terça-feira, 8 de junho de 2010

RASHÔMON - ÀS PORTAS DO INFERNO (1950)

PONTUAÇÃO: EXCELENTE
★★★★★
Título Original: Rashômon
Realização
: Akira Kurosawa

Principais Actores: Toshirô Mifune, Machiko Kyô, Masayuki Mori, Takashi Shimura, Minoru Chiaki, Kichijiro Ueda, Fumiko Honma, Daisuke Katô

Crítica:

QUEM CONTA UM CONTO...

Há obras puramente sublimes e Rashômon - Às Portas do Inferno é um desses feitos memoráveis: uma obra-prima de uma genialidade ímpar, esculpida como se fosse um diamante. Akira Kurosawa assina aqui uma parábola eloquentemente enaltecida por interpretações viscerais, por uma narrativa complexa e poderosíssima, e pela sua visão magistral de fazer cinema.

No início, chuva. Uma portaria em ruínas. Dois homens atormentados: um lenhador e um bonzo, ambos réus de um processo em tribunal relacionado com o misterioso assassinato de um homem. Nada... não percebo nada... nada de nada... Não percebo nada de nada. De nada mesmo - desabafa em voz alta o lenhador. Eis que chega um plebeu desconhecido e que aborda as intrigadas e introspectivas criaturas. O sacerdote adianta, a medo: mataram um homem. (...) As guerras... os sismos... os tufões... as fomes... as epidemias... cada ano traz as suas catástrofes. Além disso, todas as noites os bandidos cometem vários crimes. Com os meus próprios olhos vi homens, não sei quantos, serem abatidos como animais. No entanto, nunca vi nada tão terrível como isto! Sim... nada tão terrível como isto. A minha fé na humanidade ficou abalada. É mais terrível que os bandidos, que as epidemias, que a fome, o fogo ou a guerra. Note-se a retórica densa, lenta e hesitante, num crescendo de suspense notável. É então que o padre e o lenhador se prontificam a contar ao forasteiro o que aconteceu. Inicia-se, desta forma, uma série de flashbacks e de flashbacks dentro de flashbacks; uma construção narrativa assaz ambiciosa, intrincada e ao mesmo tempo tremendamente estimulante.

Primeiro, o lenhador assume a narração: atravessava o bosque - a fabulosa banda sonora faz aumentar a expectativa - quando se deparou com os primeiros indícios do crime. O chapéu de mulher preso a um galho. Um boné de samurai no chão. Um saco em brocado em cima de umas folhas mortas. Uma corda cortada ao pé do cadáver. Foi esta, também, a sequência dos acontecimentos revelados na audiência judicial. Depois, contou do depoimento do bonzo, falou do homem que apanhou o assassino Tajomaru e este, por sua vez, falou das circunstâncias em que o prendeu. Falou do assassino que, por sua vez, assumiu o crime, se pronunciou a propósito da mulher do falecido (pela qual se perdera imediatamente de amores) e que acabou por contar a sua versão da história.

Discordando da figura da mulher traçada por Tajomaru e que o lenhador deu a conhecer até aqui, o bonzo vem contrapô-lo, lembrando que a mesma se deslocou mais tarde ao tribunal para contar a sua versão. Versão, essa, de flagrante distinção. Ao tribunal foi convocada ainda uma médium, para dar parecer da versão do morto. Outra versão completamente diferente.

No meio de tanta versão contraditória, ninguém se entende a respeito do que terá realmente acontecido. Nós, inclusivé, pois claro. A sucessão de versões, cada uma mais verosímil do que a outra, vem mergulhar-nos num mar de dúvidas... em vez de nos encaminhar para o apuramento da verdade. Já não se sabe quem fez o quê, quem matou afinal aquele homem que passeava pela mata, acompanhado da esposa. A dificuldade em resolver o caso é extrema. No meio de tanta versão, contudo, jamais nos perdemos. A narrativa tem um encadeamento tão bem concebido que rapidamente entramos na lógica da divisão diegética e dos múltiplos pontos de vista. Nós somos colocados no local dos juízes, ocupamos a posição da câmera para a qual os intervenientes discursam e chegará a altura em que nos aperceberemos da forma como cada um subverte a história a seu favor e/ou a seu gosto. Afinal, quem conta um conto... acrescenta um ponto e a natureza do facto, já por si irreversível, ficcionaliza-se por meio da palavra. Não é essa senão a origem das histórias. Afinal, a história é, ela própria, essa farsa tão humana. É mimesis, diria Platão. Uma mentira, que existe desde que o Homem existe.

Kurosawa filma com uma inspiração extraordinária, movendo a câmera tão subtilmente, com tamanha perfeição... A banda sonora de Fumio Hayasaka desempenha um papel fundamental na criação da atmosfera e na condução do suspense. Os enquadramentos da fotografia de Kazuo Miyagawa são verdadeiramente excepcionais. A montagem, a cargo do realizador, é feita com a maior fluidez. E o filme em si é, da abertura ao desfecho, absolutamente assombroso e impressionante. Toshirô Mifune, Machiko Kyô, Masayuki Mori, Takashi Shimura, Minoru Chiaki, Kichijiro Ueda, Fumiko Honma... que performances incríveis, que elenco excepcional.

A sua fraqueza [dos Homens] força-os a mentir. (...) Se não podemos acreditar em ninguém, este mundo é um inferno - conclui o bonzo, temendo pelo futuro da humanidade. E, por meio dele, conclui Kurosawa a moral da história, na forma de uma mordaz crítica à sociedade. Eis, pois, a metáfora do estado do mundo: a mentira é intemporal e é tão intrínseca ao Homem como a necessidade de contar histórias, como a necessidade de comer, beber ou respirar. A mentira corrói a moralidade, faz-nos cair na desconfiança e no egoísmo. Se não queremos viver como cães, hoje em dia, só podemos ser egoístas - remata o plebeu que, tal como nós, ouviu aquela insólita história nas paragens chuvosas de Rashômon.

Quando o choro de um bebé abandonado irrompe pela precipitação, finalmente, cada uma das três personagens é posta à prova. O plebeu rouba os pertences da criança e sai de cena. Terá o sacerdote motivos para perder a fé no Homem? Estaremos condenados à perdição? Eis, na derradeira hora, dois homens com o futuro nos braços, conscientes da sua humanidade. Uma portaria em ruínas. A chuva pára.

Por tudo isto e tanto mais, Rashômon - Às Portas do Inferno, de Akira Kurosawa, constitui um filme essencial e obrigatório. Um dos expoentes máximos da Sétima Arte e, com certeza, um dos melhores filmes de sempre.

18 comentários:

  1. O mais incrível no meio disto tudo, é que eu vi o filme todo menos o fim ;-)Sério, que frustração. Uma história destas e uma pessoa vai-se embora sem saber a solução. É o único filme que conheço de Kurosawa. Tenho a dizer que foi uma surpresa.

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  2. NEKAS: É muito bom, vais gostar com certeza.

    NEUROTICON: Sem dúvida! Fiquei assombrado... RASHÔMON tem já lugar entre os meus filmes preferidos.

    CLÁUDIA GAMEIRO: ;D Como é que isso aconteceu? ;D Assim sendo, compreendo a frustração. Adquire o DVD, estão a vendê-lo a bom preço e vale muito a pena!

    Cumps.
    Roberto Simões
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  3. Adorei o texto (cmo o do Ran), agora só me falta ver algo dele. Este mês já posso esquecer, quem sabe para o próximo ;)

    Abraço!!

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  4. FLÁVIO GONÇALVES: Obrigado ;) Pois, este mês estás muito bem entregue ao Tarkovsky. Tenho a certeza que correrei ao realizador russo com o mesmo sentimento que correrás para a descoberta de Akira Kurosawa.

    Cumps.
    Roberto Simões
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  5. Tenho-o para mim como o melhor do Kurosawa (isto tendo em consideração os que vi e certo é que ainda me falta aquela que muitos aclamam como sendo a sua obra maior: Schichinin no Samurai).

    Além de ser detentor de um argumento extraordinário conta com a habitual sabedoria asiática, sempre aprazível para reflectir. E claro, mais uma grande interpretação de Mifune.

    Abraço

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  6. FILIPE COUTINHO: Estamos, então, em perfeita sintonia. Também me falta ver OS SETE SAMURAIS, por tantos aclamado como o melhor filme do realizador, é este o meu preferido de Kurosawa.

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    Roberto Simões
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  7. O meu primeiro Kurosawa...e que começo.
    Vou dividir o meu comentário em dois, a ver se me entendes no final:

    Adorei o filme do princípio ao fim, sempre com a mente a fervilhar e a tentar perceber e a solucionar o mistério. Senti-me mesmo como mais uma personagem do filme (facto bem conseguido pelo realizador com a câmara), e foi muito agradável essa sensação de questionamento constante enquanto ser humano. Acho nesse ponto brilhante a mensagem e assaz contemporânea.
    Depois a fotografia, as interpretações, o argumento e a sua estrutura, a montagem...uma série de factores que fazem desta película única. E que me enriqueceu imenso (já percebo o efeito Rashomon :P).

    Por outro lado, e à medida que a narrativa se findava sentia-me algo insatisfeito com a falta de emotividade, porventura será questões de época e de limitação ao cinema americano. Há emoção de facto, mas não aquela que esperava a quando do seu desenvolvimento. Acho que ultrapassarei isto rapidamente e numa próxima visualização, já sem a expectativa.

    Grande filme. Ainda me está na cabeça e vi-o ontem.

    abraço

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  8. JORGE: Se há coisa distinta entre orientais e ocidentais é a forma da representação dos sentimentos e a sua expressão artística. Kurosawa fá-lo de forma muito teatral, por vezes. Quando assistires, por exemplo, a RAN - OS SENHORES DA GUERRA, vais entender melhor esta ideia que te estou a tentar transmitir, onde há uma confluência entre a técnica kabuki e a tradição shakespeariana.
    Não sei se conheces HERÓI, de Zhang Yimou. Penso que encontrarás nele um dos filmes mais belos da tua vida, já com mais "emotividade", ainda que a seu jeito.

    Cumps.
    Roberto Simões
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  9. Por acaso conheço, mas ainda não vi.
    Fica então como referência. Não quero é criar grandes expectativas, verei numa altura indicada. E claro obrigado pela sugestão.

    Já agora grande sugestão da semana :)

    abraço

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  10. JORGE: Referes-te a A IRMANDADE DO ANEL. Sugestão de peso, de facto ;) Pois não é para criares expectativas demasiadas ou expectativas sequer. Foi só por recomendação. Nas próximas descobertas de Kurosawa, dá notícias. Quero muito ver OS SETE SAMURAIS, mas não há o DVD.

    Cumps.
    Roberto Simões
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  11. Sim claro referia-me...sempre que alguém recomenda Senhor dos Anéis é de salientar e repisar! :)

    Quanto às próximas descobertas de Kurosawa estarão para breve OS SETE SAMURAIS, YOJIMBO e RAN. Tenho-te a dizer que alguns são dvds emprestados e outros fruto da internet. Enfim é sempre uma solução como sabes. Senão sempre tens este meio também para tentar encomendar via Amazon ou outros semelhantes.

    abraço

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  12. Só para realçar mais uma vez a enorme prestação e talento de Toshirô Mifune. Impressionante. Tão versátil e cativante que chega a ser imprevisível.

    Já vi Seven Samurai, e a prestação dele é de novo muito boa. Talvez até prefiro essa a esta em Rashomon.
    O filme, esse é de facto também muito bom, colossal, epico e sou capaz de elevar acima deste. Não muito. Quando tiveres oportunidade vê.

    abraço

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  13. JORGE: Pois, só ainda não vi OS SETE SAMURAIS porque ainda não há o DVD à venda. Este nosso mercado tem com cada falha. Depois admiram-se do tráfico ilegal via web. Enfim. Vou vê-lo, mas não sei para quando. E como saberás, filmes não me faltarão para assistir entretanto.

    Quanto ao desempenho de Toshirô Mifune é, sim, brilhante. Um pouco como todo elenco. Todo ele excepcional.

    Cumps.
    Roberto Simões
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  14. Por estas coisas que acontece a quem anda distraído, rs..., entrei em uma videolocadora, nos idos de 1990, e pedi "Os sete samurais". A balconista mostrou-me Rashomon, de que não tinha notícias. Levei-o como quem pede uma pizza de gorgonzola e só havia de mussarela. Não houve pedido de devolução do preço, no entanto, rs... Rashomon não exige que eu teça maiores comentários, é tudo isto que dizem dele.

    Gostei imenso da cena real de luta, os dois adversários a perder o fôlego, sem heroismos, somente o medo da morte.

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  15. ENALDO: Não sei o que será a gorgonzola, mas no que se refere a RASHOMON entendemo-nos numa clara linguagem universal ;)

    Roberto Simões
    CINEROAD

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  16. Gorgonzola é o nome italiano do queijo rochefort:) Se vier ao Brasil pode pedir que é uma delícia!

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