quarta-feira, 24 de novembro de 2010

ERA UMA VEZ NA AMÉRICA (1984)

PONTUAÇÃO: EXCELENTE
★★★★★
Título Original: Once Upon a Time in America
Realização
: Sergio Leone

Principais Actores: Robert De Niro, James Woods, Elizabeth McGovern, Treat Williams, Tuesday Weld, Joe Pesci, Danny Aiello, William Forsythe, Jennifer Connelly

Crítica:

YESTERDAY
OU UMA ILUSÃO DE ÓPIO

America was born in the streets. A tagline é do filme Gangs de Nova Iorque, de Martin Scorsese, mas assenta perfeitamente nesta obra: Era Uma Vez na América conta uma das mais memoráveis histórias de crime, paixão e amizade que o cinema já conheceu. Parafraseando o trailer, trata-se da história de um grupo de amigos que, enquanto rapazes, fez o pacto de partilhar as suas riquezas, os seus amores e as suas vidas... os mesmos rapazes que, feitos homens, partilharam o sonho de ascender da pobreza ao poder... os mesmos homens que, protagonizando uma geração que se traiu a si mesma, forjou um império baseado na violência e na ganância, desfazendo o seu sonho num mistério que se recusa a morrer. Eis a sinédoque da América, proposta por Leone e por um argumento de múltiplas assinaturas. Uma América que não só nasceu como cresceu nas ruas e por meio delas definiu o seu rumo. I like the stink of the streets. It makes me feel good. And I like the smell of it, it opens up my lungs. And it gives me a hard-on.

Era Uma Vez na América é como aquelas composições magistrais, gradiloquentes e imersas em sentimento, capazes de resgatar as memórias da infância e do primeiro amor e habilitadas a ressuscitar, com uma força descomunal e inesperada, a nostalgia daqueles tempos em que a inocência deu lugar - para sempre - a um caminho sem retorno. Robert DeNiro tem aqui uma das suas melhores interpretações. A partir do momento em que a sua personagem se aventura no ópio, nos bastidores de um teatro chinês, e o telefone toca, toca e toca incessantemente, a narrativa entra numa viagem ao passado e assume uma estrutura de contínuo s flashbacks e flashfowards. As transições entre os vários tempos diegéticos são conseguidas na aura de uma genialidade tremenda.

As cenas passadas na infância, sobretudo, são de uma beleza indescritível, nomeadamente aquela em que o pequeno Noodles espreita a jovem bailarina pelo buraco da WC do restaurante, aqueloutra em que um irresistível bolo serve como moeda de troca para favores sexuais, a cena do passeio com a imponente ponte em segundo plano ou a sequência do tiroteio entre gangues rivais, que provoca a inadvertida morte de Dominic e desencadeia o tal ponto de viragem na maturidade dos ambiciosos e rebeldes jovens. Há uma outra cena que invoca imediatamente uma das obras-primas de Kubrick, Laranja Mecânica, tanto pelo registo controverso e provocador que assume como pela reutilização paradoxal da composição musical de R ossini (La Gazza Ladra): o episódio da troca dos bebés. Uma das minhas favoritas, contudo, é aquela sequência do romântico e majestoso jantar que Noodles prepara a Deborah, seguida da brutal violação no automóvel. O contraste é tão acentuado e radical, a ambiguidade humana ali representada é tão intensa que a cena há-de perdurar-me na memória até ao dia em que eu deixar de ver filmes.

Dotado de grande arrojo técnico (fotografia de Tonino Delli Colli, guarda-roupa de Carla Pescucci, direcção artística de Carlo Simi), de um brilhante trabalho de montagem (Nino Baragli e Zach Staenberg) e de uma banda sonora verdadeiramente extraordinária (Ennio Morricone), Era Uma Vez na América dá continuação a um percurso cinematográfico inconfundível: Sergio Leone serve-se uma vez mais dos seus magníficos close-ups, travellings e outros movimentos, cenas longas e repletas de silêncios reveladores, essenciais para a construção do suspense e para a estilização singular da sua forma narrativa. O argumento é de uma escrita fluente e arriscada, quando muito não seja pela sua longa duração. Se há defeito que posso apontar, é o arrastamento do último acto. No entanto, a dramaturgia é, fora esse ou outro desiquilíbrio, de uma qualidade evidente e assinalável - não são esses inconvenientes suficientes para atentar contra a excelência da obra que, em última instância, se revela apaixonante.

O sorriso irónico com que Noodles encerra a obra, todavia, vem abrir uma ambiguidade de todo inesperada e, apesar de tudo, absolutamente plausível. Porque há-de Leone, afinal, iniciar e terminar a sua fita nos anos 30 e não nos anos 60, quando conhecemos a personagem de De Niro na sua idade mais tardia? Não é o filme senão um compêndio de memórias, narrativamente analépticas? Se voltarmos atrás e recordarmos como começa toda a acção do filme, talvez venhamos a encontrar respostas. Lembraremos por certo aquele telefone que tocava, tocava e tocava repetidamente. Pois bem, não terão sido estas incursões temporais não viagens pelas recordações do passado mas sim mera alucinação despertada pela droga? Lembremos a primeira imagem do flashback: uma luz oscilante, que nem um pêndulo de hipnose, que aos poucos e poucos é focada e se revela um candeeiro. Poderemos, afinal, estar perante um filme tão surreal quanto isto? A minha resposta é: why not? A leitura, a interpretação, faz todo o sentido e ficará para sempre sugerida. Sergio Leone sempre foi um mestre na arte de brincar com o cinema. Quero acreditar que, apesar de assinar aqui a sua obra mais sentimental e nostálgica, nos brindou por fim com a ironia da ficção que nega a sua ficção, uma brincadeira esteticamente ambiciosa e, por si só, de uma genialidade que jamais apagará a sua chama.

Suddenly,
I'm not half the man I used to be,
There's a shadow hanging over me,
Oh, yesterday came suddenly.

13 comentários:

  1. É o meu filme preferido do Leone e um dos meus of all time.

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  2. Do Sergio Leone só vi o My Name is Nobody, um dos meus filmes favoritos. Deste só conheço a banda sonora. Dois grandes motivos para ver. Aguardo a crítica!

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  3. Excelente crítica! Estou doido por vê-lo, é um preferido de um grande amigo meu. Mas é muito longo... daí a hesitação :P

    Abraço

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  4. JOÃO BIZARRO: Rebenta mesmo! Indiscutivelmente, Sergio Leone é dos meus realizadores favoritos.

    ÁLVARO MARTINS: Eu prefiro o ACONTECEU NO OESTE ;)

    JOÃO GONÇALVES: Também gosto mais de TOURO ENRAIVECIDO. Se o filme de Scorsese é o melhor da década, isso já não te poderei dizer ;D

    ANÓNIMO ou CLÁUDIA GAMEIRO: Aí está a crítica! Esse filme ainda não o vi. Espera por mim, certamente.

    FLÁVIO GONÇALVES: Obrigadíssimo! Sim, é muito longo. A primeira vez que o vi foi ao longo de vários dias, não tive como vê-lo de uma só vez. Mas vale mesmo a pena vê-lo!

    Cumps.
    Roberto Simões
    » CINEROAD - A Estrada do Cinema «

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  5. Bem, já me conheces :) Não sei porque o nome não ficou. Boa crítica, confesso que fiquei com vontade de ver assim que li a referência aos Gangs de Nova Iorque

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  6. CLÁUDIA GAMEIRO: Ainda bem que gostaste! Pois a frase contextualiza-se bem ali, mas olha que os filmes são bem diferentes! Ambos altamente recomendáveis.

    P.S. - Pois, identifiquei-te pelo ID. Quando fizeres comentários, regista-te na conta do Google, é aconselhável, para autenticar a assinatura.

    Cumps.
    Roberto Simões
    » CINEROAD - A Estrada do Cinema «

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  7. Grandioso filme de Leone, com uma banda-sonora e um elenco incríveis. Obrigatório!

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  8. THE MOVIE MAN: Subscrevo-te inteiramente! Obrigatório!

    Cumps.
    Roberto Simões
    » CINEROAD - A Estrada do Cinema «

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  9. Este é um filme genial! A primeira vez que o vi até fiquei baralhado com todos aqueles flashbacks! O telefone a tocar insistentemente e a cena de De Niro a mexer a chávena de café são momentos tipicamente de Leone! Por causa deste filme Leone recusou fazer "O Padrinho". Quem gosta de cinema como deve ser tem de gostar deste épico!

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  10. EMANUEL NETO: Estou totalmente de acordo. E a cena da bailarina? Dos bolos? Dos tiroteios, na cidade e no campo? O final? Um filme todo ele magistral, com elevadíssimos rasgos de génio.

    Cumps.
    Roberto Simões
    » CINEROAD - A Estrada do Cinema «

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  11. Grande filme. Arrebatador, verdadeiro, sem disfarce, daquelas histórias bem contadas. Gostei em especial da primeira parte, da infância. Tem cenas memoráveis tal como já foi dito por aqui.

    Nota-se que foi um projecto pensado ao detalhe, e por isso que demorou imenso tempo a ser lançado. Tudo, desde a fotografia à banda sonora é de uma extrema beleza. Inegável.
    Ainda assim acho que prefiro do género gangsters o The Godfather. Não sei, talvez por este ser muito longo e principalmente parado, reflexivo e menos dinâmico. É preciso estado de espírito para ver esta obra, na minha opinião.

    Já o vi há uns dias, e ainda me soa a música ou o mistério de toda a história. Leone distancia-se do Western, e preferindo contudo ainda os seus filmes do Oeste, este torna-se num filme a se ver obrigatoriamente pelo menos uma vez. Recomenda-se sem qualquer margem para dúvidas. Particular e único.

    abraço

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  12. JORGE: Eu cá prefiro estes gangsters aos de Coppola. Ainda assim, gosto bastante d'O PADRINHO, sobretudo a PARTE 2.

    Cumps.
    Roberto Simões
    CINEROAD – A Estrada do Cinema

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