quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

O ESPELHO (1975)

PONTUAÇÃO: EXCELENTE
★★★★★
Título Original: Зеркало / Zerkalo
Realização: Andrei Tarkovsky
Principais Actores: Margarita Terekhova, Ignat Daniltsev, Larisa Tarkovskaya, Alla Demidova, Anatoli Solonitsyn, Tamara Ogorodnikova, Yuri Nazarov, Oleg Yankovsky, Filipp Yankovsky, Yuri Sventisov, Tamara Reshetnikova

Crítica:

ARTE E MEMÓRIA

Assombroso. Abismal. Deslumbrante. Uma experiência profundamente lírica, perturbante e enigmática. Uma complexa odisseia de sonhos e recordações, antes de um último suspiro. A confluência de uma existência passada e de uma existência presente, de sensibilidade e criatividade extremas, num reflexo genial. A nostalgia da infância perdida, a confluência dos tempos, a meditação. A História, a natureza, a vida. As personagens intimamente marcantes: a mãe, sobre todas as outras. A autobiografia iluminada e transcendente, na qual os agentes artísticos sublimam e eternizam a memória, plenos de espiritualidade. O Espelho não é, pois, senão uma obra-prima como poucas, hipnoticamente esculpida, extraordinariamente pensada e magistralmente filmada. Que autor sublime e divinal, Tarkovsky.

Um sonho perturba-me com uma persistência espantosa. Chama-me de volta à aldeia do meu avô. Àquela casa, onde eu nasci há quarenta anos, em cima da mesa de jantar. A visão é-me tão cara que até dói. Mas, quando quero entrar na sua casa, aparece qualquer coisa e impede-me. Tenho este sonho com frequência. Mas quando vejo as paredes de madeira e a escuridão, sei - mesmo a sonhar - que não passa de um sonho. E a minha imensa alegria perde-se na sombra da espera do despertar. Por vezes, porém, deixo de sonhar com a casa da minha infância. E tenho saudades. E espero impaciente o regresso deste sonho, onde voltarei a ver-me criança e a sentir-me feliz, porque tudo está ainda pela frente e tudo será ainda possível...

Bach, Pergolesi, Purcell e composições originais de Eduard Artemyev fluem na espectral perfeição das imagens, emanando um mistério incomensurável. As vozes, os tambores e o infinito. A direcção artística é de um primor e requinte notáveis. A mise-en-scène é incrivelmente preparada, resplandecendo imaculada tanto na cor como no preto e branco. Há imagens inesquecíveis, atmosferas construídas ao mais ínfimo pormenor. A câmera de Tarkovsky avança e recua pausadamente, lentamente. O olhar é lúgubre, tenebroso, outras vezes chega mesmo a ser assustador e arrepiante. Como numa dimensão onírica, o espaço e o tempo confundem-se, as personagens mudam de nome, de identidade, mas nunca de carga simbólica. Até os actores são os mesmos. Tenho a sensação de já ter vivido isto antes... Porém, estou aqui pela primeira vez. Há um toque, há um contacto entre mundos distintos, mas ciclica e geracionalmente repetidos. Excepcional elenco: Margarita Terekhova, Ignat Daniltsev... Depois, há declamação de poesia, versos do pai Arseni Tarkovsky, ditos pelo próprio, no culminar de cenas absolutamente magníficas. Fecundam as metáforas, vigora a filosofia:

Não acredito em pressentimentos, nem tenho medo dos maus ventos, nem fujo à calúnia nem ao veneno. A morte não existe neste mundo pleno. São todos imortais, é tudo imortal. Temer a morte aos quinze é um absurdo. Aos setenta é igual... Além da vida e da luz nada existe. Nem a escura noite, nem a morte; vivemos todos à beira-mar, a minha sina é apanhar as redes que trazem muito peixe. Sem inquilinos, a casa tem que se desmoronar. Portanto, para habitar qualquer dos séculos eu posso convocar. E é por isso que à minha mesa tenho os vossos filhos, mães, esposas, bisavós, netinhos. Pois construimos hoje o futuro. E quando eu levantar a mão, os seus cinco raios convosco ficarão. As clavículas serão o suporte de cada dia que se passou. Medi o tempo às braçadas, galguei-o, escolhi-o, como me mandavam as minhas alçadas. Nós cavalgámos para o sul e a poeira ficou para trás. Deitava fumo o capim, de súbito o grilo perspicaz, ao sentir as ferraduras do cavalo com as antenas, profetizou-me morte ruim. Prendi à sela, pois, o meu fado, e levantei-me nos estribos a contemplar o tempo em que vivo e o que me será dado. Alegra-me a sina, imortal, e que de século em século o meu sangue correrá, mas vou dar a minha vida insurrecta por um cantinho de calor seguro, conquanto a sua agulha voadora, qual uma linha, não me conduza pelo mundo fora.

A natureza transforma-se mesmo diante dos nossos olhos. O vento vai e vem e serve de elo entre todas as coisas. A perfeita harmonia entre a mística do redor e os segredos maiores da existência:

Caí e que vejo eu... raízes, arbustos... Nunca lhe pareceu que as plantas também sentem, pensam, raciocinam até? As árvores, a aveleira... (...) Estão calmos. Livres de correria, da azáfama. Também das banalidades. Tudo isto só a nós respeita. Porque não acreditamos na natureza que está em nós. Sempre desconfiados, agitados. Sempre sem tempo para pensar.

Alimenta-se o diálogo inter-artes. A música, a literatura, a pintura - Da Vinci. A beleza da criação artística. O cinema - o poster de Andrei Rubliov concretiza a mise en abyme, o espelho dentro do próprio espelho, por meio dos quais a arte se olha a si própria. Vinculam-se princípios:


Não se pode escrever por dinheiro. Escrever é um acto de coragem. A obrigação do poeta é causar emoções espirituais, não educar idólatras.

Revisita-se a História. A Europa, a Rússia, a Igreja, a guerra, os grandes acontecimentos que alteraram as fronteiras e as páginas do futuro, mas que repetiram, sem novidade, os erros da Humanidade. Tarkovsky recorre então a filmagens de arquivo, conferindo-lhes uma aura de reflexão e um lirismo inesperado. Apercebemo-nos da forma como a guerra influenciou e traumatizou a infância e o século, conferindo-lhes a ausência, a escassez e a solidão. Ainda assim, a vida seguiu o seu curso natural: o protagonista omnipresente casou, divorciou-se e ausentou-se do filho. Não havia mais a guerra, mas havia ainda o Homem. Tudo se repetiu e, ainda assim e apesar do trauma, a infância continuou a significar para ele um refúgio de pureza e de felicidade.
Enfim, que feito. O Espelho é puro cinema, pura poesia - arte na sua acepção máxima. Um filme nuclear no percurso cinematográfico do cineasta.

10 comentários:

  1. Humm... estou muito curioso para saber a tua opinião sobre esta obra-prima. Penso que vais adorar :)

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  2. Infelizmente não tive a oportunidade de conferir nada de Tarkovsky.

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  3. FLÁVIO GONÇALVES: E como poderia não adorar? É genial.

    WALLY: É obrigatório ;) Quando puder, descubra.

    Cumps.
    Roberto Simões
    CINEROAD – A Estrada do Cinema

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  4. Roberto, ainda não o achas o melhor cineasta de todos os tempos? :)

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  5. ÁLVARO MARTINS: Um dos melhores, indiscutivelmente. Pessoalmente, já está no ranking dos preferidos; claro está.

    Cumps.
    Roberto Simões
    » CINEROAD - A Estrada do Cinema «

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  6. Excelente crítica... não me lembrava dessas citações, agradou-me especialmente a que tratou da imortalidade e do facto de temer a morte ser absurdo. Já tenho saudades d'O Espelho... :)


    O próximo é o Solaris não é? Outro excelente, garanto-te ;)

    Abraços

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  7. FLÁVIO GONÇALVES: Obrigadíssimo ;) Tem frases mesmo memoráveis. Que apelam a uma grande reflexão e a uma grande sensibilidade estética.

    Sim, sim, o próximo que analisarei é o SOLARIS. Brevemente.

    Cumps.
    Roberto Simões
    » CINEROAD - A Estrada do Cinema «

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  8. Para mim, tem alguns dos melhores planos alguma vez concebidos na história do Cinema, e é sempre um prazer revê-lo.

    Abraço.

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  9. Uff...honestamente nem sei o que dizer :P
    Depois de visualizá-lo não posso dizer que é o meu preferido, à data, do cineasta, o seu carácter filosófico, metafórico e complexo faz com que não seja para todos os dias e para todos os estados de espírito. Mas reconheço (como poderia não reconhecer?) o seu lado artístico fortíssimo...uma peça única no cinema, na minha opinião. O filme é magnífico em espelhar e incentivar à memória, ao passado, à vida e aos momentos importantes e essenciais.

    Destaco ainda o que para mim é terrivelmente genial - a fotografia e a montagem, sobretudo a primeira.

    abraço

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  10. SAM: Completamente de acordo! E que planos.

    JORGE: Pois, a magnificência de um objecto artístico como O ESPELHO rasga uma vertigem colossal no nosso imaginário. É tremendamente genial.

    Roberto Simões
    CINEROAD

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