segunda-feira, 27 de março de 2017

MACBETH (2015)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
★★★★ 
Título Original: Macbeth
Realização: Justin Kurzel
Principais Actores: Michael Fassbender, Marion Cotillard, David Thewlis, Paddy Considine, Sean Harris, Jack Reynor, David Hayman, Elizabeth Debicki, Daniel Westwood, Ross Anderson, Maurice Roëves, Barrie Martin, Hilton McRae, Scott Dymond, Seylan Baxter, Lynn Kennedy

Crítica:

TRONO DE SANGUE 

 What's done cannot be undone. 

2015 foi, definitivamente, um ano de grande colheita: O Renascido de Alejandro G. Iñárritu, Mad Max - Estrada da Fúria de Frank Miller, O Abraço da Serpente de Ciro Guerra e Os Oito Odiados de Quentin Tarantino constam, obrigatoriamente, na lista dos melhores filmes do ano. Não obstante, a vitalidade desta apaixonante arte manifestou-se ainda - e de forma inequívoca - noutros tantos títulos, entre os quais aquele que é, seguramente, um dos mais belos, poéticos e hipnóticos pedaços de cinema do ano: Macbeth, de Justin Kurzel, a partir da tragédia imortal de William Shakespeare.

I. A PALAVRA

A peça é seiscentista. No século XX, de Orson Wells a Akira Kurosawa e a Roman Polanski, vários foram os cineastas que ousaram filmar a poética shakespeariana - e esta peça em particular -, cientes dos detractores mais ou menos fanáticos e absolutamente assegurados, como se Shakespeare fosse infilmável ou tão divino que todas as tentativas de transpô-lo para o grande ecrã fossem indignas ou estivessem, logo à partida, amaldiçoadas. Devo assumir, como homem de letras que sou, a minha total admiração, devoção e reverência ao mestre, poeta e dramaturgo inglês. Efectivamente, considero-o sagrado - o que não quer dizer, contudo, que o meu fel se desfaça, pestilento, num azedume cego e, de certo modo, cliché, a cada vez que se toca na sua inigualável obra; pelo contrário. Declamá-lo com sangue fresco, pulsante veia artística e acalorada paixão é tudo o que mais posso desejar. A arte vive através dos tempos, precisamente, pela memória e pela influência.

Em pleno século XXI, Macbeth de Kurzel preserva a essência e a erudição das palavras originais, ao mesmo tempo que se supera em poesia visual, sempre com apurado bom gosto. O que é perceptível aos olhos deslumbra e extasia, com aparente facilidade, os espectadores de primeira viagem, mas quando confrontados com a palavra, uma determinada barreira impõe-se-lhes. Para os menos acostumados ao lirismo poético e a toda a sua riqueza, a obra assombra-se impenetrável e quase inacessível, dada a exigência no entendimento e na desmistificação do estilo: da inversão sintática aos jogos do verbo, da tão sonante musicalidade do que é proferido à poderosíssima imagética do que é, entre as recorrentes metáforas e comparações, tantas vezes sugerido. Porque ao assistirmos a Macbeth desfrutamos de uma experiência cinematográfica, teatral e, em última ou primeira instância, literária, vale a pena revê-lo e relê-lo tantas vezes quantas necessárias, atentos à transversalidade da palavra, até que finalmente se quebre o gelo e até que verdadeiramente se sintam - entre o nevoeiro, o fumo ou o entardecer, ou o carregado e em tudo extraordinário desempenho dos actores - o lado negro da alma, a visceral intensidade de Shakespeare e a beleza que há em tudo isso.

Nesta devastadora guerra do trono, como na poesia, a palavra é a espada: saber da sua arte revelar-se-á imprescindível para alcançar qualquer triunfo interpretativo. Curioso que, na língua inglesa, estabilizadas as evoluções gráficas e fonéticas, a espada (sword) tenha a palavra (word) lá dentro.

II. A REPRESENTAÇÃO

A palavra é escrita e é percepcionada por nós, espectadores, mas não sem antes ser dita. Os actores são os intermediários da história e as personagens vivem neles antes de viverem em nós. Macbeth é a história (e o nome) de um guerreiro bem sucedido, cuja lâmina desbravou lealdade para com o rei Duncan. Quando uma profecia o anuncia como futuro rei, o homem torna-se cego e transforma-se. Tomando as rédeas do fado, não fosse este mentir, principia a hamartia: cumpre o regicídio, elimina todas as eventuais ameaças e apunhala quem tiver que apunhalar, sem coração, sem culpa, em nome da ambição e do poder. Inclusive os seus homens e amigos mais próximos. Enquanto ascende ao trono e ao status, a sua alma é assolada por alucinações, como se ainda sobrassem resquícios de consciência ou de humanidade, e a descida aos infernos principia, rumo à solidão e à morte. Michael Fassbender é Macbeth, em toda a sua insensibilidade e monstruosidade. A sua performance é, a maior parte do tempo, de um underacting silencioso e contido, mas de uma irascibilidade repentina sempre que o descontrolo o surpreende. E de uma frieza inacreditável quando deveria chorar a perda.

Full, full of scorpions, is my mind.

Se a predição lhe envenena o espírito e lhe seca o coração, o que dizer da pretensiosa acção de Lady Macbeth (Marion Cotillard). A esposa, invocadora de espíritos malignos, não é senão uma ávida  e sedutora serpente, a segredar-lhe constantemente ao ouvido e a tentá-lo para o pior caminho. A sua voracidade só estancará quando o marido não mais a consultar e, totalmente febril, praticar os crimes mais terríveis e hediondos, como queimar vivas crianças e descendências inteiras. Aí Lady Macbeth, já rainha, aperceber-se-á de que já foi longe de mais. Colocar-se-á no lugar da mulher de Macduff ou do próprio - também ela sabe o que é perder um filho, gerado do próprio ventre - e ver-se-á reflectida. O desempenho de Cotillard é completamente sideral. O seu olhar, as lágrimas que verte... dizem tudo sobre a sua dor interior, que tão arduamente lhe implora por silêncio e paz.

O elenco secundário está igualmente magnífico nos seus papéis: David Thewlis é o desditoso Duncan, monarca atraiçoado. Paddy Considine é o malogrado Banquo: lesser than Macbeth and greater. Not so happy yet much happier. Thou shalt get kings though thou be none. E Sean Harris é o desventurado Macduff, cujo ajuste de contas com o protagonista culminará no renhido combate corpo-a-corpo do último acto, onde só uma interpretação errónea do presságio poderá justificar a reviravolta.

A companhia entrega nas suas vozes as mais sentidas declamações. A sua música confunde-se com os arranjos espectrais de Jed Kurzel (irmão do realizador), cujas cordas clamam, tremem e se arrastam demoradamente, como que perpetuando e espelhando o sofrimento das personagens.


III. A IMAGEM


O provérbio é atribuído a Confúcio e diz: uma imagem vale mais do que mil palavras. A máxima popular explica, em grande parte, o retumbante sucesso do cinema enquanto arte de contar histórias, em comparação, por exemplo, ao modesto êxito literário ou mesmo teatral dos dias correntes. No entanto, um filme como Macbeth desafia, necessariamente, tal sabedoria. Sendo que à palavra já me dediquei no primeiro capítulo, focar-me-ei, agora e ainda que por palavras, na imagem.

Na construção de cada frame, o que Kurzel e o progidioso director de fotografia Adam Arkapaw tentam alcançar é a dimensão etérea, sublime e derradeiramente poética dos solilóquios, diálogos ou versos de Shakespeare. Para que a imagem esteja à altura da palavra. Por isso, Macbeth é um banquete visual absolutamente espantoso e magnetizante. Certos quadros, nos quais as personagens se fundem, por via do enquadramento e da iluminação, nos elementos naturais, tornando-se figuras abstractas numa tela de cores intensas, perdurarão na nossa memória muito para além da primeira visualização do filme. Desde a abertura, Macbeth é de um deslumbramento contínuo e impõe-se, por força das imagens, como um filme iminentemente atmosférico e reflexivo: das virgens e recônditas paisagens da Escócia, de esplendor inebriante, aos mais épicos planos de batalha, meticulosamente entrecortados pela montagem de Chris Dickens entre o slow ou o fast motion e o choque das forças rivais em tempo real. O efeito de tais recursos assombra-nos como um fantasma ou como um pesadelo. O confronto é violento, sangrento mas impressionantemente belo. E a chama profundamente estilizada jamais se extingue: nomeadamente na aparição das Irmãs Fatídicas entre os campos e a bruma (infectando a fé cristã com as crendices pagãs), nas sofridas preces de Lady Mcbeth (atormentada por insuperáveis traumas) na capela da vila, ou mesmo o decisivo duelo, já referido, entre Macbeth e Macduff (onde a saturação cromática conduz a um clímax quase operático). A noite, a noite é escura e cheia de terrores, como diria a bruxa de outra guerra de tronos, por isso a fase do dia por excelência para pintar o pano de fundo das mais importantes cenas da tragédia é o entardecer, com os seus tons alaranjados e escarlate. Macbeth não é senão um filme crepuscular: o sol cede o seu lugar às trevas e o seu calor à fria noite, assim como Macbeth, outrora honesto e respeitado, cede a razão à loucura e a sua integridade à tirania, à desgraça e à obscuridade. As imagens anunciam a morte, em crescendo. Escasseia a luz: imperam os tons azulados, gélidos como cristais, sempre que é dia e não há sol. A aurora é como um novo ocaso e o laranja, no plano final, dá mesmo lugar ao vermelho. Vermelho-sangue. O destino está consumado.

Tomorrow and tomorrow and tomorrow... creeps in this petty pace from day to day to the last syllable of recorded time. And all our yesterdays have lighted fools the way to dusty death.

A ambição transborda no olhar dos actores, a vingança cozinha-se nos interiores mas é no campo aberto, encoberto pela neblina ou pelas cores da paleta, que o destino amplamente se concretiza, conferindo à trama um fôlego denso mas refrescante, sinistro mas simultaneamente delirante e onírico. Se as imagens também são uma forma linguagem, que linguagem transcendente é a de Macbeth! Que trabalho de fotografia - sob todos os primas - incrível, ousado e singular.

Conclusão

Não sei que artista será Kurzel; não tenho dons adivinhatórios. Ainda não assisti a Assassin's Creed, mas receio o pior, não só porque não me pareceu interessante por aí além, como me pasma a transição radical de uma obra tão erudita quanto Macbeth para uma tão aparentemente comercial quanto essa outra. Não que não haja bom cinema comercial; não me interpretem mal, sei bem o que é ser incompreendido pelo gosto demasiado eclético. Mas há apostas comerciais de alguns realizadores talentosos que roçam a vergonha - por exemplo: o homem que fez The Fall também realizou, em seguida, uma banalidade chamada Immortals. Isto para dizer que, independentemente do curso que os cineastas tomarem, e dos filmes menores que estrearem em seguida, importa valorizar devidamente os filmes significantes que nos deixaram. Macbeth é sem dúvida um desses filmes, virtuosíssimo, que ou virará cult ou continuará alienado da maioria dos espectadores, sendo que o mais provável é que lhe aconteça ambas as coisas; é certo que não foi concebido para a maioria dos espectadores. Não tenho dons adivinhatórios, relembro, mas tento e dito-lhe esta sorte.

1 comentário:

  1. Este "Macbeth" não achei nada de especial. A versão de Polanski dos anos 70 é melhor bem como "Throne of Blood", de Kurosawa. Há também uma excelente encenação de Kenneth Branagh em 2013 mas infelizmente essa versão teatral, até agora, nunca viu a luz do dia em DVD, o que é pena.

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