segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

ANDREI RUBLIOV (1966)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
Título Original: Андрей Рублёв / Andrey Rublyov
Realização: Andrei Tarkovsky
Principais Actores: Anatoli Solonitsyn, Ivan Lapikov, Nikolai Grinko, Nikolai Sergeyev, Irma Rauch, Nikolai Burlyayen, Yuri Nazarov

Crítica:

ENTRE O SAGRADO E O PROFANO:
A ARTE COMO EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

Qual é o tempo e o lugar da arte,
num mundo assim?

Andrei Rubliov é, até certo ponto, como que uma variação d'O Sétimo Selo, acrescente-se o sexo, a violência e a contemplação. É um épico medieval magistralmente bem filmado onde, tal como na obra-prima de Bergman, é vivida uma crise de fé pelo protagonista, enquanto o país (a Rússia, neste caso) vive um conturbado e turbulento período de invasões, de sangrentas batalhas e de repressão religiosa. Todavia, n'O Sétimo Selo, a redenção da Humanidade chega apenas na Morte e com ela se atingem todas as respostas capazes de saciar a angústia existencial. Em Andrei Rubliov, a misericórdia e o perdão de Deus são intensamente procurados na Vida e o apaziguamento é repetidamente procurado, tentem os Homens voar de balão ou edificar um sino.

Corre o século XV e o monge Rubliov é já um conhecido e afamado pintor de ícones, frescos e iluminuras. A narrativa é distribuída por um prólogo, sete episódios e por um epílogo. Porém, muita sabedoria, muita tristeza. Quem multiplica o saber, aumenta a sua angústia. Quanto mais cultiva o seu caminho de iluminação e de purificação, mais se apercebe dos problemas do mundo, do Mal que corrói o Homem e que o distancia de Deus e da palavra de Cristo. O Novo Testamento ecoa, aliás, por toda a obra e o reflexo medieval não lhe faz jus. Rubliov cessa a inspirada arte das pinturas para observar o mundo e para reflectir sobre o real sentido da fé... e o que encontra? Um povo ignorante e obscuro, seguindo às cegas a hipocrisia dos representantes de Deus, conformados com o estado da humanidade:

Tudo é vaidade e perecível! Todas as tolices e vilanias já foram concebidas. Agora, nada mais se faz do que repeti-las. Todo volteia e roda nos mesmos circuitos. Se Cristo voltasse à Terra, seria de novo crucificado!

Qual o sentido da religião quando não há esperança? Quando a fé se resume ao cumprimento escrupuloso de um sem fim de códigos e condutas, desprovidas de valor e de essência? Rubliov lembra a Paixão de Cristo e a Cruz do Homem, que se deveria repetir através dos tempos. Mas o que prevaleceu após o Tempo de Cristo? O Tempo Corrompido... Qual o sentido de proclamar o sagrado por oposição ao profano, quando as principais fundações da crença estão tão fortemente abaladas? Os ortodoxos condenam o paganismo, a nudez da feitiçaria e a noite das orgias... a leviandade, a indecência... o amor vergonhoso e bestial... mas, na verdade, todos os Homens se sentem atraídos pelo desejo... Até mesmo Rubliov, que não cede à carne, mas que ainda assim prova o beijo do pecado. Qual o sentido de proclamar a paz e a justiça entre os Homens quando a guerra se repercute e se intensifica nas duas margens do rio? Os tártaros massacram, violam, saqueiam, devastam... mas não será a mesma, a nossa fé? Não será a mesma, a nossa terra, o nosso sangue? Um tártaro sorria, gritando: mesmo sem nós, dareis cabo uns dos outros, como lobos. E o inimigo estava certo. A doença corre-nos e consome-nos no sangue. Para mal dos nossos pecados, o Mal ganha uma aparência humana. Quem atenta ao Mal, atenta à carne e ao osso humano.

Hipocrisia, ignorância, paganismo, terror: todos estes factores motivam a crise de fé e a desilusão no mundo. Perante o conflito, qual é o diálogo possível entre Deus e os Homens? As palavras, mesmo quando irrompem do silêncio, nascem já corrompidas. A religião revela-se igualmente corrompida, pedante. É por isso que, às tantas, Andrei Rubliov se penitencia com o silêncio. Sentiu-se tentado pela sedução dos corpos. Matou um homem, no calor da batalha. Que homem seria, se não se penitenciasse? Tão hipócrita e impuro como qualquer um dos outros à sua volta?

Perante este estado das coisas, resta a um artista perguntar-se: como encontrar a beleza num mundo assim? A resposta é simples: na arte, despida de palavras. Na pintura. O mestre Cirilo apercebe-se, no final, que as pinturas são como janelas para o céu. Mesmo quando representa acontecimentos terrenos, a pintura (nas igrejas, conventos e catedrais) é qualquer coisa de transcendente, um intermédio entre Deus e os Homens. O artista é, por isso mesmo, um ser privilegiado. E, por esta linha de leitura, Tarkovsky introduz na obra a sua Verdade: a arte, como experiência religiosa, tem um papel fundamental para tantos quantos percorram o caminho da iluminação. A religião, onde outrora se encontrava apaziguamento para as angústias da existência, não é mais suficiente para responder às necessidades dos Homens iluminados. A religião e o passado estão manchados de sangue. A arte é a nova religião, cujas potencialidades se confundem na eternidade. Tarkovsky tenta demonstrá-lo no final, quando a cor dá lugar ao preto e branco e ascende, poderosíssima, a música operática. Para o realizador, assistir a um filme como Andrei Rubliov, é como assistir a um fresco vivo - uma experiência igualmente transcendente.

Entre a luz e as trevas, dotado de excepcionais performances, cenários e banda sonora, eis pois um filme absolutamente magnífico.

11 comentários:

  1. Ainda não enveredei por o mundo de Tarkovsky, Bergman, e mais alguns...tenho-os em espera por enquanto. Não sei o que aconselhas, mas tenho receio de ainda não ter a destreza e a capacidade emocional e crítica para poder visioná-los como merecem.

    De qualquer modo, estou a ver que estás a gostar bastante destes autores, o que me impulsiona a vê-los também, talvez quem sabe...

    abraço

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  2. JORGE: Creio que são pisadas a seguir, de forma imprescindível, no percurso de qualquer grande cinéfilo. Contudo, creio que só deverás aventurar-te quando achares que é o momento certo. Foi assim que fiz, descobri os autores quando achei natural descubri-los.

    Cumps.
    Roberto Simões
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  3. Desculpa lá Roberto, mas se classificas esta obra-prima de muito bom há por aí muito filme ao qual tens de rever a classificação.

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  4. ÁLVARO MARTINS: Não creio ;) Estou seguro da minha posição.

    Cumps.
    Roberto Simões
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  5. ÁLVARO MARTINS: Fica lá com a tua que eu fico com a minha. Estou seguro dos meus critérios e, se por acaso um dia mudar de ideias a respeito de algum filme (já aconteceu várias vezes, voltará a acontecer e mal daquele a quem nunca acontece), fá-lo-ei sem o menor problema. Considero ANDREI RUBLIOV um grande filme, uma obra sublime, e por isso lhe atribuo a classificação MUITO BOM. Se não lhe atribuo EXCELENTE é porque acho que não merece, mas enveredar por aí... enfim...
    A distinção que faço entre MUITO BOM e EXCELENTE tece-se, excepcionalmente, mais por critérios pessoais do que por outra coisa. São ambas 5 estrelas; por isso "peanuts", como diz o outro, e penso que a discussão não é muito relevante.

    Se formos pelo outro motivo, aquele que apontaste (dever rever a classificação atribuída a outros filmes)... enfim. Bem sabemos que as nossas concepções de arte não são as mesmas, temos formas distintas de abordar a arte.

    Cumps.
    Roberto Simões
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  6. "A distinção que faço entre MUITO BOM e EXCELENTE tece-se, excepcionalmente, mais por critérios pessoais do que por outra coisa." Era isto que queria ouvir, embora ache que o "excepcionalmente" esteja aí a mais.

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  7. ÁLVARO MARTINS: Oh Álvaro, vamos lá ver uma coisa. Se vamos analisar as coisas palavra a palavra não vamos muito longe. É claro que tudo é pessoal. Mas isso é óbvio, excuso de te dizer isso não é. O que te digo para além do óbvio é que duas classificações, ambas representativas de obras sublimes e de 5 estrelas, têm uma razão de ser para mim. Pessoalmente sinto a necessidade de destacar algumas obras por achar que são absolutamente geniais, revolucionárias, inovadoras ou de uma sublimidade completamente irrepreensível. Creio que para bom entendedor meia palavra basta. Serei, por isso, parco em mais palavras no que respeita a este assunto. Já tivemos discussões mais interessantes - aquelas sobre cinema, que é o que me interessa realmente debater.

    Cumps.
    Roberto Simões
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  8. É pois um pedaço de cinema magistral. Tarkovsky mais uma vez executa uma obra tremendamente eficaz e deslumbrante dentro das suas ambiguidades, metáforas e provocações. Sinceramente faltam-me as palavras para descrever o filme. Posso dizer que gostei da banda sonora, da fotografia, das interpretações e do argumento. Mas o que adorei e o que adoro é a filmagem em si, é o que o realizador consegue transmitir para o espectador. Muito bom.

    No entanto partilho da tua opinião, não suplanta a Infância de Ivan (o único para além deste que vi), por pouco ainda assim.

    abraço

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  9. Os primeiros Tarkovsky a que vi foram nos idos de 1986 em diante, o boom do VCR no Brasil. De uma tacada: Stalker, Solaris e Sacrifício. Fico feliz que ele ainda ganhe novos fãs. Em vida chegou a pegar copeques nas ruas de Moscou, sem dinheiro suficiente para pagar o ônibus (creio que aí se diz autocarro).

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  10. JORGE: E não suplanta mais uns quantos dele, mas fossem todos os filmes assim, não é ;)

    ENALDO: O SOLARIS também é muito bom. Está ao nível deste. Quanto à experiência de vida de Tarkovsky, é lamentável. Foi o infortúnio de muitos génios, infelizmente.

    Roberto Simões
    CINEROAD

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