★★★★★
Realização: Tom Tykwer, Andy Wachowski, Lana Wachowski
Principais Actores: Tom Hanks, Halle Berry, Jim Broadbent, Hugo Weaving, Jim Sturgess, Ben Whishaw, James D`Arcy, Susan Sarandon, Hugh Grant, Doona Bae, David Gyasi
Crítica:
A VIAGEM E A EVOLUÇÃO DA ALMA
I believe death is only a door. When it closes, another opens.
Há filmes destinados a existirem. O aclamado romance Cloud Atlas, de David Mitchel, dir-se-ia completamente intransponível à sétima arte, tal era a sua complexidade no papel. Seis histórias em seis tempos diferentes, contadas em simultâneo, cada uma delas com um género distinto, sendo que as personagens reencarnam de tempo para tempo, reclamando a evolução da alma e uma missão pela Verdade que se concretiza ao longo dos séculos, almejando aperfeiçoar a existência dos Homens. Mas como diria o intenso e eloquente Robert Frobisher de Ben Whishaw: all boundaries are conventions, waiting to be transcended. One may
transcend any convention, if only one can first conceive of doing so. E o filme fez-se.
Em cada tempo narrativo, à parte as reencarnações assumidas fisicamente pelos
mesmos atores, há um sinal de nascença. Os protagonistas marcados com o cometa herdam do passado um testemunho
de fé e uma luta por um mundo mais livre, igual e pleno de amor. This world spins from the same unseen forces that twist our hearts. A
herança é transmitida pelas forças do cosmos e materializada na
palavra: o diário, as cartas, o livro, o guião, o filme, o vídeo, a oralidade - os fios narrativos interligam-se por um ritual de leitura, pela arte de
contar a história (que nos remete para a lógica do prodigioso As Horas de 2002, de Stephen Daldry). Os protagonistas continuam a demanda no seu presente, pelas
suas atitudes e ações, num aperfeiçoamento eterno. Para uma conquista,
cada gesto ou palavra é, no seu espaço e no seu tempo, somente um
gesto ou uma palavra, como uma gota na imensidão do oceano, mas... What is an ocean but a multitude of drops?, remata Adam Ewing, eficazmente. Descodificando o cometa, ainda que as interligações sejam mais do que muitas, atentemo-nos pois aos principais fios narrativos:
- Em 1849, o drama histórico. Um navio atravessa o Pacífico. É escrito um diário por Adam Ewing (Jim Sturgess), um advogado idealista que salva o negro Autua (David Gyasi) da escravatura e que mais tarde lutará pelo abolicionismo.
- Em 1936, o romance poético. Na mansão do mestre Arys, Inglaterra, um amante e aprendiz amador procura inspiração para compor a sua obra-prima musical. É a história do bissexual e insatisfeito Robert Frobisher, que lê o diário de Adam Ewing mas cuja leitura não termina. A half-finished book is, after all, a half-finished love affair. Termina The Cloud Atlas Sextet com a mesma determinação trágica com que termina a sua vida, com o suicídio. Suicide takes tremendous courage. A sua maravilhosa música ecoa por todo o filme (composta na verdade pelo próprio cineasta Tom Tykwer, em colaboração com Reinhold Heil e Johnny Klimek). O acto criativo como acto de amor, deixado por escrito em muitas da suas cartas ao seu amado Sixmith (James D'Arcy). I believe there is a another world waiting for us, Sixsmith. A better world. And I'll be waiting for you there.
- Em 1973, o thriller policial. Em São Francisco, a jornalista Luisa Rey (Halle Berry) tenta desmascarar a conspiração por detrás de um novo e perigoso reator de energia nuclear. Tem acesso às cartas de Frobisher - conhece o envelhecido Sixmith - e procura numa loja o disco do Cloud Atlas Sextet, que assume reconhecer embora não saiba muito bem de onde. Relata em livro a sua investigação.
- Em 2012, a comédia, a farsa. O sexagenário Timothy Cavendish (hilariante e brilhante performance de Jim Broadbent) lê o manuscrito de Luisa Rey. É, por intermédio do irmão, internado num hospício (localizado na antiga mansão de Arys), do qual tentará fugir a todo o custo. Acaba por escrever um guião para cinema com base na sua experiência.
- Em 2044, a ficção científica. Na Nova Seul de um futuro distópico - ecoa o imaginário visionário de Blade Runner - Sonmi-451 (Doona Bae) é uma ingénua e inocente fabricante, uma clone humana, concebida por engenharia genética de ponta, moda alheia a qualquer ética moral. É escrava num restaurante de fast food, alimentada a soap. Quando descobre a verdade sobre si mesma e inspirada no filme a que assiste baseado no argumento do velho Cavendish - I will not be subjected to criminal abuse -, a rebelião contra o sistema começa. No matter if we're born in a tank or a womb, we are all Pureblood. (...) We must all fight and, if necessary, die to teach people the truth. Somni-451 grava uma mensagem em vídeo.
- Em 2321, cento e seis invernos após a Queda, a ficção pós-apocalíptica. Nas denominadas Big Islands, a sociedade humana tornou à fórmula primitiva, assombrada pelo medo e pelo desconhecimento. Adoram uma divindade chamada Somni, temem os ataques canibais dos Kona e tanto mais as tentações diabólicas do Old Georgie. O poder tecnológico de outrora está na posse, apenas, dos prescientes, uma elite avançada mas igualmente condenada que não vive por ali. É neste contexto que Zachry (mais uma inesquecível interpretação de Tom Hanks) tenta ajudar a presciente Meronym a enviar um aviso para as colónias fora do planeta, através de um emissor escondido na ilha, para que os resgatem de uma doença que entre os Homens se alastra sem salvação. Zachry assiste ao vídeo de Somni.
- Em 1849, o drama histórico. Um navio atravessa o Pacífico. É escrito um diário por Adam Ewing (Jim Sturgess), um advogado idealista que salva o negro Autua (David Gyasi) da escravatura e que mais tarde lutará pelo abolicionismo.
- Em 1936, o romance poético. Na mansão do mestre Arys, Inglaterra, um amante e aprendiz amador procura inspiração para compor a sua obra-prima musical. É a história do bissexual e insatisfeito Robert Frobisher, que lê o diário de Adam Ewing mas cuja leitura não termina. A half-finished book is, after all, a half-finished love affair. Termina The Cloud Atlas Sextet com a mesma determinação trágica com que termina a sua vida, com o suicídio. Suicide takes tremendous courage. A sua maravilhosa música ecoa por todo o filme (composta na verdade pelo próprio cineasta Tom Tykwer, em colaboração com Reinhold Heil e Johnny Klimek). O acto criativo como acto de amor, deixado por escrito em muitas da suas cartas ao seu amado Sixmith (James D'Arcy). I believe there is a another world waiting for us, Sixsmith. A better world. And I'll be waiting for you there.
- Em 1973, o thriller policial. Em São Francisco, a jornalista Luisa Rey (Halle Berry) tenta desmascarar a conspiração por detrás de um novo e perigoso reator de energia nuclear. Tem acesso às cartas de Frobisher - conhece o envelhecido Sixmith - e procura numa loja o disco do Cloud Atlas Sextet, que assume reconhecer embora não saiba muito bem de onde. Relata em livro a sua investigação.
- Em 2012, a comédia, a farsa. O sexagenário Timothy Cavendish (hilariante e brilhante performance de Jim Broadbent) lê o manuscrito de Luisa Rey. É, por intermédio do irmão, internado num hospício (localizado na antiga mansão de Arys), do qual tentará fugir a todo o custo. Acaba por escrever um guião para cinema com base na sua experiência.
- Em 2044, a ficção científica. Na Nova Seul de um futuro distópico - ecoa o imaginário visionário de Blade Runner - Sonmi-451 (Doona Bae) é uma ingénua e inocente fabricante, uma clone humana, concebida por engenharia genética de ponta, moda alheia a qualquer ética moral. É escrava num restaurante de fast food, alimentada a soap. Quando descobre a verdade sobre si mesma e inspirada no filme a que assiste baseado no argumento do velho Cavendish - I will not be subjected to criminal abuse -, a rebelião contra o sistema começa. No matter if we're born in a tank or a womb, we are all Pureblood. (...) We must all fight and, if necessary, die to teach people the truth. Somni-451 grava uma mensagem em vídeo.
- Em 2321, cento e seis invernos após a Queda, a ficção pós-apocalíptica. Nas denominadas Big Islands, a sociedade humana tornou à fórmula primitiva, assombrada pelo medo e pelo desconhecimento. Adoram uma divindade chamada Somni, temem os ataques canibais dos Kona e tanto mais as tentações diabólicas do Old Georgie. O poder tecnológico de outrora está na posse, apenas, dos prescientes, uma elite avançada mas igualmente condenada que não vive por ali. É neste contexto que Zachry (mais uma inesquecível interpretação de Tom Hanks) tenta ajudar a presciente Meronym a enviar um aviso para as colónias fora do planeta, através de um emissor escondido na ilha, para que os resgatem de uma doença que entre os Homens se alastra sem salvação. Zachry assiste ao vídeo de Somni.
Our lives are not our own. From womb to tomb, we are bound to others.
Past and present. And by each crime and every kindness, we birth our
future.
Sonmi-451
Quanto ao karma e às reencarnações, há almas que evoluem, outras que nem tanto. Como diria o general Maximus de Gladiador, tão a propósito: what we do in life echoes in eternity. Há almas como a das variadíssimas e memoráveis personagens de Hugo Weaving que oscilam entre o Mal e o Mal. De traficante de escravos a nazi, a assassino, a enfermeira cruel, a membro do sistema totalitário, a personaficação imaginada do diabo. As personagens de Hugh Grant também não devem muito ao Bem, ou não terminasse o ator como líder de uma tribo canibal. Depois temos personagens como as de Tom Hanks, cuja alma evolui claramente, ou como as almas femininas das personagens de Halle Berry ou Doona Bae, que evoluem no sentido da afirmação. A alma das personagens de Jim Sturgess, por exemplo, contribui decisivamente para a transformação da existência futura numa existência melhor.
É impossível prever o curso do futuro. David Mitchell diz:
Belief, like fear or love, is a force to be understood as we understand
the Theory of Relativity and Principles of Uncertainty: phenomenon that
determine the course of our lives. Yesterday, my life was headed in one
direction. Today, it is headed in another. Yesterday I believed that I
would never have done what I did today. These forces that often remake
time and space, that can shape and alter who we imagine ourselves to be,
begin long before we are born and continue after we perish. Our lives
and our choices, like quantum trajectories, are understood moment to
moment. At each point of intersection, each encounter suggests a new
potential direction.
Isaac Sachs
É impossível prever o curso do futuro. David Mitchell diz:
Souls cross ages like clouds cross skies, an' tho' a cloud's shape nor
hue nor size don't stay the same, it's still a cloud an' so is a soul.
Who can say where the cloud's blowed from or who the soul'll be 'morrow?
Não obstante, encontramos tamanha carga significante no mistério. No epílogo como no prólogo, Zachry conta aos espetadores e às gerações futuras as muitas histórias de Cloud Atlas (vislumbrou-as num sonho revelador): histórias que, na sua
multiplicidade, assumem uma unidade tão inequívoca. Como se houvesse uma
continuação, após a vida: o que estabelece naturalmente a ponte com a epígrafe deste texto, palavras proferidas por Somni 451.
Cloud Atlas transcende-se na ousadia e na
ambição das suas ideias (é afinal um filme de grande orçamento, independente e arriscado), na beleza impressionante e hipnótica da sua
fotografia, música e tremendos efeitos digitais. Tom Tykwer (o mesmo do
notável Heaven - Por Amor e de Perfume - História de Um Assassino, realizador das sequências de 1936, 1973 e 2012) e os irmãos Wachowski (os mesmos de Matrix, responsáveis pelos tomos de 1849, 2044 e 2321) em boa hora se uniram para o triunfo da adaptação.
Superam-se na condução das histórias, filmando-as de forma
absolutamente apaixonada e magnetizante. Mas o que dizer do
extraordinário elenco? Cloud Atlas assume-se, também na sua essência, como um soberbo e poderosíssimo filme de atores.
A complexidade narrativa de Cloud Atlas desafia, exige e merece, a cada segundo, um espetador por demais atento e ativo na sua interpretação, mas igualmente disposto a envolver-se emocionalmente na experiência que proporciona. É daqueles filmes-mosaico, estimulantes embora profundamente intrincados, com alguma pretensão à mistura, que nos coloca, abertamente e sem conceder todas as respostas, as questões existenciais suficientes para refletirmos durante horas e horas, ou dias e dias. Provavelmente, duas ou três visualizações da obra não serão suficientes para nos apercebermos de todos os seus detalhes e de toda a sua amplitude.
Cloud Atlas não é, pois, senão um daqueles raros, monumentais e incompreendidos filmes, de alguma forma tocados pela genialidade, aos quais só se fará justiça a seu tempo, no futuro. Tornar-se-á com toda a certeza um filme de culto.
Perfect review. Congratulations. I wish I could write like that. I agree with all you said. And yes, we/I will need to see it a few more times so as to catch all the details. Lúcia
ResponderEliminarThanks Lúcia! It's a eternal piece of cinema, I bet.
ResponderEliminarRoberto Simões
CINEROAD