sexta-feira, 24 de março de 2017

MAD MAX - ESTRADA DA FÚRIA (2015)

PONTUAÇÃO: EXCELENTE
★★★★★ 
Título Original: Mad Max - Fury Road
Realização: George Miller
Principais Actores: Tom Hardy, Charlize Theron, Nicholas Hoult, Hugh Keays-Byrne, Zoe Kravitz, Rosie Huntington-Whiteley, Courtney Eaton, Riley Keough, Abbey Lee, Nathan Jones, Josh Helman, John Howard, Richard Carter, Iota, Angus Sampson, Megan Gale, Melissa Jaffer, Melita Jurisic, Gillian Jones, Jennifer Hagan

Crítica:

APOCALIPSE NO DESERTO

 Oh, what a day... what a lovely day!

Se vai assistir a Mad Max - Estrada da Fúria, sente-se confortavelmente e respire fundo. Se possível, beba um copo de água; esta não tardará a escassear. Vai ser o raio de uma viagem.

O sol, abrasador, doura o deserto escaldante. Rufam os tambores, anunciando o ritmo do que está por vir. Grita, em chamas, a guitarra de um fantasma vermelho, completamente louco, do alto de um electrizante camião, artilhado com poderosas e ensurdecedoras colunas de som. Uma caravana de sucata prepara-se para bater quilómetros de estrada. Os depósitos estão cheios, os motores fervilham, de tão quentes. Pressionada a ignição e pedais a fundo, there's no going back: explode a testosterona e a adrenalina numa das mais alucinantes e impressionantes aventuras cinematográficas de que há memória. Uma perseguição infernal e impiedosa, com acção non-stop, verdadeiramente de cortar a respiração, engenhosamente concebida pela encenação e pelas mentes criativas da equipa, onde, a todo o instante, brilham arriscadas coreografias de duplos pelos ares, chocam viaturas e roçam carroçarias que faíscam em ira e rebentam em fogo. A câmera leva-nos, sem medo ou hesitação, para o meio da acção - sustemos a respiração e não conseguimos desviar o olhar da tela, não vá voar um metálico e fatal volante, disparado à nossa cara. Chovem balas, lanças e arpões, portas e o que mais estiver à mão, numa desenfreada luta pela sobrevivência; corpo a corpo, sempre que necessário. Esmagado o acelerador, velocidade furiosa, máxima propulsão. Uma amálgama de ferro-velho modificado, com rodas de todos os tamanhos, rasga a paisagem de cólera e suor: das planícies de areia silenciosa aos desfiladeiros de motoqueiros saltitões, que ansiosamente esperam pela máquina de guerra com dez mil litros de guzolina.

George Miller desafia, decididamente, os limites da acção e o nosso fôlego. As sequências, ultra-violentas, acontecem rapidamente, impetuosamente, mas são-nos inteiramente perceptíveis. Os efeitos digitais, sofisticadíssimos, estão lá mas mal se notam, ao serviço da beleza, da narrativa e da visão pretendida, profundamente estilizada. É ver para crer. Mad Max - Estrada da Fúria é uma possante lição de cinema, para todos aqueles que tentam, nesta era de blockbusters ocos e simplistas, ser inovadores na imensa confusão visual que copiam, que tanto tentam disfarçar e a que chamam acção. Este Mad Max não é senão Miller, completamente revitalizado, de regresso ao universo e à trilogia que criou nos saudosos anos oitenta (Mel Gibson era o Max de então), altura em que desbravou terreno nos meandros da ficção pós-apocalíptica. Mas este Mad Max é também Miller, genialmente inspirado, ao volante da História do género acção. Haverá sempre um antes e um depois deste filme. Deixará mossa; perdão, deixará marca. E essa influência já se nota*.

Se pensávamos que Mad Max 2 - O Guerreiro da Estrada (1981) havia superado o primeiro tomo, cá entre nós conhecido com o subtítulo As Motos da Morte, o que dizer agora deste quarto pedaço? Mas que pedaço! Mad Max - Estrada da Fúria poderá funcionar, é certo, como um capítulo à parte. Miller teve essa inteligência, considerando as novas gerações que, por este ou aquele motivo, possam não conhecer ainda os capítulos anteriores. Deu-lhe, inclusive, um novo protagonista - o brilhante embora circunspecto Tom Hardy. No entanto, é interessante regressar à trilogia original e perspectivar a evolução da distopia e a transformação da paisagem australiana, ao longo do tempo. Na Estrada da Fúria, o horizonte é árido e despovoado. Outrora, lutara-se pela gasolina, o combustível dos veículos, carros ou motas - os cavalos de guerra. Agora, batalha-se pela água, o combustível essencial à vida humana. O último reduto da humanidade habita a Cidadela e vive na miséria. O tirano, assustador e corpulento embora cadavérico Immortan Joe (Hugh Keays-Byrne) e as elites de Valhalla controlam a água e, por isso, controlam a humanidade. Sempre que abrem, com desdém, do alto dos penhascos e da sua superioridade, as enormes torneiras, é ver a multidão a correr para a cascata, de sorriso no rosto, recebendo, entre o desperdício, a dádiva de Deus. Do not, my friends, become addicted to water - adverte o veterano - It will take hold of you and you will resent its absence. Certo dia, Furiosa (carismático desempenho de Charlize Theron) rapta as deslumbrantes e parideiras mulheres de Immortan Joe e desvia-se deserto adentro, procurando a liberdade e a salvação. Sabe da existência do Lugar Verde, um oásis no meio da desolação, onde abunda a água, a vegetação e a esperança. É esse o seu destino. Mas os senhores da Cidadela não perdoarão tamanha traição e não tardarão a persegui-las. E de que forma! Aos fanáticos Kamikloucos, Rapazes da Guerra - dos quais se destaca o fulcral Nux (Nicholas Hoult) -, juntar-se-lhes-ão os furões da Cidade de Guzolina, liderados pelo gordo canibal de John Howard, e os soldados da Quinta das Balas, encabeçados pelo não-menos tresloucado major de Richard Carter. Todos grotescos, saídos aparentemente de um filme de terror ou de um concerto de heavy metal. Algures na proa metálica de um dos carros, acorrentado, o solitário Max, saco de sangue de Nux, atormentado por traumas, memórias e envolvido sem querer na mortal montanha-russa das tribos, que avança a todo o gás, imparável e sem sinais de abrandamento.

A obra tem 120 minutos que passam num instante, tal é o seu impulso e pujança, mas igualmente a sua extraordinária economia narrativa. Não tendo um argumento propriamente complexo, é claro que não se demora em informação inconsequente ou repetitiva, doseando-a com notável equilíbrio entre as sequências mais dinâmicas e enérgicas. Tanto para o avanço da história como para o triunfo da excitante acção é determinante o sentido de oportunidade da montagem, a cargo de Margaret Sixel. Mas também a música de Junkie XL e o vívido e impactante trabalho de sonoplastia. A cada frame, Estrada da Fúria revela-se, ainda ou sobretudo, de um primor artístico raro e por demais elevado. A saturação das cores e a alta definição e limpidez da imagem (fotografia de John Seale) são, em pleno dia, como colírio para os olhos e arrebatam-nos com o seu excelso esplendor. Na noite azul e monocromática, perante o céu estrelado ou perante o perigoso pântano, é como que invocado o expressionismo alemão. Que cena incrível e bem iluminada, essa, em que Max, Nux, Furiosa, as mulheres e a árvore morta se esforçam por tirar da lama o pesado camião. Só falta a cena ser silenciosa. Bem sabemos que Miller pretendia, inicialmente, lançar este seu filme a preto-e-branco. E chegou a concretizá-lo mais tarde, graças ao home cinema, e que belíssimo filme será, certamente - ainda não assisti a essa versão, mas não acredito que vá alguma vez preferi-la às incomensuráveis potencialidades alcançadas pela cor nesta inesquecível versão dos cinemas. Os figurinos, os penteados e a caracterização são sublimes, assim como todos os apetrechos e acessórios que completam a cenografia e que conferem, desse modo, robustez e dimensão à fantasia. As cenas memoráveis são incontáveis... a perseguição em plena tempestade - fustigada por relâmpagos e tornados de areia, vento e fogo - é, em tudo, monumental. Quando os fugitivos encontram as Vuvalini e a desilusão, a perseguição cessa... e, nesse momento, tudo o que mais queríamos era que voltassem para trás, enfrentassem novamente as hordas inimigas e regressássemos à ferocidade das cenas de acção. Felizmente, Miller imaginou o nosso desejo. E jamais substimou o poder das mulheres: o estrogénio combaterá os grunhidos e a buçalidade dos homens, com assaz astúcia e desenvoltura.

Considerá-lo um dos melhores filmes de 2015 é dizer pouco sobre Mad Max - Estrada da Fúria. Estranho, o pressentimento que nos assola, e uma determinada certeza, de que estamos perante um filme superior. A prudência segreda-me para não o afirmar como a obra-prima que o meu coração reclama. Mas o tempo o dirá. O tempo, seguramente, o dirá.

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(*) Refiro-me, por exemplo, à acção estilizada entre a saturação cromática de Kong: Ilha da Caveira (2017), de Jordan Vogt-Roberts. 

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