Realização: M. Night Shyamalan
Principais Actores: Will Smith, Jaden Smith, Sophie Okonedo, Zoë Kravitz, Glenn Morshower, David Denman, Lincoln Lewis, Jaden Martin, Jim Gunter, Monika Jolly, Kristofer Hivju
Crítica:
A URSA E O FANTASMA
Danger is very real, but fear is a choice.
Os ódios de estimação conduzem, na generalidade dos casos, a uma cegueira triste. Plenos, tantas vezes, de inconsciência ou irreflectidos na urgente necessidade de pertença, condicionam visões próprias, silenciam vozes singulares e autónomas, entregando um julgamento fácil e por demais condenatório. M. Night Shyamalan tornou-se - ou tornaram-no -, por estes dias, um alvo fácil, um bode expiatório para uma legião de haters que, a cada filme, destila a sua frustração. Procuram, em cada obra sua, uma fórmula e um padrão, um twist que ditaram obrigatório, um traço autoral hegemónico. Compreendo, em certa medida, que o chamem vendido por abraçar a aventura fantástica de O Último Airbender. Compreendo e concordo, de igual forma, que um filme como O Acontecimento não tenha o fulgor e virtuosismo d'O Sexto Sentido ou d'A Vila. Mas negar as qualidades e méritos de tais obras, somente pela assinatura, é ridículo. O mesmo acontece, a meu ver, com Depois da Terra, um conto moral visualmente deslumbrante, disfarçado de blockbuster de ficção científica*.
No futuro, a Terra já não é a nossa casa. A acção e poluição humana levaram a alterações climáticas drásticas, que extinguiram todas as possibilidades de vida. Mais de mil anos após a última evacuação, a espécie habita e prospera em Nova Prime, uma colónia num outro planeta, assombrada agora pela existência das ursas - assustadores monstros alienígenas, predadores volumosos e de saliva corrosiva, uma mistura do xenomorfo de Alien e da Shelob d'O Senhor dos Anéis, cegos embora capazes de detectar as suas presas pelas feromonas do medo, presentes no ar. Quando a nave em que o general Cypher Raige (Will Smith), o filho Kitai (Jaden Smith) e a tripulação seguia se vê abalroada por uma tempestade de asteróides, arriscam um salto na dimensão cósmica e acabam por despenhar-se num planeta misterioso. Apenas pai e filho sobrevivem e, quem sabe, uma ursa que a nave transportava. Cypher está gravemente ferido e incapaz de andar, o emissor para pedir ajuda intergaláctica está irreversivelmente avariado e para chegar a outro emissor, provavelmente entre os destroços da nave espalhados pela selva, o jovem e cobarde Kitai terá que, sozinho, atravessar cerca de cem quilómetros de perigos e desconhecido: everything on this planet has evolved to kill humans - revela-lhe o pai - Do you know where we are? (...) This is Earth.
O sensível e emotivo rapaz - que sempre se esforçou para ser como o pai, quiçá procurando a sua aprovação e o seu amor - enfrentará uma dura e imprevisível prova de sobrevivência, lindando com uma atmosfera asfixiante e escassa em oxigénio, uma paisagem que congela em minutos com o cair da noite, uma selva densa, habitada por hienas e condores gigantes, ciosos das suas crias, macacos ferozes e vorazes tigres dentes-de-sabre, cobras planadoras e sanguessugas tóxicas e venenosas, capazes de o paralisar ou matar em instantes. Para alguém que, nos treinos militares, sempre foi melhor na teoria do que no terreno, o desafio avizinha-se hercúleo. Ainda para mais se pensarmos que é filho de um guerreiro estóico e lendário: Cypher consegue como que tornar-se invisível perante as ursas, alheando-se dos medos e atingindo um notável controlo e equilíbrio emocional: consegue, portanto, tornar-se um fantasma, capaz de desferir os mais fatais golpes na criatura atacante. A sombra do nome e da fama do pai é um fardo pesado. Mas mais. Um episódio trágico, revelado em flashbacks ao longo da narrativa, justificará o temor maior ao monstro, a fragilidade de Kitai, a frieza do pai e mesmo a desconexão emocional entre os dois.
Da criatividade e ousadia dos cenários futurísticos e dos artefactos humanos mostrados (notem-se as construções de Nova Prime ou o esquelético interior da nave espacial, qual raia num oceano de astros - feitos artísticos de Robert W. Joseph, Naaman Marshall, Dean Wolcott e Rosemary Brandenburg), passamos para o âmago da natureza, no seu verde imperioso. A fotografia de Peter Suschitzky maravilha-nos a cada plano, com paisagens de tirar o fôlego. Seguindo as orientações do pai, cuja voz e guarda está sempre presente por meio da mais avançada tecnologia, Kitai (que, em japonês, poderá significar esperança) avança na aventura e nós avançamos com ele, almejando que seja bem sucedido e que não desiluda o progenitor, salvando-os da morte. É claro que, às tantas, as coisas se complicam, a comunicação falha e Kitai fica por sua própria conta e risco. Não deixa de ser curioso que só então, livre da protecção do pai, consiga cumprir o seu potencial e fazer frente aos perigos, destemidamente. Finalmente, tem asas para voar.
Fear is not real. The only place that fear can exist is in our thoughts of the future. It is a product of our imagination, causing us to fear things that do not at present and may not ever exist. That is near insanity, Kitai. Do not misunderstand me, danger is very real, but fear is a choice.
Depois da Terra é, por tudo isto, uma história de superação, de superação dos medos: medos que são importantes como prevenção, mas que em demasia nos castram e nos incapacitam. É importante transformá-los numa arma, capaz de combater e vencer os obstáculos que se nos impõem. Mas o filme de Shyamalan é também uma história de amor: Kitai compreende, perante o sacrifício e profundo gesto de gratidão do condor, o poderosíssimo e incondicional amor de um progenitor pelas suas crias. O que o rapaz empreende, daí em diante, em resposta, não é senão um sacrifício de equiparáveis proporções. O duelo final com a ursa, entre a poeira e a lava daquele ameaçador vulcão, resulta num clímax de acção excitante e pura.
Que digam o que quiserem de Depois da Terra. Não é um filme perfeito - maior expressão e dimensão na interpretação de Will Smith só beneficiaria a obra e sabe quem anda por cá há algum tempo que alguns efeitos especiais não envelhecerão tão bem quanto se gostaria. Todavia, não é tão-pouco um filme que se perca na sua ambição desmedida. É simples, bonito e eficaz. E, no seu equilíbrio, não envergonha ninguém. Talvez alguns não vejam tudo isto e o considerem um fantasma. Que seja. As ursas, na sua cegueira, não vêm fantasmas. Mas eles existem e valem a pena.
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(*) Palavras de Matt Zoller Seitz na sua crítica ao filme. Cf. aqui.
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