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
★★★★★
Título Original: One Flew Over The Cuckoo's Nest
Realização: Milos Forman
Principais Actores: Jack Nicholson, Louise Fletcher, William Redfield, Will Sampson, Michael Berryman, Danny DeVito, Sydney Lassick, Christopher Lloyd, Louisa Mortiz, Marya Small, Brad Dourif

Crítica:

ENSAIO SOBRE A LOUCURA

You all crazy?

Do riso às lágrimas, Voando Sobre Um Ninho de Cucos concretiza um estudo assaz pertinente sobre as ténues fronteiras entre a saúde e a doença mental. Tudo começa com a chegada de R. P. McMurphy (brilhante Jack Nicholson) ao hospital psiquiátrico. McMurphy não é senão um criminoso incurável, novamente apanhado pelas autoridades, e que, como forma de evitar a prisão e abraçar uma vida de luxo e de conforto, alega insanidade mental. É recebido pelo Dr. Spivey, que lhe analisa o relatório e o histórico. O documento revela uma personalidade conflituosa, preguiçosa e que fala sem autorização, presa pelo menos cinco vezes por agressão e violação de menores. Contudo, McMurphy aparenta ser um homem muito inteligente, disposto a colaborar a 100% com os técnicos: I'm here to cooperate with you a hundred percent. A hundred percent. I'll be just right down the line with ya'. You watch. Sofre ou não de distúrbio mental? Rapidamente se aperceberá de que, naquela clínica, a resposta pouco importa.

McMurphy encontra uma ala de homens claramente perturbados, cada um com as suas particularidades: o feio Mr. Fredrickson, viciado em cigarros, o índio-chefe Bromden, falso surdo-mudo e com talento para o basket, o frontal Taber, que adora fazer apostas, Billy Bibbit, o gago apaixonado, o sorridente Martini, o infantilóide Mr. Cheswick ou o culto Mr. Harding. Os pacientes são permanentemente supervisionados por seguranças e enfermeiras, entre as quais a intransigente e insensível Ratched (Louise Fletcher, magnífica), e tratados como crianças, privadas de livre arbítrio, obrigadas a cumprir horários, rotinas e medicamentos que outra coisa não são senão drogas. Arrisco-me a dizer que mesmo que não sejam doidos, os pacientes são de tal forma tratados que ou se convertem à loucura, por sua livre vontade, ou se condenam a si próprios, a um sem fim de castigos que os deixarão irreconhecíveis. Refiro-me, nomeadamente, ao tratamento por choques elétricos. Os internados vivem com medo constante, obedientes a todos os estímulos que nem cãezinhos de Pavlov, sujeitos à autoridade de um sistema que os exclui e destrói.

A enfermeira Ratched convoca, diariamente, a terapia de grupo. Todos se reúnem em semi-círculo com fim ao diálogo, para evitar o isolamento. Mas as conversas não surgem espontanea ou naturalmente. Temendo represálias, os doentes abdicam das suas privacidade e vontade próprias e respondem, ficando ainda mais ansiosos. McMurphy apercebe-se desta mosntruosa realidade e fica revoltado, empenhando-se para trazer a razão de volta ao hospital. Mas ninguém quer saber de irreverências ou de provocações. Muito menos a enfermeira Ratched, que desde logo entra em conflito com ele.

McMurphy tentará quebrar a ordem imposta, tentando recordar a liberdade, o livre arbítrio e a saúde mental que daí resulta: afinal, a liberdade e a capacidade de decisão individual são aquilo que nos torna humanos.

What do you think you are, for Chrissake, crazy or somethin'? Well you're not! You're not! You're no crazier than the average asshole out walkin' around on the streets and that's it.

O sistema não trata os loucos como humanos, independentemente das suas perturbações. McMurphy tenta com que Ratched lhes dê permissão para assistirem ao jogo de basebol pela televisão. Mas falha: não há horários para isso. A enfermeira ainda lhes concede o direito ao voto, mas os pacientes jamais a desafiariam. Mais tarde, McMurphy tenta levantar uma bacia para quebrar as paredes e fugir para o exterior, para assistir ao jogo. Mas falha novamente. Contudo, não cessará de encorajar os homens. Na sessão de terapia de grupo do dia seguinte, insiste na votação. Ganha mais votos, mas Ratched certifica-se de que o prazo de votação termine antes que McMurphy reuna os votos suficientes. McMurphy falha, pela terceira vez. Não desanima, porém. Vai para a frente do televisor e fantasia um jogo imaginário, qual maluquinho, gritando e vibrando com as emoções do jogo. E, desse modo, alegria torna à ala psiquiátrica.

Um dia, McMurphy escapa-se pela vedação. Faz-se passar por motorista de um autocarro e sequestra os doentes para uma viagem ao alto mar. Embarcam todos num pesqueiro de propriedade privada, com fim à aventura. E sentem-se vivos! Uma amiga de McMurphy, que com eles apanhou boleia a meio do caminho, ainda alerta:

- They'll throw you in the can again, you know?
- No, they won't. We're nuts! They'll just take us back to the feeb farm, see?

Mais tarde, viremos a descobrir que muitos dos hóspedes da clínica são voluntários. Ou pelo menos, começaram como voluntários. Um pouco como McMurphy. Contudo, é fácil entrar. O difícil é sair. Há sempre uma forma de subverter a realidade e considerar alguém louco. Os médicos podem não ver um louco em McMurphy, podem ver alguém extramamente perigoso - e isso basta-lhes para justificar um distúrbio, para justificar a sua perpétua clausura naquele centro. Quem não é doido, passa-se por doido, mas acaba inevitavelmente doido e sem autonomia, digno de descrédito. Veja-se o que acaba por acontecer a McMurphy, quando tem a oportunidade de escapar e deixa-se ficar, naquele refúgio do mundo.

Grande, grande filme. Clássico intemporal, sobriamente realizado por Milos Forman.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

AS AVENTURAS DE PETER PAN (1953)

PONTUAÇÃO: BOM
Título Original: Peter Pan
Realização: Clyde Geronimi, Wilfred Jackson e Hamilton Luske

Filme de Animação


Crítica: Uma das mais divertidas e hilariantes aventuras da Disney. Peter Pan adapta a deslumbrante peça de J. M. Barrie sobre a importância de ser criança, em toda a sua inocência, pureza e capacidade de sonhar e acreditar. Repleto de acção, fantasia e de muito bom humor, a magia das histórias de encantar ganha um ritmo contagiante. Personagens como o Capitão Gancho ou o Barriga (os maus como agentes da comédia), o crocodilo ou a cadelinha Naná (empenhada no papel de ama), o Chefe Índio ou os Meninos Perdidos, as sereias ou a fada Sininho (temperamental e nervozinha), Wendy e os irmãos ou o próprio Peter Pan (destemido e impulsivo, o rapaz que nunca cresce), são verdadeiramente marcantes e inesquecíveis. Peter Pan é claro, também, nos papéis que atribui ao Feminino e ao Masculino: os rapazes são os eternos brincalhões e as raparigas são as mulheres ciumentas e fúteis (como a fada ou as sereias) ou as mães (simbolizadas na figura da jovem Wendy), amparo eterno dos rapazes. Uma vez crescidos, nunca mais poderão voltar à Terra do Nunca, a eterna dimensão da infância, onde tudo pode acontecer. Criativo no desenho e vibrante na banda sonora, eis, pois, um filme em grande. Sombra imperdível na nossa memória.

SPARTACUS (1960)

PONTUAÇÃO: BOM
Título Original: Spartacus
Realização: Stanley Kubrick, Anthonny Mann
Principais Actores: Kirk Douglas, Laurence Olivier, Jean Simmons, Tony Curtis, Charles Laughton, Peter Ustinov, John Gavin, Nina Foch, John Ireland, Herbert Lom, John Dall, Charles McGraw, Joanna Barnes, Harold Stone, Woody Strode, Peter Brocco

Crítica:

UM REBELDE CONTRA ROMA

Das minas à arena, da arena à revolta e da revolta à cruz, Spartacus impõe-se como um filme verdadeiramente monumental; uma referência, ao qual muitos épicos posteriores foram beber inspiração. Orquestrado por uma banda sonora extraordinária (Alex North), repleta tanto de ornamentos como de excessos, e dotado de uma deslumbrante fotografia (Russell Metty) que se alia magistralmente à noção de espectáculo, a magnificência da obra manifesta-se ainda na arrojada direcção artística (Alexander Golitzen, Eric Orbom, Russell A. Gausman e Julia Heron) e no irrepreensível figurino (Valles e William Ware Theiss).

In the last century before the birth of the new faith called Christianity, which was destined to overthrow the pagan tyranny of Rome and bring about a new society, the Roman Republic stood at the very center of the civilized world. "Of all things fairest," sang the poet, "first among cities and home of the gods is golden Rome." Yet, even at the zenith of her pride and power, the Republic lay fatally stricken with a disease called human slavery. The age of the dictator was at hand, waiting in the shadows for the event to bring it forth. In that same century, in the conquered Greek province of Thrace, an illiterate slave woman added to her master's wealth by giving birth to a son whom she named Spartacus. A proud, rebellious son who was sold to living death in the mines of Libya before his thirteenth birthday. There, under whip and chain and sun, he lived out his youth and his young manhood dreaming the death of slavery two thousand years before it finally would die.
Narrador

Como introduz o narrador, eloquente, Spartacus conta a história de um escravo que sonha com a liberdade. O protagonista (Kirk Douglas, numa entrega total ao papel) é-nos apresentado acorrentado, algures nas montanhas da Líbia, envolto em poeira e em suor, debaixo de um sol assaz intenso. Trabalha arduamente nas minas, quando é comprado por Lentulus Batiatus (excepcional Peter Ustinov) e é levado para Cápua, para uma Academia de Gladiadores. Desde cedo revela os traços do seu carácter: You might even be intelligent. That's dangerous for slaves. É por lá que conhece a lindíssima e encantadora escrava Varinia (Jean Simmons) e que trava os primeiros combates mortais contra os seus colegas de cela. Cruel existência, desumana e monstruosa condição, aquela que nos marcou o passado: veja-se o desprezo e a indiferença com que os romanos tratam os escravos ou o entusiasmo e regozijo com que assistem às fatais e espectaculares lutas de gladiadores, como se de confrontos entre animais se tratassem. I am not an animal! Como se os escravos, afinal, não tivesse alma...

Num famoso diálogo com Tigranes Levantus (Herbert Lom), Spartacus afirma, uma vez:

All men lose when they die and all men die. But a slave and a free man lose different things. (...) When a free man dies, he loses the pleasure of life. A slave loses his pain. Death is the only freedom a slave knows.

Spartacus, que por fraternidade de um companheiro escapa à morte na arena, revela-se um líder deveras inspirador, capaz de motivar exércitos de centenas e centenas de semelhantes. A rebeldia reclama uma necessidade - unanimamente sentida e desejada - de justiça e de integridade.

Maybe there's no peace in this world, for us or for anyone else, I don't know. But I do know that, as long as we live, we must remain true to ourselves.
Spartacus

Quando se dá o motim e se propicia a revolta pela liberdade, Spartacus rapta Varinia. Têm ambos, finalmente, espaço e tempo para se amarem mutuamente. Mas a rebeldia cria autênticos e violentos saqueadores, que não só desafiam como ameaçam, seriamente, a autoridade e o poder de Roma e do Senado.

Na capital da república, a autenticidade dos cenários marca um contraste evidente. Refiro-me tanto às assembleias dos corruptos estrategas e senadores como aos palácios dos gananciosos líderes das legiões; temidos por tudo e todos, tal é o seu poder. Levam vidas faustosas e plenas de luxo, com mesas exuberantes, um guarda-roupa vistoso e tesouros valiosíssimos, que lhes asseguram os confortos. Quando não se pavoneiam em retórica, desfilam pelos corredores, atenciosamente servidos por escravos. Passam as tardes nas piscinas públicas, coleccionam mulheres e amantes. O culto e a admiração pelo corpo masculino é tamanho que a bissexualidade é a tendência mais natural do mundo. Aliás, Spartacus aborda este assunto com uma subtileza tão tremenda quanto fascinante. Uma das vezes que o faz, é por meio de um esbelto e oleado tronco de herói grego (dom natural do actor John Gavin, que interpreta o papel de Julius Caesar), discretamente mimado pelo real adversário de Spartacus, o general Marcus Licinius Crassus (Laurence Olivier). Mas ainda antes dessa cena, há um diálogo metafórico e magistral onde o mesmo tirano romano, em conversa com o declamador Antoninus (Tony Curtis), aborda a sua natureza bissexual e questiona a do rapsodo, claramente interessado e atraído:

Crassus: Do you eat oysters?
Antoninus: When I have them, master.
Crassus: Do you eat snails?
Antoninus: No, master.
Crassus: Do you consider the eating of oysters to be moral and the eating of snails to be immoral?
Antoninus: No, master.
Crassus: Of course not. It is all a matter of taste, isn't it?
Antoninus: Yes, master.
Crassus: And taste is not the same as appetite, and therefore not a question of morals.
Antoninus: It could be argued so, master.
Crassus: My robe, Antoninus. My taste includes both snails and oysters.

A cena acaba, contudo, com o desaparecimento de Antoninus. Logo de seguida, descobrimos que o artista se juntou às hostes de Spartacus, por defender a sua causa e por renegar a arrogância de Crassus. A elipse deixa-nos, no entanto, sem perceber como se deu a fuga. Antoninus torna-se-á, depois, o braço direito do ex-gladiador. Spartacus admirá-lo-á genuinamente, como a um irmão. Ficará fascinado com os seus truques de magia, com a sua capacidade para entreter e divertir as gentes e com o seu talento para cantar poesias eruditas, que lembram a importância de regressar a casa.

Antoninus: Are you afraid to die, Spartacus?
Spartacus: No more than I was to be born.

Na segunda parte da obra, depois do entreacto, a acção ganha dimensões avassaladoras. Dá-se uma batalha impressionante, filmada e coreografada entre panorâmicas e movimentos de câmera notáveis e ambiciosos. Se até à data, e do ponto de vista essencialmente técnico, pouco se tinha notado da genialidade de Kubrick, ela salta perfeitamente à vista nesta assombrosa e mortal peleja. Os discursos que tanto Spartacus como Crassus proferem, alternadamente às multidões, são duma grandiloquência sideral. Grandes cenas, na preparação de um confronto visualmente arrebatador.

I'm not after glory, I'm after Spartacus! (...) this campaign is not alone to kill Spartacus. It is to kill the legend of Spartacus.
Crassus
O final é puramente trágico, ainda que lance um importantíssima conquista: um fio de esperança. A força de Roma dizima implacavelmente os exércitos de gladiadores e, aos sobreviventes, condena-os à crucificação. Antes disso, quando Crassus os obriga a denunciarem Spartacus, todos se levantam, um a um, proferindo I am Spartacus! Que momento incrível e arrepiante! Que demonstração de lealdade e de carácter! Varinia, que entretanto havia sido apanhada por Crassus, consegue a carta de alforria, por intermédio do senador Sempronius Gracchus (Charles Laughton, numa performance brilhante), que sempre odiou a prepotência de Crassus. Ao partir de Roma, com um filho nascido entre os braços, depara-se com Spartacus na cruz:

Please die, my love... die, die now my darling!

Um desfecho profundamente emocionante e nada convencional para a Hollywood dos anos 60.

Spartacus, também, nunca foi essencialmente uma produção de estúdio. Foi mais um projecto pessoal de Kirk Douglas, que desde o princípio condicionou a visão da obra (adaptada do romance de Howard Fast). Anthonny Mann, por exemplo, foi despedido na fase inicial do projecto, pelo simples facto de Douglas ambicionar um visionário para a cadeira de realizador. Foi aí que entrou Kubrick. Mas Kubrick nunca se sentiu muito à-vontade com o projecto, ainda que por meio dele tivesse atingido o estrelato. Na verdade, vemos e sentimos muito pouco de Kubrick neste Spartacus, o que é pena. Por aí o filme poderia ter sido, certamente, uma obra ainda mais grandiosa. Neste filme que chegou até nós, nem sempre a câmera ostenta inspiração, sobretudo nas primeiras cenas, onde a história custa a arrancar eficazmente. No todo, nem sempre o filme se mantém ao mesmo nível. Fosse ele dotado de um equilíbrio dramatúrgico apurado e exemplar e não hesitaria em atribuir-lhe as cinco estrelas.

Ainda assim, estamos perante um feito absolutamente memorável. Grande, grande filme.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

O ESPELHO (1975)

PONTUAÇÃO: EXCELENTE
★★★★★
Título Original: Зеркало / Zerkalo
Realização: Andrei Tarkovsky
Principais Actores: Margarita Terekhova, Ignat Daniltsev, Larisa Tarkovskaya, Alla Demidova, Anatoli Solonitsyn, Tamara Ogorodnikova, Yuri Nazarov, Oleg Yankovsky, Filipp Yankovsky, Yuri Sventisov, Tamara Reshetnikova

Crítica:

ARTE E MEMÓRIA

Assombroso. Abismal. Deslumbrante. Uma experiência profundamente lírica, perturbante e enigmática. Uma complexa odisseia de sonhos e recordações, antes de um último suspiro. A confluência de uma existência passada e de uma existência presente, de sensibilidade e criatividade extremas, num reflexo genial. A nostalgia da infância perdida, a confluência dos tempos, a meditação. A História, a natureza, a vida. As personagens intimamente marcantes: a mãe, sobre todas as outras. A autobiografia iluminada e transcendente, na qual os agentes artísticos sublimam e eternizam a memória, plenos de espiritualidade. O Espelho não é, pois, senão uma obra-prima como poucas, hipnoticamente esculpida, extraordinariamente pensada e magistralmente filmada. Que autor sublime e divinal, Tarkovsky.

Um sonho perturba-me com uma persistência espantosa. Chama-me de volta à aldeia do meu avô. Àquela casa, onde eu nasci há quarenta anos, em cima da mesa de jantar. A visão é-me tão cara que até dói. Mas, quando quero entrar na sua casa, aparece qualquer coisa e impede-me. Tenho este sonho com frequência. Mas quando vejo as paredes de madeira e a escuridão, sei - mesmo a sonhar - que não passa de um sonho. E a minha imensa alegria perde-se na sombra da espera do despertar. Por vezes, porém, deixo de sonhar com a casa da minha infância. E tenho saudades. E espero impaciente o regresso deste sonho, onde voltarei a ver-me criança e a sentir-me feliz, porque tudo está ainda pela frente e tudo será ainda possível...

Bach, Pergolesi, Purcell e composições originais de Eduard Artemyev fluem na espectral perfeição das imagens, emanando um mistério incomensurável. As vozes, os tambores e o infinito. A direcção artística é de um primor e requinte notáveis. A mise-en-scène é incrivelmente preparada, resplandecendo imaculada tanto na cor como no preto e branco. Há imagens inesquecíveis, atmosferas construídas ao mais ínfimo pormenor. A câmera de Tarkovsky avança e recua pausadamente, lentamente. O olhar é lúgubre, tenebroso, outras vezes chega mesmo a ser assustador e arrepiante. Como numa dimensão onírica, o espaço e o tempo confundem-se, as personagens mudam de nome, de identidade, mas nunca de carga simbólica. Até os actores são os mesmos. Tenho a sensação de já ter vivido isto antes... Porém, estou aqui pela primeira vez. Há um toque, há um contacto entre mundos distintos, mas ciclica e geracionalmente repetidos. Excepcional elenco: Margarita Terekhova, Ignat Daniltsev... Depois, há declamação de poesia, versos do pai Arseni Tarkovsky, ditos pelo próprio, no culminar de cenas absolutamente magníficas. Fecundam as metáforas, vigora a filosofia:

Não acredito em pressentimentos, nem tenho medo dos maus ventos, nem fujo à calúnia nem ao veneno. A morte não existe neste mundo pleno. São todos imortais, é tudo imortal. Temer a morte aos quinze é um absurdo. Aos setenta é igual... Além da vida e da luz nada existe. Nem a escura noite, nem a morte; vivemos todos à beira-mar, a minha sina é apanhar as redes que trazem muito peixe. Sem inquilinos, a casa tem que se desmoronar. Portanto, para habitar qualquer dos séculos eu posso convocar. E é por isso que à minha mesa tenho os vossos filhos, mães, esposas, bisavós, netinhos. Pois construimos hoje o futuro. E quando eu levantar a mão, os seus cinco raios convosco ficarão. As clavículas serão o suporte de cada dia que se passou. Medi o tempo às braçadas, galguei-o, escolhi-o, como me mandavam as minhas alçadas. Nós cavalgámos para o sul e a poeira ficou para trás. Deitava fumo o capim, de súbito o grilo perspicaz, ao sentir as ferraduras do cavalo com as antenas, profetizou-me morte ruim. Prendi à sela, pois, o meu fado, e levantei-me nos estribos a contemplar o tempo em que vivo e o que me será dado. Alegra-me a sina, imortal, e que de século em século o meu sangue correrá, mas vou dar a minha vida insurrecta por um cantinho de calor seguro, conquanto a sua agulha voadora, qual uma linha, não me conduza pelo mundo fora.

A natureza transforma-se mesmo diante dos nossos olhos. O vento vai e vem e serve de elo entre todas as coisas. A perfeita harmonia entre a mística do redor e os segredos maiores da existência:

Caí e que vejo eu... raízes, arbustos... Nunca lhe pareceu que as plantas também sentem, pensam, raciocinam até? As árvores, a aveleira... (...) Estão calmos. Livres de correria, da azáfama. Também das banalidades. Tudo isto só a nós respeita. Porque não acreditamos na natureza que está em nós. Sempre desconfiados, agitados. Sempre sem tempo para pensar.

Alimenta-se o diálogo inter-artes. A música, a literatura, a pintura - Da Vinci. A beleza da criação artística. O cinema - o poster de Andrei Rubliov concretiza a mise en abyme, o espelho dentro do próprio espelho, por meio dos quais a arte se olha a si própria. Vinculam-se princípios:


Não se pode escrever por dinheiro. Escrever é um acto de coragem. A obrigação do poeta é causar emoções espirituais, não educar idólatras.

Revisita-se a História. A Europa, a Rússia, a Igreja, a guerra, os grandes acontecimentos que alteraram as fronteiras e as páginas do futuro, mas que repetiram, sem novidade, os erros da Humanidade. Tarkovsky recorre então a filmagens de arquivo, conferindo-lhes uma aura de reflexão e um lirismo inesperado. Apercebemo-nos da forma como a guerra influenciou e traumatizou a infância e o século, conferindo-lhes a ausência, a escassez e a solidão. Ainda assim, a vida seguiu o seu curso natural: o protagonista omnipresente casou, divorciou-se e ausentou-se do filho. Não havia mais a guerra, mas havia ainda o Homem. Tudo se repetiu e, ainda assim e apesar do trauma, a infância continuou a significar para ele um refúgio de pureza e de felicidade.
Enfim, que feito. O Espelho é puro cinema, pura poesia - arte na sua acepção máxima. Um filme nuclear no percurso cinematográfico do cineasta.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

BABEL (2006)

PONTUAÇÃO: EXCELENTE
★★★★★
Título Original: Babel
Realização: Alejandro González Iñárritu

Principais Actores: Brad Pitt, Cate Blanchett, Gael García Bernal, Adriana Barraza, Boubker Ait El Caid, Tarchani Said, Rinko Kikuchi, Kôji Yakusho, Elle Fanning, Nathan Gamble


Crítica:

A DOR E O DESESPERO

Uma obra-prima do cinema contemporâneo. A globalização, as diferenças culturais e o choque de todas essas diferenças numa realização brilhante e originalíssima, fria e crua, do mexicano Alejandro González Iñárritu. O argumento de Guillermo Arriaga é completamente surpreendente, inteligente e muito bem construído. É excelente! De génio! Brad Pitt está divinal, Cate Blanchett também, e a mexicana Adriana Barraza tem uma interpretação que é a cara da angústia. Quando o choque é inevitável, o melhor é parar e escutarmo-nos por dentro. Quando nu, o ser humano é igual em qualquer parte do mundo.

[Nova crítica em breve]

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

A PIANISTA (2001)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
Título Original: La Pianiste
Realização: Michael Haneke
Principais Actores: Isabelle Huppert, Benoit Magimel, Annie Girardot, Susanne Lothar

Crítica:


ENTRE O DESEJO E A LOUCURA

A Pianista é um filme sobre intimidade. E assistir a um filme como este é como invadir a privacidade de alguém. Nós próprios que somos capazes de julgar Erika pela sua promiscuidade, perversão e obscenidade, somos os primeiros a perceber
que, enquanto espectadores, não praticamos senão uma forma de voyeurismo. Ser espectador é, afinal, a faculdade de nos alienarmos da nossa realidade numa outra realidade, na realidade de outrém. Haneke recorre, uma vez mais, a este irresistível exercício de confrontação. Todavia, não é essa a questão central em A Pianista. Foquemo-nos na intimidade.

Erika (fenomenal interpretação de Isabelle Huppert) é-nos apresentada como uma personagem muito solitária. Apenas vive com a mãe (que vê nos mistérios da filha autênticas provocações e oportunidades perfeitas para controlá-la), o pai acabou num manicómio e não consta que tenha amigos. Apesar da sua idade, é tratada como uma criança, sempre incentivada pela mãe a fazer melhor pela sua arte; o que não funciona como estímulo, mas sim como pressão para atingir a perfeição. Essa austeridade tem reflexo na personalidade da própria Erika. É uma pessoa fria, aparentemente sem defeitos e sem sentimentos, até. É professora de piano no Consevatório de Viena e é sobre os alunos que descarrega todas as suas frustrações, mascaradas na forma de exigência e mau feitio. Porém, todos a idolatram. É um exemplo. Quantos de nós não exteriorizamos senão uma construção de nós próprios? O que acontece é que quantas mais mágoas do passado, mais defesas empenhamos e empreendemos. O risco, altíssimo, prende-se com a possibilidade de nos tornarmos inatingíveis, insensíveis aos outros e convictos de que ninguém toca a nossa Verdade interior. Até aqui, facilmente nos identificamos com Erika. Só que Haneke, a partir do romance de Elfriede Jelinek, propõe-nos a desconstrução da personagem: da imagem ao íntimo, às fantasias e aos pensamentos mais secretos. E as aparências, se não iludem, pelo menos escondem. E escondem muito.

Porque tenta destruir aquilo que nos podia aproximar? - questiona Walter. E a questão acaba por resumir toda a pertinência do argumento. Erika é, afinal, uma mulher frágil, tarada e sexualmente recalcada. Consome pornografia, desloca-se a parques de estacionamento com sede do sexo alheio e aproveitar-se-á de um aluno para concretizar as suas sádicas ficções. O erotismo da obra rapidamente se esgota em nojo e em sensações repugnantes. Às tantas, Erika revela-se assustadoramente indiferente às preocupações maternas e absolutamente perdida entre obsessões e maldades (o que faz a Anna, aluna com quem se identifica, é totalmente desprezível e denota todo o seu desiquilíbrio mental; quiçá genético).

Michael Haneke traz-nos A Pianista à luz de um realismo atroz, que se espelha especialmente em todos os enquadramentos simples, nos takes mais ou menos longos e na valorização da cenografia que daí resulta. É cinema sem artifícios maiores, denso e frontal, dotado de performances incríveis e que encerram em si próprias um inestimável poder.

OS FILHOS DO HOMEM (2006)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
★★★★★
Título Original: Children of Men
Realização: Alfonso Cuarón
Principais Actores: Clive Owen, Julianne Moore, Michael Caine, Chiwetel Ejiofor, Claire-Hope Ashitey, Pam Ferris, Danny Huston, Peter Mullan, Charlie Hunnam

Crítica:

A DISTOPIA
E A ESPERANÇA DO AMANHÃ


As the sound of the playgrounds faded, the despair set in.
Very odd, what happens in a world without children's voices.

Eis, visceral e redentora, uma obra verdadeiramente assombrosa. Uma experiência esteticamente ímpar, social e sociologicamente pertinente, politicamente provocadora, religiosamente reveladora. De um realismo impressionante, Os Filhos do Homem é, por certo, uma das mais credíveis e mais bem conseguidas incursões futurísticas da história do cinema.

A realização de Alfonso Cuarón é magistral e o seu método de filmar, ainda que aparentemente deambulatório, é preciso. E perfeito: câmera na mão, longos (e às vezes frenéticos) planos-sequência sem cortes e um trabalho de encenação ao pormenor. Cenas como a do cerco inesperado dos rebeldes ao carro em movimento, a da fuga difícil aos traidores terroristas ou mesmo aqueloutra em que o choro de criança silencia o horror da batalha são absolutamente magníficas e revelam um refinado sentido de orquestração e de subtileza.

I can't really remember when I last had any hope, and I certainly can't remember when anyone else did either. Because really, since women stopped being able to have babies, what's left to hope for?

Mais do que uma mera história de fuga e de acção, Cuarón propõe, num segundo plano*, um riquíssimo universo de reflexão e de confluência estética. A deslumbrante cinematografia de Emmanuel Lubezki, assim como o excelente e detalhado trabalho de cenografia, revela-se um dos trunfos maiores da obra para a criação de todo aquele cenário apocalíptico, caótico e sujo. A banda sonora, quando por breves instantes do silêncio ecoa ou do tormento das armas se desprende, evoca, com grande espiritualidade, a acalmia impossível de todo aquele mundo de descrença, de guerra e de inevitável extinção. O trabalho de montagem é notável. Destacam-se também as acertadas escolhas de casting, em especial o extraordinário desempenho de Michael Caine. O argumento, esse, imerso em símbolos, analogias, profecias e sátira, revela-se um exercício de muito boa escrita que, mais do que visitar o futuro, anseia reconhecer o presente.

And now one for all the nostalgics out there. A blast from the past all the way back from 2003, that beautiful time when people refused to accept that the future was just around the corner.

Enfim... uma obra de arte e um grande pedaço de cinema. Brilhante.


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*A respeito, diz mesmo Slavoj Zizek, nos extras do DVD: The true focus of the film is there: in the background.


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CINEROAD ©2020 de Roberto Simões