Realização: Martin Scorsese
Principais Actores: Asa Butterfield, Ben Kingsley, Chloë Grace Moretz, Sacha Baron Cohen, Emily Mortimer, Christopher Lee, Ray Winstone, Jude Law, Helen McCrory, Michael Stuhlbarg, Richard Griffiths, Frances de la Tour, Angus Barnett, Kevin Eldon, Ben Addis, Emil Lager, Robert Gill
Crítica:
If you've ever wondered where your dreams come from...
you look around... this is where they're made.
you look around... this is where they're made.
A Invenção de Hugo tem a luz do entardecer, a mesma da fase crepuscular em que se encontra - o aqui mais genial do que nunca - Martin Scorsese. Custa-nos a crer que, num futuro não muito distante, não haverá mais o próximo do cineasta, a estrear nas salas. É por isso inequivocamente simbólico que, antes do seu derradeiro adeus, erga tamanha homenagem aos primórdios e aos pioneiros da sétima arte, que tanto o inspiraram - tributo maior ao inventivo poder criativo de Georges Méliès -, num fabuloso e sublime conto capaz de inspirar também e tão convictamente as presentes e futuras gerações, que darão continuidade ao seu legado. Hugo é, pois, a metáfora do seu contributo para perpetuar esta arte que é de todos. Um profundo trabalho de engenho e arte, de pura paixão, quase enciclopédico. Uma fascinante lição de cinema. Um filme extremamente prazeroso de se assistir, sobre o prazer de ver e degustar filmes, sobre o culto da cinefilia e a celebração do próprio cinema, como num jogo de espelhos; o melhor a fazê-lo, desde o saudoso Cinema Paraíso, de Tornatore. Não é infantil ou para crianças; sê-lo-á somente, porventura, na melhor das aceções: afinal, gostar de cinema é mantermos viva a criança que há em nós, não perdendo a capacidade de imaginar, de sonhar, de nos outrarmos e de, assim, partirmos à aventura. E é sobre a mágica e maravilhosa aventura do cinema, este Hugo.
A nostálgica Paris dos anos 30, de Scorsese, tem o mesmo encanto romântico que teve em Moulin Rouge ou em Amélie, qual postal ilustrado, embora noutra época, noutro tempo. A cidade das luzes e da Torre Eiffel é excecionalmente recriada, digitalmente. A sua estação de comboios tem a monumentalidade de uma catedral, qual Notre Dame, a sua torre do relógio a de uma torre de sinos. Afinal, também as badaladas marcaram o tempo, outrora. Entre o azul e o dourado, perfeitamente iluminada, a fotografia de Robert Richardson transcende-nos em beleza e esplendor; a cada enquadramento, a cada frame. A sofisticação dos efeitos digitais (com o veterano Robert Legato no comando pleno do CGI) confunde-se facilmente com a magnificência dos cenários (mais uma vez, Dante Ferretti e Francesca Lo Schiavo). A profundidade de campo e a imersão do espetador na atmosfera e no mundo do filme são, graças à fenomenal - e pelas mãos de Scorsese absolutamente surpreendente - utilização do 3D, deveras impressionantes. Quase sentimos a neve, a poeira, os fumos e os cheiros. Os sons e os seus demais efeitos são igualmente tremendos.
Logo na abertura, a câmera segue e persegue o pequeno Hugo pelos labirintos da estação, abundante em mecanismos, em planos-sequência tremendamente eficazes, reveladores, não obstante truncados. Soa o acordeão parisiense, a vida tem um ritmo imparável já naqueles dias. Chegam e saem comboios, pessoas, a todo a hora, a todo o instante. O filme centra-se num escasso, porém rico, leque de personagens-residentes que ganham corpo e alma graças às portentosas interpretações do elenco. Temos o caricato inspetor Gustave Dasté (Sacha Baron Cohen), de sorriso raro e forçado e sem aparente coração, que coxeia a armação metálica da sua perna e a sua autoridade por toda a estação, sempre acompanhado pelo seu acutilante dobermann. Sempre que o aparelho encrava, o eco mais constrangedor. A música de Howard Shore reforça especialmente o seu carácter cómico. Só quando cai de amores pela simpática florista lá do sítio acaba por revelar alguma da sua humanidade escondida. Quem lhe escapa a maior parte das vezes é o nosso protagonista, com o qual desenvolvemos uma empatia imediata: Hugo (adorável e promissor Asa Butterfield, de incríveis e espantosos olhos azúis). É como um órfão (os contornos dickensianos da narrativa, aliás, são por demais evidentes): os flashbacks dão-nos conta dos tempos felizes partilhados com o pai falecido (Jude Law), relojoeiro, antes da adoção pelo bêbedo e ausente tio Claude (mais tarde encontrado morto no rio), que o trouxe para a estação e lhe ensinou tudo sobre os relógios tão mecanicamente complexos do local.
Há um mistério por desvendar: Hugo herdou do pai um enigmático autómato por consertar, com forma humana, que acredita guardar uma mensagem do seu progenitor. Se conseguir o arranjo (nesta altura ainda ser consertavam coisas, hoje deitamos tudo fora) e as peças que lhe faltam, nomeadamente uma chave em forma de coração algures em parte incógnita, talvez consiga descodificá-lo. I thought if I could fix it... then I wouldn't be so alone. É aí que entra outra das personagens centrais da história: Georges (comovente Ben Kingsley), o velho dono da loja de brinquedos da estação, também ilusionista, a quem o miúdo ousa roubar peças e ferramentas para seu proveito. Todavia, é logo apanhado em flagrante. O velho confisca-lhe o bloco de notas, com esboços e instruções sobre o autómato e, ao vislumbrá-lo, abisma-se, claramente emocionado. Ghosts, afirma. Did you draw these pictures? Did you draw these pictures? Where did you steal this? Adensa-se o suspense. Hugo segue o comerciante até casa, visando recuperar o que é seu, mas sem sucesso. Contudo, conhece-lhe a jovem afilhada, de nome Isabelle (Chloë Grace Moretz), um pouco mais alta do que ele, que se tornará sua amiga e inseparável parceira de investigação.
This might be an adventure, and I've never had one before - outside of books, at least. Curioso que Isabelle leia tantos livros e nunca tenha assistido a um filme (o Papá George nunca a deixou ousar, sequer) e que Hugo não os costume ler mas guarde as melhores recordações dessas visões passadas, incutidas pelo pai, anos atrás. Uma das primeiras aventuras dos dois amigos é entrar clandestinamente num cinema e assistir à empolgante escalada de Harold Loyd, prédio acima, no icónico O Homem Mosca, de 1923; o que se traduz numa deliciosa homenagem e piscadela de olho ao filme que inspirará, no último ato, a subida de Hugo à torre do relógio e a sua suspensão - de suster a respiração - no ponteiro do grande relógio. Estava destinado que Hugo encontrasse a chave do autómato, pendurada num fio ao pescoço de Isabelle, e que a máquina esboçasse, qual Sonny no filme de Proyas, um novo enigma: desta feita, um satélite a aterrar na lua, com a assinatura de George Méliès. Golpe de sorte e do destino, novamente: não é Méliès senão o padrinho de Isabelle, dono da loja de brinquedos. Uma gaveta cheia de desenhos e segredos esvoaçantes espera-os, ainda. Méliès foi, afinal, autor de mais de quinhentos filmes! Descobrirão como a chave em forma de coração pode dar vida e alma não só ao autómato, mas a alguém real e a precisar de conserto também há muito tempo.
Logo na abertura, a câmera segue e persegue o pequeno Hugo pelos labirintos da estação, abundante em mecanismos, em planos-sequência tremendamente eficazes, reveladores, não obstante truncados. Soa o acordeão parisiense, a vida tem um ritmo imparável já naqueles dias. Chegam e saem comboios, pessoas, a todo a hora, a todo o instante. O filme centra-se num escasso, porém rico, leque de personagens-residentes que ganham corpo e alma graças às portentosas interpretações do elenco. Temos o caricato inspetor Gustave Dasté (Sacha Baron Cohen), de sorriso raro e forçado e sem aparente coração, que coxeia a armação metálica da sua perna e a sua autoridade por toda a estação, sempre acompanhado pelo seu acutilante dobermann. Sempre que o aparelho encrava, o eco mais constrangedor. A música de Howard Shore reforça especialmente o seu carácter cómico. Só quando cai de amores pela simpática florista lá do sítio acaba por revelar alguma da sua humanidade escondida. Quem lhe escapa a maior parte das vezes é o nosso protagonista, com o qual desenvolvemos uma empatia imediata: Hugo (adorável e promissor Asa Butterfield, de incríveis e espantosos olhos azúis). É como um órfão (os contornos dickensianos da narrativa, aliás, são por demais evidentes): os flashbacks dão-nos conta dos tempos felizes partilhados com o pai falecido (Jude Law), relojoeiro, antes da adoção pelo bêbedo e ausente tio Claude (mais tarde encontrado morto no rio), que o trouxe para a estação e lhe ensinou tudo sobre os relógios tão mecanicamente complexos do local.
You'll be my apprentice (...) I'll teach you how to take care of them clocks. You've finished with school! There'll be no time for that when you're in them walls (...) Time is everything. Everything.
Tio Claude
Há um mistério por desvendar: Hugo herdou do pai um enigmático autómato por consertar, com forma humana, que acredita guardar uma mensagem do seu progenitor. Se conseguir o arranjo (nesta altura ainda ser consertavam coisas, hoje deitamos tudo fora) e as peças que lhe faltam, nomeadamente uma chave em forma de coração algures em parte incógnita, talvez consiga descodificá-lo. I thought if I could fix it... then I wouldn't be so alone. É aí que entra outra das personagens centrais da história: Georges (comovente Ben Kingsley), o velho dono da loja de brinquedos da estação, também ilusionista, a quem o miúdo ousa roubar peças e ferramentas para seu proveito. Todavia, é logo apanhado em flagrante. O velho confisca-lhe o bloco de notas, com esboços e instruções sobre o autómato e, ao vislumbrá-lo, abisma-se, claramente emocionado. Ghosts, afirma. Did you draw these pictures? Did you draw these pictures? Where did you steal this? Adensa-se o suspense. Hugo segue o comerciante até casa, visando recuperar o que é seu, mas sem sucesso. Contudo, conhece-lhe a jovem afilhada, de nome Isabelle (Chloë Grace Moretz), um pouco mais alta do que ele, que se tornará sua amiga e inseparável parceira de investigação.
Maybe that's why a broken machine always makes me a little sad, because
it isn't able to do what it was meant to do... Maybe it's the same with
people. If you lose your purpose... it's like you're broken.
Hugo Cabret
This might be an adventure, and I've never had one before - outside of books, at least. Curioso que Isabelle leia tantos livros e nunca tenha assistido a um filme (o Papá George nunca a deixou ousar, sequer) e que Hugo não os costume ler mas guarde as melhores recordações dessas visões passadas, incutidas pelo pai, anos atrás. Uma das primeiras aventuras dos dois amigos é entrar clandestinamente num cinema e assistir à empolgante escalada de Harold Loyd, prédio acima, no icónico O Homem Mosca, de 1923; o que se traduz numa deliciosa homenagem e piscadela de olho ao filme que inspirará, no último ato, a subida de Hugo à torre do relógio e a sua suspensão - de suster a respiração - no ponteiro do grande relógio. Estava destinado que Hugo encontrasse a chave do autómato, pendurada num fio ao pescoço de Isabelle, e que a máquina esboçasse, qual Sonny no filme de Proyas, um novo enigma: desta feita, um satélite a aterrar na lua, com a assinatura de George Méliès. Golpe de sorte e do destino, novamente: não é Méliès senão o padrinho de Isabelle, dono da loja de brinquedos. Uma gaveta cheia de desenhos e segredos esvoaçantes espera-os, ainda. Méliès foi, afinal, autor de mais de quinhentos filmes! Descobrirão como a chave em forma de coração pode dar vida e alma não só ao autómato, mas a alguém real e a precisar de conserto também há muito tempo.
I'd imagine the whole world was one big machine. Machines never come
with any extra parts, you know. They always come with the exact amount
they need. So I figured, if the entire world was one big machine, I
couldn't be an extra part. I had to be here for some reason. And that
means you have to be here for some reason, too.
Hugo Cabret
Há mais filmes dentro do filme, mise-en-abyme, não só o delírio visual e fantástico de Viagem à Lua (1902). Dimensiona-se a mitologia, em múltiplos posters afixados pelos sets ou na integração de breves trechos de alguns incontornáveis: Saída dos Operários da Fábrica Lumière (1895) e A Chegada do Comboio À Estação Ciotat (1896) dos irmãos Lumière, O Grande Assalto ao Comboio (1903) de Edwin S. Porter, Intolerância (1916) de D. W. Grifith ou O Gabinete do Dr. Caligari (1919), de Robert Wiene, entre muitos outros. O cameo de Scorsese faz-se à la A Caixa Mágica (1951), a chegada do comboio à estação faz-se à la A Fera Humana (1938) - o descarrilamento, no sonho dentro do sonho, é a evocação ao trágico acontecimento que a Montparnasse presenciou em 1985 -, a perseguição final pela espiral das escadas faz-se à la A Mulher Que Viveu Duas Vezes (1958). A Invenção de Hugo é um poço de inesgotáveis, inteligentes e honrosas referências.
Happy endings only happen in the movies, diz às tantas Méliès. Felizmente, estamos num filme, livres para ficcionar o melhor dos finais. Decifrar o segredo do autómato pode não lhe ter trazido, a Hugo, o pai de volta, mas trouxe-lhe uma nova família. Historicamente Méliès terá morrido pouco depois dos acontecimentos do filme, mas ainda assim uma família. A busca de Hugo pela verdade desencadeou a redescoberta de Méliès pelo crítico Tabard (Michael Stuhlbarg) - em certa medida alter-ego de Scorsese - e o seu reconhecimento em vida. Motivou a recuperação de mais de oitenta dos filmes do cineasta, um espólio considerável que se julgava perdido para sempre. Possibilitou o reconforto do coração de Méliès, o reencontro consigo próprio, certamente o achado mais valioso. Nem a esmerada dedicação da mulher Jeane (sentimental Helen McCrory), sua musa e atriz em tantos dos seus filmes, lhe conseguiu compensar, ao longo de tantos anos de retiro e anonimato, o desgosto de ter perdido a sua obra; Méliès chegou a destruir os seus cenários, a queimar as suas películas e outras tantas foram derretidas em químicos para a confeção de calçado, em tempos de guerra.
John Logan (Gladiador, O Aviador ou Sweeney Todd) é o argumentista por detrás da excelente adaptação do livro de Brian Selznick. A narrativa prima pela fluidez, consistência e economia (não há um único momento a mais ou a menos). Acompanhada por uma das melhores bandas sonoras de que há memória, é deslumbrante, inesperada, excitante, enternecedora, ritmada... tudo nas doses certas, com a mesma eficácia e precisão com que um relógio nos dá as horas. Thelma Schoonmaker, sabemo-lo, é das mais brilhantes relojoeiras que o cinema já conheceu - é mestre da montagem como ninguém. Com uma produção destas e profissionais deste elevadíssimo nível - uma extraordinária equipa que colabora com o realizador há anos e anos - não admira que Martin Scorsese nos arrebate com um dos seus melhores filmes.
A Invenção de Hugo é, pois, uma imprescindível obra-prima.
Happy endings only happen in the movies, diz às tantas Méliès. Felizmente, estamos num filme, livres para ficcionar o melhor dos finais. Decifrar o segredo do autómato pode não lhe ter trazido, a Hugo, o pai de volta, mas trouxe-lhe uma nova família. Historicamente Méliès terá morrido pouco depois dos acontecimentos do filme, mas ainda assim uma família. A busca de Hugo pela verdade desencadeou a redescoberta de Méliès pelo crítico Tabard (Michael Stuhlbarg) - em certa medida alter-ego de Scorsese - e o seu reconhecimento em vida. Motivou a recuperação de mais de oitenta dos filmes do cineasta, um espólio considerável que se julgava perdido para sempre. Possibilitou o reconforto do coração de Méliès, o reencontro consigo próprio, certamente o achado mais valioso. Nem a esmerada dedicação da mulher Jeane (sentimental Helen McCrory), sua musa e atriz em tantos dos seus filmes, lhe conseguiu compensar, ao longo de tantos anos de retiro e anonimato, o desgosto de ter perdido a sua obra; Méliès chegou a destruir os seus cenários, a queimar as suas películas e outras tantas foram derretidas em químicos para a confeção de calçado, em tempos de guerra.
John Logan (Gladiador, O Aviador ou Sweeney Todd) é o argumentista por detrás da excelente adaptação do livro de Brian Selznick. A narrativa prima pela fluidez, consistência e economia (não há um único momento a mais ou a menos). Acompanhada por uma das melhores bandas sonoras de que há memória, é deslumbrante, inesperada, excitante, enternecedora, ritmada... tudo nas doses certas, com a mesma eficácia e precisão com que um relógio nos dá as horas. Thelma Schoonmaker, sabemo-lo, é das mais brilhantes relojoeiras que o cinema já conheceu - é mestre da montagem como ninguém. Com uma produção destas e profissionais deste elevadíssimo nível - uma extraordinária equipa que colabora com o realizador há anos e anos - não admira que Martin Scorsese nos arrebate com um dos seus melhores filmes.
A Invenção de Hugo é, pois, uma imprescindível obra-prima.
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