domingo, 12 de março de 2017

SNOWPIERCER - O EXPRESSO DO AMANHÃ (2013)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
★★★★ 
Título Original: Snowpiercer
Realização: Joon-ho Bong
Principais Actores: Chris Evans, Kang-ho Song, Tilda Swinton, Ed Harris, John Hurt, Jamie Bell, Octavia Spencer, Ah-sung Ko, Alison Pill, Luke Pasqualino, Ewen Bremner, Kenny Doughty, Steve Park, Vlad Ivanov, Tómas Lemarquis, Adnan Haskovic, Clark Middleton, Paul Lazar

Crítica:

DISTOPIA DE CLASSES 

 When the foot seeks the place of the head, 
the sacred line is crossed.

A filosofia pode ser acessível e a alegoria de Snowpiercer - O Expresso do Amanhã é a prova disso. Se o comboio é o mundo, os passageiros são a Humanidade. Se a Humanidade e as suas sociedades se dividem e organizam por classes, o comboio é a soma das suas múltiplas carruagens. Cada carruagem representa uma classe. Da cabeça à cauda, da locomotiva aos últimos vagões, temos a classe alta, a média e os miseráveis. Cada uma no seu lugar, mantendo a ordem e o equilíbrio na viagem da vida: os mais ricos como mais fortes e os mais pobres como mais fracos. Os mais poderosos vivem às custas dos outros, instigando neles o sentimento de revolta e a urgência da rebelião. Em cada ano, o expresso dá a volta ao mundo. Há dezassete anos que é assim, desde que o químico CW-7, lançado na atmosfera para travar o aquecimento global, congelou e extinguiu toda a vida na Terra. Os únicos sobreviventes são aqueles passageiros, entregues à sorte de um amanhã improvável. Para Karl Marx - filósofo, sociólogo e revolucionário socialista do século XIX, um dos pais do pensamento moderno - o progresso das sociedades humanas concretizava-se pela luta de classes. Pois bem, Snowpiercer, no seu imaginário futurístico e distópico, metaforiza essa luta. A fagulha que acenderá o rastilho e alimentará o fogo da revolução não tardará a brilhar, derretendo o gelo e desencadeando, de forma imparável e irreversível, a acção que poderá - para sempre - mudar o destino da Humanidade.

Adaptando a novela gráfica francesa Le Transpercene, o sul-coreano Joon-ho Bong apostou desde logo na internacionalização do projecto, reunindo um elenco maioritariamente proveniente do mainstream de Hollywood (Chris Evans, Tilda Swinton, Ed Harris, John Hurt, Jamie Bell e Octavia Spencer) e, por conseguinte, adoptando a língua inglesa como idioma predominante. Mas entre os actores constam também Kang-ho Song e Ah-sung Ko, entre outros tantos rostos do mundo. Snowpiercer é, efectivamente, um filme à escala global. Nele acompanhamos o líder Curtis Everett (Evans) na insurreição da classe baixa contra as elites que, arrogantes e impunes, subjugam os pobres coitados por meio da mentira e do medo. O filme é, todo ele, um grito de revolta e uma reclamação de justiça. Só não é mais claustrofóbico porque, com a explosão do motim, o seu mundo se expande a cada descoberta, a cada porta que arrombam, a cada inimigo que ferem e vencem. As trevas, as sombras, a sujidade, os insectos, o ambiente fétido e lúgubre dão lugar a carruagens limpas, com janelas, cada vez mais prolíficas em cores, vida e diversidade. Deparar-se-ão com aquários, estufas de frutas e jardins, oficinas e centros de controlo, dentistas e alfaiates, cabeleireiros e restaurantes, piscinas e saunas, escolas, discotecas... O espelho e a memória, o modus operandi e o microcosmos dos costumes das sociedades do século XXI... num único comboio, qual Arca de Noé invertida: ou seja, que em vez de abarcar e salvar da intempérie os puros e inocentes de encontro a um novo começo, transporta o vírus e a doença, os últimos sobreviventes de uma espécie consumida pelo vício, condenada à auto-destruição, que já conseguiu erradicar a vida de um planeta inteiro e que persiste em não aprender com os próprios erros.

A narrativa linear avança sem grandes ousadias, cronologicamente e de carruagem em carruagem, assim como avançamos num jogo, de nível em nível. Por isso mesmo, o ritmo não estagna, antes se intensifica. Wilford, criador e proprietário do comboio, nunca foi visto. Qual estadista totalitário, é cultuado como um deus benfeitor. Os seus discípulos, entre os quais se destaca a burocrata - e caricata - Mason (assombroso desempenho de Swinton, transfigurada por tiques, expressões e próteses), propagam a doutrina e o imaginário, referindo-se a Wilford como o senhor da Locomotiva Sagrada, a quem todos devem a vida. Acontece que a classe baixa não vive, sobrevive. Alimenta-se só e apenas de gelatinosas barras proteicas, cuja origem desconhece, amontoa-se em beliches, são-lhe retiradas crianças sabe-se lá para que fins e levados familiares que jamais tornará a ver, é severamente castigada por isto e por aquilo, é escrava sem direito à palavra ou à indignação. Se, com razão, se revoltam os miseráveis, são logo fuzilados ou levados a enfiar os braços para fora do comboio, ficando imediatamente com os membros congelados, prontos a serem quebrados aos pedaços por impetuosas marteladas. As palavras de Mason são, a respeito, por demais esclarecedoras e intimidatórias:


Order is the barrier that holds back the flood of death. We must all of us on this train of life remain in our allotted station. We must each of us occupy our preordained particular position. Would you wear a shoe on your head? Of course you wouldn't wear a shoe on your head. A shoe doesn't belong on your head. A shoe belongs on your foot. A hat belongs on your head. I am a hat. You are a shoe. I belong on the head. You belong on the foot. (...) Eternal order is prescribed by the sacred engine: all things flow from the sacred engine, all things in their place, all passengers in their section, all water flowing. All heat rising, pays homage to the sacred engine, in its own particular preordained position. So it is. Now, as in the beginning, I belong to the front. You belong to the tail. (...) Know your place. Keep your place. Be a shoe. 

E pensar que o papel de Swinton era, originalmente, de um homem. Hoje, nem conseguiríamos imaginar o filme sem ela. Foi a própria actriz que convenceu o realizador a ficar com aquele que é, certamente, um dos melhores papéis da sua carreira. Na cauda, o misterioso ancião de John Hurt, Gilliam, defensor dos desprivilegiados. Na cabeça, o carismático e manipulador Wilford de Ed Harris. E pelo meio os notáveis desempenhos de Song e Ko como Minsoo e Yona, pai e filha, adictos do alucinogénico e inflamável kromole, cuja utilidade e importância jamais deverá ser substimada. São eles os conhecedores da segurança do comboio, os desbloqueadores das portas, que levam o confronto dos desfavorecidos adiante. Entre eles a cambaleante Tanya de Spencer, a quem o filho foi retirado, e o jovem e corajoso Edgar de Bell, que vê na liderança de Curtis a mais profunda inspiração. É por personagens tão bem conseguidas que nos prendemos imediatamente à história e aos acontecimentos e torcemos pelo sucesso da investida.

A acção, mais ou menos estilizada, é uma constante. A câmera de Bong, ainda que confinada à clausura das carruagens, serve-a prontamente e ao longo de toda a obra, agilizando-se sempre que necessário. Alguns planos, plenos de efeitos digitais, dão-nos conta da severidade do clima no exterior. Nesses instantes, a narrativa respira gelidamente, lembrando-nos o contexto apocalíptico e letal lá de fora. As cenas memoráveis são mais do que muitas: o ataque às escuras dos soldados de Wilford no túnel que se segue à ponte Yekaterina, o sorteio dos ovos de Ano Novo em plena sala de aula, o tiroteio entre Curtis e o mal-encarado Franco (Vlad Ivanov) comboio adentro, que termina na sangrenta e brutal cena da sauna... ou até mesmo o final, quando Curtis olha para trás e vislumbra o purgatório: Song enfrentando a ira das elites - outrora entregues ao ócio e à ruína, agora também elas tornadas revoltosas. Uma das melhores cenas, contudo, será sempre aquela passada instantes antes, em que Curtis, transtornado pela perda dos amigos e prestes a abrir a última porta, partilha com Song o seu passado trágico e cruel. É nesta emocionante cena que Evans se revela, sem sombra de dúvidas, à altura do papel, justificando a confiança nele depositada aquando do casting.

Num filme como Snowpiercer, a direcção artística revela-se fundamental e, por isso, há que salientar a notável concepção de Ondrej Nekvasil, Stefan Kovacik e Beatrice Brentnerova. Kyung-pyo Hong, na direcção de fotografia e seguro das potencialidades das cores e da iluminação, entrega um sóbrio trabalho imagético, extraindo do cenário e dos enquadramentos toda a beleza possível, ultrapassando facilmente o cinzentismo da fonte original, a novela gráfica em que tudo era preto ou branco. Marco Beltrami, que tantas vezes presta o seu talento a filmes menores, formula aqui pedaços de música convincentes, geralmente subtis, mas igualmente determinantes para o sucesso narrativo e para a compleição emocional da obra junto do espectador. Rodam as engrenagens, aquece o motor e irrompe a locomotiva adiante. O filme triunfa na sua visão, derrubando a controvérsia criada à volta da distribuição e os eventuais cortes na sala de montagem. Glorioso, chegou até nós na visão completa do cineasta e dirá o tempo se, mais do que um filme de culto, não se tornará um filme eterno.

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