sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

SPARTACUS (1960)

PONTUAÇÃO: BOM
Título Original: Spartacus
Realização: Stanley Kubrick, Anthonny Mann
Principais Actores: Kirk Douglas, Laurence Olivier, Jean Simmons, Tony Curtis, Charles Laughton, Peter Ustinov, John Gavin, Nina Foch, John Ireland, Herbert Lom, John Dall, Charles McGraw, Joanna Barnes, Harold Stone, Woody Strode, Peter Brocco

Crítica:

UM REBELDE CONTRA ROMA

Das minas à arena, da arena à revolta e da revolta à cruz, Spartacus impõe-se como um filme verdadeiramente monumental; uma referência, ao qual muitos épicos posteriores foram beber inspiração. Orquestrado por uma banda sonora extraordinária (Alex North), repleta tanto de ornamentos como de excessos, e dotado de uma deslumbrante fotografia (Russell Metty) que se alia magistralmente à noção de espectáculo, a magnificência da obra manifesta-se ainda na arrojada direcção artística (Alexander Golitzen, Eric Orbom, Russell A. Gausman e Julia Heron) e no irrepreensível figurino (Valles e William Ware Theiss).

In the last century before the birth of the new faith called Christianity, which was destined to overthrow the pagan tyranny of Rome and bring about a new society, the Roman Republic stood at the very center of the civilized world. "Of all things fairest," sang the poet, "first among cities and home of the gods is golden Rome." Yet, even at the zenith of her pride and power, the Republic lay fatally stricken with a disease called human slavery. The age of the dictator was at hand, waiting in the shadows for the event to bring it forth. In that same century, in the conquered Greek province of Thrace, an illiterate slave woman added to her master's wealth by giving birth to a son whom she named Spartacus. A proud, rebellious son who was sold to living death in the mines of Libya before his thirteenth birthday. There, under whip and chain and sun, he lived out his youth and his young manhood dreaming the death of slavery two thousand years before it finally would die.
Narrador

Como introduz o narrador, eloquente, Spartacus conta a história de um escravo que sonha com a liberdade. O protagonista (Kirk Douglas, numa entrega total ao papel) é-nos apresentado acorrentado, algures nas montanhas da Líbia, envolto em poeira e em suor, debaixo de um sol assaz intenso. Trabalha arduamente nas minas, quando é comprado por Lentulus Batiatus (excepcional Peter Ustinov) e é levado para Cápua, para uma Academia de Gladiadores. Desde cedo revela os traços do seu carácter: You might even be intelligent. That's dangerous for slaves. É por lá que conhece a lindíssima e encantadora escrava Varinia (Jean Simmons) e que trava os primeiros combates mortais contra os seus colegas de cela. Cruel existência, desumana e monstruosa condição, aquela que nos marcou o passado: veja-se o desprezo e a indiferença com que os romanos tratam os escravos ou o entusiasmo e regozijo com que assistem às fatais e espectaculares lutas de gladiadores, como se de confrontos entre animais se tratassem. I am not an animal! Como se os escravos, afinal, não tivesse alma...

Num famoso diálogo com Tigranes Levantus (Herbert Lom), Spartacus afirma, uma vez:

All men lose when they die and all men die. But a slave and a free man lose different things. (...) When a free man dies, he loses the pleasure of life. A slave loses his pain. Death is the only freedom a slave knows.

Spartacus, que por fraternidade de um companheiro escapa à morte na arena, revela-se um líder deveras inspirador, capaz de motivar exércitos de centenas e centenas de semelhantes. A rebeldia reclama uma necessidade - unanimamente sentida e desejada - de justiça e de integridade.

Maybe there's no peace in this world, for us or for anyone else, I don't know. But I do know that, as long as we live, we must remain true to ourselves.
Spartacus

Quando se dá o motim e se propicia a revolta pela liberdade, Spartacus rapta Varinia. Têm ambos, finalmente, espaço e tempo para se amarem mutuamente. Mas a rebeldia cria autênticos e violentos saqueadores, que não só desafiam como ameaçam, seriamente, a autoridade e o poder de Roma e do Senado.

Na capital da república, a autenticidade dos cenários marca um contraste evidente. Refiro-me tanto às assembleias dos corruptos estrategas e senadores como aos palácios dos gananciosos líderes das legiões; temidos por tudo e todos, tal é o seu poder. Levam vidas faustosas e plenas de luxo, com mesas exuberantes, um guarda-roupa vistoso e tesouros valiosíssimos, que lhes asseguram os confortos. Quando não se pavoneiam em retórica, desfilam pelos corredores, atenciosamente servidos por escravos. Passam as tardes nas piscinas públicas, coleccionam mulheres e amantes. O culto e a admiração pelo corpo masculino é tamanho que a bissexualidade é a tendência mais natural do mundo. Aliás, Spartacus aborda este assunto com uma subtileza tão tremenda quanto fascinante. Uma das vezes que o faz, é por meio de um esbelto e oleado tronco de herói grego (dom natural do actor John Gavin, que interpreta o papel de Julius Caesar), discretamente mimado pelo real adversário de Spartacus, o general Marcus Licinius Crassus (Laurence Olivier). Mas ainda antes dessa cena, há um diálogo metafórico e magistral onde o mesmo tirano romano, em conversa com o declamador Antoninus (Tony Curtis), aborda a sua natureza bissexual e questiona a do rapsodo, claramente interessado e atraído:

Crassus: Do you eat oysters?
Antoninus: When I have them, master.
Crassus: Do you eat snails?
Antoninus: No, master.
Crassus: Do you consider the eating of oysters to be moral and the eating of snails to be immoral?
Antoninus: No, master.
Crassus: Of course not. It is all a matter of taste, isn't it?
Antoninus: Yes, master.
Crassus: And taste is not the same as appetite, and therefore not a question of morals.
Antoninus: It could be argued so, master.
Crassus: My robe, Antoninus. My taste includes both snails and oysters.

A cena acaba, contudo, com o desaparecimento de Antoninus. Logo de seguida, descobrimos que o artista se juntou às hostes de Spartacus, por defender a sua causa e por renegar a arrogância de Crassus. A elipse deixa-nos, no entanto, sem perceber como se deu a fuga. Antoninus torna-se-á, depois, o braço direito do ex-gladiador. Spartacus admirá-lo-á genuinamente, como a um irmão. Ficará fascinado com os seus truques de magia, com a sua capacidade para entreter e divertir as gentes e com o seu talento para cantar poesias eruditas, que lembram a importância de regressar a casa.

Antoninus: Are you afraid to die, Spartacus?
Spartacus: No more than I was to be born.

Na segunda parte da obra, depois do entreacto, a acção ganha dimensões avassaladoras. Dá-se uma batalha impressionante, filmada e coreografada entre panorâmicas e movimentos de câmera notáveis e ambiciosos. Se até à data, e do ponto de vista essencialmente técnico, pouco se tinha notado da genialidade de Kubrick, ela salta perfeitamente à vista nesta assombrosa e mortal peleja. Os discursos que tanto Spartacus como Crassus proferem, alternadamente às multidões, são duma grandiloquência sideral. Grandes cenas, na preparação de um confronto visualmente arrebatador.

I'm not after glory, I'm after Spartacus! (...) this campaign is not alone to kill Spartacus. It is to kill the legend of Spartacus.
Crassus
O final é puramente trágico, ainda que lance um importantíssima conquista: um fio de esperança. A força de Roma dizima implacavelmente os exércitos de gladiadores e, aos sobreviventes, condena-os à crucificação. Antes disso, quando Crassus os obriga a denunciarem Spartacus, todos se levantam, um a um, proferindo I am Spartacus! Que momento incrível e arrepiante! Que demonstração de lealdade e de carácter! Varinia, que entretanto havia sido apanhada por Crassus, consegue a carta de alforria, por intermédio do senador Sempronius Gracchus (Charles Laughton, numa performance brilhante), que sempre odiou a prepotência de Crassus. Ao partir de Roma, com um filho nascido entre os braços, depara-se com Spartacus na cruz:

Please die, my love... die, die now my darling!

Um desfecho profundamente emocionante e nada convencional para a Hollywood dos anos 60.

Spartacus, também, nunca foi essencialmente uma produção de estúdio. Foi mais um projecto pessoal de Kirk Douglas, que desde o princípio condicionou a visão da obra (adaptada do romance de Howard Fast). Anthonny Mann, por exemplo, foi despedido na fase inicial do projecto, pelo simples facto de Douglas ambicionar um visionário para a cadeira de realizador. Foi aí que entrou Kubrick. Mas Kubrick nunca se sentiu muito à-vontade com o projecto, ainda que por meio dele tivesse atingido o estrelato. Na verdade, vemos e sentimos muito pouco de Kubrick neste Spartacus, o que é pena. Por aí o filme poderia ter sido, certamente, uma obra ainda mais grandiosa. Neste filme que chegou até nós, nem sempre a câmera ostenta inspiração, sobretudo nas primeiras cenas, onde a história custa a arrancar eficazmente. No todo, nem sempre o filme se mantém ao mesmo nível. Fosse ele dotado de um equilíbrio dramatúrgico apurado e exemplar e não hesitaria em atribuir-lhe as cinco estrelas.

Ainda assim, estamos perante um feito absolutamente memorável. Grande, grande filme.

16 comentários:

  1. Que análise...gostei muito de ler. As frases que apanhas são exemplo do melhor que o filme nos oferece. Pessoalmente estou contigo, não é obra-prima, é apesar de tudo um grande filme e um ensaio inspirador e algo inovador, à época.

    O que gostei mais...a fotografia (destacável), toda a direcção de arte e guarda-roupa, a banda sonora aqui e ali com momentos excepcionais, a realização eficaz e genial nos discursos e na batalha como referes, e o argumento assaz interessante e promissor.
    Não fosse algum desequilíbrio evidente na montagem e na narrativa, teria originado um épico dos grandes, de topo. Que a ver bem já é, dada a força que Kubrick imprime a qualquer obra sua.

    abraço

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  2. Impecável análise a um dos maiores triunfos do Kubrick. É um épico transcendente e, se bem que não é um dos melhores filmes de sempre, é um filme que se pode orgulhar de ser um dos clássicos mais queridos.

    É inspirado e é, de facto, monumental, como disseste. E concordo com o Jorge quanto aos pontos fortes do filme.

    Abraço,

    Jorge Rodrigues
    http://dialpforpopcorn.blogspot.com

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  3. Não é nenhum "triunfo", dificilmente poderá ser considerado um "clássico" e nem sequer é um "Kubrick" genuíno, como oportunamente o Roberto Simões teve o cuidado de referir.
    De qualquer modo é um bom filme, bem representativo do género que agora se encontra em corrida de fundo.
    3 estrelas em 5

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  4. JORGE: Obrigado ;) Estamos em sintonia, mas olha que quanto à banda sonora a acho muito barroca por vezes, excessivamente ornamentada. Já o John Williams, por vezes, também é assim e pessoalmente não me agrada muito. Os diálogos são sem dúvida impressionantes, assim como a cena da batalha, o 'I am Spartacus' ou o final. O diálogo das ostras acho magnífico!

    JORGE RODRIGUES: Obrigado ;) Não o acho transcendente, nem nada que se pareça. Não é claramente dos melhores filmes de sempre, mas é um bom épico apesar de tudo.

    RATO: Penso que poderemos apontá-lo como um clássico, ainda que não seja claramente o triunfo de Kubrick ou um todo extraordinário. Pelo menos nos dias que correm é um clássico, quando falamos em épicos é dos primeiros a ser mencionado e não será por acaso. Um bom filme, apesar de tudo.

    Cumps.
    Roberto Simões
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  5. Acho que não, Roberto, na minha perspectiva, um filme (ou qualquer outra obra de expressão) não pode ser considerado um "clássico" simplesmente por ser antigo. É condição normalmente necessária (e aqui o advérbio é usado para salvaguardar os chamados "clássicos instantâneos") mas não suficiente. Falar-se em "clássico" é aludir a um modelo exemplar que contenha em si mesmo padrões perfeitos e que ao longo dos anos se converte numa referência obrigatória.
    Exemplificando: "Gone With The Wind", "Ben-Hur", "2001: A Space Odyssey" são clássicos. "Spartacus" não. Por outras palavras: qualquer dos três primeiros são filmes obrigatórios para serem mostrados e estudados em qualquer Escola de Cinema. O último não, é perfeitamente dispensável.

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  6. RATO: Ah, sim, mas concordo completamente contigo! Um filme não pode ser considerado um clássico simplesmente por ser antigo. Claro que não. A idade nada tem a ver com isso. Estou perfeitamente de acordo contigo e aliás: pessoalmente, não o consideraria um clássico. Só que lá está - SPARTACUS tornou-se uma referência constante quando se fala de épicos. Será por algum motivo. Só me refiro a "clássico" porque é assim denominado pela maioria. Acredito que daqui a uns bons anos, quando mais épicos se fizerem e se apurarem os melhores para as gerações futuras, talvez SPARTACUS não conste das listas dos melhores 10 ou 20. Apesar de, como disse, ter algumas sequências verdadeiramente memoráveis e magistrais.

    Quanto à interrogação do Álvaro Martins, deixo-a talvez para ti, Rato.

    ÁLVARO MARTINS: Já agora, qual é a tua opinião sobre SPARTACUS?

    Cumps.
    Roberto Simões
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  7. E será que vale a pena responder?
    Ó Álvaro, mas essa pergunta faz-se?
    Ok, um dia destes vou falar com mais detalhe dessa obra magistral no blog do Rato.
    Mas, e no seguimento do que acima disse, e exageros à parte, em qualquer Escola de Cinema deveria haver uma única disciplina para analisar esse filme.
    A propósito e já agora, uma revelação pessoal: vi o filme na altura da estreia (1968) em Lourenço Marques, onde então vivia (sou natural de Moçambique, sim). Tinha na altura 15 anos e frequentava o 6º ano do Liceu. Pois, acreditem ou não, durante uma semana inteira o professor da cadeira de Filosofia (saudoso Heliodoro Frescata) fez de "2001" o único sumário de todas as aulas. Para grande regozijo de todos nós alunos, bem entendido.

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  8. Sim a banda sonora é ornamentada, e lembra John Williams, que pessoalmente gosto. Não é ainda assim dos compositores que mais admiro, mas detém um currículo invejável, disso não há dúvidas.

    Aqui no Spartacus a banda sonora não me incomodou, digamos, está de acordo com o filme, e acompanha-o em alguns momentos de forma enaltecedora.

    abraço

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  9. JORGE: Neste aspecto em concreto, a banda sonora, estamos em desacordo. Em algumas ocasiões faz-me confusão aos ouvidos, mas talvez seja a minha extrema sensibilidade ;)

    Cumps.
    Roberto Simões
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  10. A minha opinião sobre o Spartacus é similar à tua Roberto.

    O 2001 não o considero um clássico. Mas são opiniões.

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  11. ÁLVARO MARTINS: Estamos então de acordo. Quanto ao 2001, se por acaso não o considerares um clássico por considerares o filme subvalorizado, nunca estivemos então profundo desacordo.

    Cumps.
    Roberto Simões
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  12. No capítulo das interpretações por acaso não me caiu muito bem o Kirk Douglas. Não está mal, a em algumas cenas está mesmo muito bem, natural. Mas no seu conjunto acho que lhe falta mais nuance, mais carisma, não sei...qualquer coisa! O ar duro pesa muito, em demasia, embora também compreensível. Prefiro heróis com actuações extremistas, com mais nuances no acto de entrega à narrativa. Será um pouco do argumento, limitador.

    A título de curiosidade, por exemplo gostei mais da sua actuação em Paths of Glory.

    No resto do elenco destaco Peter Ustinov, fabuloso, uma mais-valia ao filme.

    abraço

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  13. JORGE: Ainda que considere que Kirk Douglas se entregou ao papel, também penso que faltou emoção na sua performance. Ele nunca abandona aquela pose de durão. Peter Ustinov, exacto, está fabuloso.

    Cumps.
    Roberto Simões
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  14. Não tem nada a ver com subvalorização ou sobrevalorização. O 2001 tem o devido mérito (é o melhor filme do Kubrick sem qualquer sombra de dúvidas), é aclamado unânimamente. Só acho que não deve nada ao classicismo percebes? Bem pelo contrário, foi filme que revolucionou a ficção científica (não confundir com efeitos especiais). Sei lá, é assim que o vejo.

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  15. ÁLVARO MARTINS: Mas não estamos a falar desse 'clássico', dessa acepção do termo, não estamos a falar de classicismo. Estamos a falar de 'clássico' no sentido de objecto que é considerado um modelo.

    Cumps.
    Roberto Simões
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