★★★★★
Título Original: Dung che sai dukRealização: Wong Kar Wai
Principais Actores: Brigitte Lin, Leslie Cheung, Maggie Cheung, Tony Leung Chiu Wai, Jacky Cheung, Tony Leung Ka Fai, Li Bai, Carina Lau, Charlie Yeung
Versão Redux
Crítica:
TEMPO E MEMÓRIA
A memória é a raiz dos problemas dos Homens.
Sem um passado, todos os dias seriam um novo começo.
De todas as minhas relações em cinema, aquela que estabeleço com Wong Kar Wai é, porventura, a mais exótica. E a mais difícil, também. À primeira visualização, gosto do que vejo. Gosto do que oiço. Vejo e oiço paixão, paixão poética. Sei que essa paixão está lá, mas não a sinto, todavia. E é esse o meu dilema. Aconteceu-me o mesmo com este As Cinzas do Tempo. Chegou até mim uma arte que é, apesar de visualmente arrebatadora, não só extremamente complexa na sua linguagem como aparentemente autista, que fala apenas para si e consigo mesma e à qual me é impossível aceder. Os planos raramente nos mostram a totalidade do seu objecto. Parecem querer esconder ou encobrir segredos... Kar Wai filma com demasiada proximidade as suas personagens, parece que não as deixa respirar. E a nós próprios, espectadores, não nos é por isso possível uma perfeita concepção e compreensão do espaço em que se desenrola a cena. Depois, o argumento das suas histórias tem diferentes narrações, nunca cai em explicações e nunca assume uma forma linear, narrativamente. A sua estrutura temporal assume-se, ao invés disso, entre flashbacks e flashbacks, por meio de um trabalho de montagem escrupuloso que imprime ritmos muito próprios e variados ao filme.
Atingir a plenitude de uma obra de Kar Wai é, contudo, uma questão de vontade e de resistência. Como em todos os grandes poemas, é na segunda, terceira ou posterior leitura que começamos a descodificar-lhe a forma, a desbravar novos horizontes e a chegar ao seu íntimo. Um sedutor véu encobre o mistério. Se simplesmente nos deixarmos levar... um filme de Kar Wai poderá revelar-se uma experiência única e inesquecível de viscerais sensações e emoções. Porque Kar Wai é um poeta e é um mago. Cada uma das suas obras é um processo de encantamento. E como em todas as magias, é preciso acreditar para acontecer.
Se fecharmos os olhos e apenas ouvirmos a obra (dominando o idioma corrente, evidentemente), será possível compreendê-la. Não é necessário vê-la. Kar wai concebeu-a dessa forma. A música e os sons são uma balada para os nossos ouvidos e por si sós invadem-nos o inconsciente. Contudo, é na imagem que reside outro dos maiores fascínios do filme, indispensável para o vivermos em toda a sua intensidade, complexidade e totalidade. A fotografia de Christopher Doyle é assombrosa. Apesar das dificuldades técnicas que não possibilitaram grande nitidez na imagem do deserto (devido à escassa iluminação, sobretudo), a imagem granulada acabou por tornar-se uma opção estética e é ela a responsável por grande parte do estilo gráfico do filme. A manipulação cromática também foi uma opção recorrente, o que enche a tela de tons saturados.
Ou-yang Feng e Huang Yao-Shi são já duas personagens míticas do imaginário chinês, graças à trilogia de Louis Cha. O final da história de ambas as personagens é sobejamente conhecido. O que Kar Wai faz com As Cinzas do Tempo é dar dimensão e profundidade à tragédia pessoal e interior dessas personagens, numa incursão imaginária ao seu passado, que lhes justifique o desfecho. A partir do almanaque chinês e das mudanças das estações, o poeta transcende o género wuxia e explora vários caminhos possíveis para cada uma das personagens, todas elas a sofrer com os remorsos de um passado que não podem mudar. Como se poderão redimir? Quanto mais se tenta esquecer, mais nítida se torna a memória. Por isso, a única salvação é a lembrança, não o esquecimento. O tempo é um caminho de apaziguamento e só a memória nos permitirá ultrapassar o sofrimento, fazendo-nos crescer e encarar o futuro.
É extremamente interessante perceber como Wong Kar Wai parte para a concepção de um filme sem argumento. As Cinzas do Tempo nasce, pois, de uma visão inspirada e apaixonada que se constrói à medida que se sente. Não há riscos. Há apenas convicção e puro génio poético. Não conheço mais ninguém que faça cinema desta forma. É por essa razão que o cinema de Kar Wai é não só raro como único. E precioso.
TEMPO E MEMÓRIA
A memória é a raiz dos problemas dos Homens.
Sem um passado, todos os dias seriam um novo começo.
De todas as minhas relações em cinema, aquela que estabeleço com Wong Kar Wai é, porventura, a mais exótica. E a mais difícil, também. À primeira visualização, gosto do que vejo. Gosto do que oiço. Vejo e oiço paixão, paixão poética. Sei que essa paixão está lá, mas não a sinto, todavia. E é esse o meu dilema. Aconteceu-me o mesmo com este As Cinzas do Tempo. Chegou até mim uma arte que é, apesar de visualmente arrebatadora, não só extremamente complexa na sua linguagem como aparentemente autista, que fala apenas para si e consigo mesma e à qual me é impossível aceder. Os planos raramente nos mostram a totalidade do seu objecto. Parecem querer esconder ou encobrir segredos... Kar Wai filma com demasiada proximidade as suas personagens, parece que não as deixa respirar. E a nós próprios, espectadores, não nos é por isso possível uma perfeita concepção e compreensão do espaço em que se desenrola a cena. Depois, o argumento das suas histórias tem diferentes narrações, nunca cai em explicações e nunca assume uma forma linear, narrativamente. A sua estrutura temporal assume-se, ao invés disso, entre flashbacks e flashbacks, por meio de um trabalho de montagem escrupuloso que imprime ritmos muito próprios e variados ao filme.
Atingir a plenitude de uma obra de Kar Wai é, contudo, uma questão de vontade e de resistência. Como em todos os grandes poemas, é na segunda, terceira ou posterior leitura que começamos a descodificar-lhe a forma, a desbravar novos horizontes e a chegar ao seu íntimo. Um sedutor véu encobre o mistério. Se simplesmente nos deixarmos levar... um filme de Kar Wai poderá revelar-se uma experiência única e inesquecível de viscerais sensações e emoções. Porque Kar Wai é um poeta e é um mago. Cada uma das suas obras é um processo de encantamento. E como em todas as magias, é preciso acreditar para acontecer.
Se fecharmos os olhos e apenas ouvirmos a obra (dominando o idioma corrente, evidentemente), será possível compreendê-la. Não é necessário vê-la. Kar wai concebeu-a dessa forma. A música e os sons são uma balada para os nossos ouvidos e por si sós invadem-nos o inconsciente. Contudo, é na imagem que reside outro dos maiores fascínios do filme, indispensável para o vivermos em toda a sua intensidade, complexidade e totalidade. A fotografia de Christopher Doyle é assombrosa. Apesar das dificuldades técnicas que não possibilitaram grande nitidez na imagem do deserto (devido à escassa iluminação, sobretudo), a imagem granulada acabou por tornar-se uma opção estética e é ela a responsável por grande parte do estilo gráfico do filme. A manipulação cromática também foi uma opção recorrente, o que enche a tela de tons saturados.
Ou-yang Feng e Huang Yao-Shi são já duas personagens míticas do imaginário chinês, graças à trilogia de Louis Cha. O final da história de ambas as personagens é sobejamente conhecido. O que Kar Wai faz com As Cinzas do Tempo é dar dimensão e profundidade à tragédia pessoal e interior dessas personagens, numa incursão imaginária ao seu passado, que lhes justifique o desfecho. A partir do almanaque chinês e das mudanças das estações, o poeta transcende o género wuxia e explora vários caminhos possíveis para cada uma das personagens, todas elas a sofrer com os remorsos de um passado que não podem mudar. Como se poderão redimir? Quanto mais se tenta esquecer, mais nítida se torna a memória. Por isso, a única salvação é a lembrança, não o esquecimento. O tempo é um caminho de apaziguamento e só a memória nos permitirá ultrapassar o sofrimento, fazendo-nos crescer e encarar o futuro.
É extremamente interessante perceber como Wong Kar Wai parte para a concepção de um filme sem argumento. As Cinzas do Tempo nasce, pois, de uma visão inspirada e apaixonada que se constrói à medida que se sente. Não há riscos. Há apenas convicção e puro génio poético. Não conheço mais ninguém que faça cinema desta forma. É por essa razão que o cinema de Kar Wai é não só raro como único. E precioso.
Fica a óptima sugestão! (que tal dedicarmos um especial a este realizador? difícil, mas desafiador, seria, sem dúvida...!)
ResponderEliminarFLÁVIO GONÇALVES: Como sabes, o nome de Kar Wai já foi falado imensas vezes. Mas é sem dúvida o realizador mais difícil com o qual já me deparei. Um desafio? Seria, sem dúvida. Este AS CINZAS DO TEMPO é muito complexo, mas quando te renderes ao encantamento, ficas aprisionado à magia.
ResponderEliminarCumps.
Roberto Simões
CINEROAD - A Estrada do Cinema
Gostei imenso do texto, parabéns. Concordamos quando dizes que Kar Wai é um cineasta à parte... quase inacessível. Mas bem, tenho de ver mais dele!
ResponderEliminarSem duvida, sua contextualização textual e embasamento critico me deixou curioso...preciso conferir AGORA ESTE FILME!
ResponderEliminarAbraço
FLÁVIO GONÇALVES: Obrigado ;) É um poeta sempre recomendável!
ResponderEliminarCRISTIANO CONTREIRAS: Obrigado pelo elogio ;) Mas olhe que o filme é muito difícil. Eu achei. É preciso rever e rever e o nosso entendimento dele nunca estará terminado.
Cumps.
Roberto Simões
CINEROAD - A Estrada do Cinema
Já gosto muito mais deste que 2046!
ResponderEliminarCinema asiático é, muitas das vezes, sinónimo de artes marciais, este filme envolve essas artes marciais mas também possui uma história e, embora mais ausente que em 2046, Kar Wai nota-se na fita!
A fotografia é belíssima!
Abraço
Cinema as my World
NEKAS: Pois... compreendo-te perfeitamente. Ainda que, na minha opinião, bastante complexo (não que isso seja um defeito, neste caso até muito pelo contrário) gosto também muito mais deste AS CINZAS DO TEMPO do que de 2046. Está muito bem conseguido!
ResponderEliminarCumps.
Roberto Simões
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