Realização: Martin Scorsese
Principais Actores: Leonardo DiCaprio, Cate Blanchett, Kate Beckinsale, John C. Reilly, Alec Baldwin, Alan Alda, Ian Holm, Danny Huston, Jude Law, Gwen Stefani, Adam Scott, Matt Ross, Kelli Garner, Frances Conroy, Willem Dafoe, Edward Herrmann, Vincent Laresca, Kevin O'Rourke, Stanley DeSantis
Crítica:
O MAGNATA DOS CÉUS
Sometimes, I truly fear that I am losing my mind.
And if I did it... it would be like flying blind.
And if I did it... it would be like flying blind.
Sabido é o meu ponto de vista sobre o cinema: o artístico. Poucos filmes me seduzem tão pouco, por isso, quanto os biográficos: geralmente, quase nada acrescentam à recriação informativa que um documentário facilmente executaria - digo isto sem querer menosprezar o género não-ficcional, que raramente tem pretensões artísticas -, representando um desafio mais ou menos exigente para os actores (na sua imitação das personagens históricas) e pouco mais. Não obstante, quando a incursão cinematográfica se revela um apaixonado e apaixonante exercício de cinefilia e o biopic uma imperiosa obra de arte, creio que a aposta é legitimada, absolutamente meritória, necessária e bem-vinda. O Aviador é um exemplo maior de como fazer de um biopic um objecto derradeiramente artístico e, por isso, totalmente fascinante. Não admira: o homem por detrás da câmera, Martin Scorsese, é um artista, um visionário e um mestre da sua arte - e isso faz toda a diferença.
Na verdade, uma personalidade tão rica, multi-facetada e magnetizante quanto a de Howard Hughes - nas mãos certas -, só poderia resultar numa abordagem tão estimulante e interessante. Como diria a Katherine Hepburn de Cate Blanchett: there's too much Howard Hughes in Howard Hughes; senão vejamos: órfão e herdeiro multi-milionário, ambicioso produtor e realizador de cinema, aviador e pioneiro da aviação, inventor exigente e engenheiro sem diploma, empresário capitalista e revolucionário das viagens aéreas comerciais e transcontinentais, um excêntrico playboy. Um homem à frente do seu tempo, disposto a apostar a sua palavra e a sua fortuna na concretização dos seus grandes sonhos, contra todas as probabilidades, contra todos os detractores, desafiando - sempre - o impossível. Citando o trailer: for some the sky is the limit, for him it was just the beginning. Mas se do pai herdou os milhões, da mãe herdou a misofobia, que se viria a agravar num distúrbio incapacitante e numa doença capaz de o afastar e isolar, de uma vez por todas, da razão, da realidade e do mundo. Apesar de rodeado por milhares de trabalhadores, não foi senão um solitário nervoso, maníaco, obsessivo-compulsivo e ligeiramente surdo, repleto de particularidades. Como tão bem preconiza Hepburn, a dada cena de casa de banho: we're not like everyone else. Too many acute angles. Too many eccentricities. We have to be very careful not to let people in or they'll make us into freaks.
A MÃE, OS GERMES E O PASSADO
No prólogo, as luzes acendem-se, gradualmente. Howard ainda criança, desnudo na banheira, é cuidadosamente lavado pela mãe. O momento, em que os medos e as inseguranças - não os germes - são transmitidos, ressoará em todo o filme. Serão inúmeras as cenas de casa de banho, onde Howard encontrará a intimidade, o seu reflexo e a doentia preocupação com a higiene. Na dita cena com Hepburn, a actriz lava-lhe o sangue e trata-lhe das feridas, após o despenhamento do H-1 Racer num campo de beterrabas. Mais adiante, à medida que as compulsões se vão intensificando, assistimos a dois momentos insólitos, nas luxuosas e verdes casas de banho do Pantages e do mítico Cocoanut Grove: na primeira, Hughes, petrificado pela fobia, recusa uma toalha a um aleijado, enquanto ensaboa os dedos, minuciosamente. Na segunda, esfrega as mãos com tal veemência que até ferida faz e sangra, salpicando a camisa. Quando vai a sair, já de mãos impecáveis, defronta-se com a maçaneta em que todos tocam - um obstáculo sério e inultrapassável, a não ser que aguarde por alguém que lhe abra a porta, entretanto, e o alivie da agonia. O filme fecha, depois, de forma circular e, mais uma vez, numa casa de banho: as luzes apagam-se, gradualmente. Ao espelho, Hughes consigo próprio e com os fantasmas do passado.
O Aviador é, por isto e sobre todas as coisas, um voo assombroso aos meandros mais obscuros da mente de Hughes, assolada pelo desnorte e pelo pavor. Como lhe diz a Ava Gardner de Kate Beckinsale, às tantas: nothing's clean, Howard. But we do our best, right? Não admira, portanto, que no clímax da doença e do filme, em que o homem se tranca na sala de projecção por tempo indeterminado, completamente nu e entregue ao mais puro e assustador desmazelo - deixando crescer o cabelo, a barba e as unhas e coleccionando urina numa fileira de garrafas de leite -, assista a pequenas filmagens do deserto, dizendo: that's just beautiful. Oh, yeah. I like the desert. It's hot there in the desert, but it's clean. It's clean.
As suas fragilidades justificarão, seguramente, a sua constante busca de afecto nas mulheres, com as quais pode partilhar a tão preciosa intimidade. Note-se, por exemplo, o caso de Hepburn: o desejo e o sentimento no cortejo permite que Hughes lhe empreste para as mãos o manche, ainda que por precaução revestido a celofane, depois lhe ofereça a beber leite da mesma garrafa de onde já bebeu e de onde tornará a beber e por fim a toque, a beije e com ela sexualmente se envolva. Hughes procura numa mulher, de certa forma, a imagem da mãe, uma pessoa limpa e higienizada e com a qual possa baixar a guarda da sua paranóia, para seu salutar descanso. Uma pessoa em quem possa confiar as suas particularidades e que possa, preferencialmente, controlar de perto... o que acabará por sufocar e condenar, inevitavelmente, qualquer uma das suas relações.
Mas O Aviador é também uma viagem pelo lado luminoso da personagem. É no céu que Howard Hughes encontra a felicidade genuína. É o sonho - e a sede do amanhã - que sempre o evadem, libertam e revitalizam, tanto da solidão como da enfermidade. E claro, é o dinheiro (a perder de vista) que lhe permite concretizar os seus mais elevados devaneios. Ao mesmo tempo que sonha os céus, mostra-se provido de uma misteriosa força telúrica que o faz superar-se na adversidade e quebrar recordes. É assim quando se torna o homem mais rápido do mundo no brilhante e metálico H-1, de rebites embotados. Quando espera meses por cúmulo-nimbos, para filmar as sequências aéreas d'Os Anjos do Inferno (1930), até então o filme mais caro da História do Cinema. A sua megalomania leva a atrasos e adiamentos vários, a pilhas intermináveis de bobines, a milhões empatados... e quando o filme finalmente fica pronto, eclode o cinema sonoro e Hughes decide refazê-lo, agora com som. Saído do limbo para as luzes da ribalta, a obra torna-se um sucesso de bilheteira e é igualmente aclamada pela crítica. A sua ousadia cinematográfica levá-lo-á ainda a discutir seios e decotes com a censura da época, a propósito da estreia d'A Terra dos Homens Perdidos (1943). Dá a volta ao mundo em três dias, compra a TWA e desafia a hegemonia da Pan Am. Com o seu Constallation voa acima das nuvens, contornando o mau tempo, poupando combustível e permitindo viagens com maior segurança. Da administração dos Estados Unidos e durante a Segunda Guerra Mundial recebe cerca de 56 milhões de dólares para a construção de centenas de XF-11, aviões de espionagem, e para a construção do lendário Hércules, a plane, a boat, a flying city, o maior avião de todos os tempos, capaz de levar as tropas americanas em grande número e de uma só vez, a aterrar na Europa. Contudo, o seu perfeccionismo demora a conclusão da encomenda e a guerra acaba sem que os aviões sejam entregues, o que desencadeia a investigação do FBI e as demoradas audiências no Senado, com que culmina o terceiro acto do filme. Custa a crer que esta seja a vida de um só homem.
Qual Ícaro que, ao aproximar-se demasiado do sol, lhe ardiam as asas, também Howard Hughes não consegue atingir as alturas e o sucesso sem atrair a queda e o desastre. O seu punho de ferro e a sua resiliência, contudo, farão frente a tudo e todos e revelar-se-ão determinantes para o triunfo. A cada queda, cada vez mais mortal, a ressurreição, sempre procurando descolar voo e tornar às alturas, em nome da sua paixão:
Daí o título do filme e as fases da sua vida se apresentarem sempre ligadas a um determinado modelo da aviação, daí Os Anjos do Inferno e outros dos seus filmes conciliarem a sua paixão do cinema com a dos aviões. Daí voar para além da duração recomendada, desencadeando aparatosos e perigosíssimos acidentes. Por capricho, mas também por irresponsável deleite infantil. O acidente no XF-11, sobre todos os outros, queima-lhe a pele, dilacera-lhe o corpo e abala-lhe a alma, irreversivelmente.
Ainda ao espelho e perante os fantasmas do passado - nomeadamente perante a criança que foi -, Hughes recorda a vez em que sonhou o futuro:
Eis, pois, O Aviador como a batalha pessoal e interior, intensa e avassaladora, do indivíduo com estes dois tempos - o passado e o futuro - e a forma como eles tão decisivamente se manifestam e se defrontam, impulsionando o motor do seu presente. Atendendo ao seu próprio presságio, é claro concluir como se sonhou e cumpriu. The way of the future, como o próprio repete compulsivamente nos instantes finais, assegura-lhe um lugar incontornável na História da aviação e uma vida, apesar de instável, plena de vitórias.
A audaciosa visão de Scorsese presta-lhe a mais rasgada homenagem e o mais portentoso elogio. Porém, nas suas mãos, mais do que uma biografia e um drama, mais do que um filme sobre uma doença e sobre o sucesso dos sonhos e negócios de Howard Hughes, O Aviador torna-se um filme sobre o próprio cinema e uma impressionante viagem no tempo à glamorosa Hollywood dos anos 20 e 30, sendo que a acção se prolonga até meados dos anos 40 do século XX. O magnífico trabalho de fotografia de Robert Richardson vive do estupendo controlo da iluminação, da manipulação cromática e dos enquadramentos meticulosos. A respeito das cores, cada década teve direito a uma paleta distinta: na primeira são privilegiados os castanhos, laranjas e azúis (até a relva ou as ervilhas ficam azuladas), conferindo um esplendor vintage aos exteriores d'Os Anjos do Inferno, ao Cocoanut Grove, ao campo de golfe ou à praia. Na segunda década, numa imagem muito mais natural, são introduzidos os amarelos e os verdes (quando Hepburn entra com Hughes pela herdade da família adentro, o contraste é claro). O resultado advém da colaboração com os efeitos digitais, cujos filtros a 2 ou 3 cores processaram e transformaram as filmagens iniciais, tornando O Aviador uma maravilha visual. Os cenários e decoração de Dante Ferretti e Francesca Lo Schiavo, respectivamente, são extraordinários na recriação histórica; não tenhamos dúvidas, são dos melhores profissionais do ramo no seio da indústria. A cada cena, a sonoplastia revela-se excepcional e na música, entre temas clássicos e da época, os temas de Howard Shore sobressaem. Sempre que se ouvem as castanholas e as sonantes, repetitivas e incisivas notas do tema principal, sabemos que brilha na tela a mente de Howard Hughes, criativa e tão sui generis na sua relação com o mundo. Alternando entre datáveis sonoridades radiofónicas e sonoridades mais modernas, vamos avançando de episódio em episódio, ao sabor da organização do argumentista John Logan. A vívida montagem de Thelma Schoonmaker ousa a sobreposição, o split screen e até a prolepse da imagem, enquanto o som ainda nos posiciona na acção presente. São usadas imagens de arquivo, entremeadas pela narração factual, como num documentário. Alguns melhores momentos do filme são de pura mise en abyme, em que o cinema olha para si próprio: Scorsese e Hughes filmam a sequência aérea, concretizando um inspirado bailado de asas. O estilo é assumidamente old fashioned. Visitamos os bastidores da Hollywood da época, as estreias dos filmes, os produtores dos grandes estúdios, as sessões de cinema e a invocação dos clássicos de Hughes, a censura, a sala de projecção, o desfile de estrelas... o faustoso guarda-roupa de Sandy Powell é, continuamente, de um requinte assinalável. A tremenda paixão de Scorsese pela sua arte transborda em cada um dos seus filmes. O Aviador é um dos exemplos mais assumidos. Mas a declaração de amor maior estaria ainda por vir, na deslumbrante e mágica obra-prima que é A Invenção de Hugo.
Dando corpo e alma à biografia, a excelência do elenco: um genial Leonardo Dicaprio (no melhor papel da sua carreira até então e num dos melhores até agora; de uma entrega absolutamente arrepiante e fora-de-série), uma camaleónica Cate Blanchett (completamente rendida ao sotaque e aos maneirismos de Hepburn) e um conjunto de secundários de notável talento: John C. Reilly, Alec Baldwin, Alan Alda, Ian Holm, Matt Ross, Kate Beckinsale, Danny Huston e as participações curtíssimas de Jude Law e Willem Dafoe.
Senão o melhor, seguramente um dos melhores filmes de 2004 e um dos meus preferidos de Scorsese. Grande pedaço de arte.
Na verdade, uma personalidade tão rica, multi-facetada e magnetizante quanto a de Howard Hughes - nas mãos certas -, só poderia resultar numa abordagem tão estimulante e interessante. Como diria a Katherine Hepburn de Cate Blanchett: there's too much Howard Hughes in Howard Hughes; senão vejamos: órfão e herdeiro multi-milionário, ambicioso produtor e realizador de cinema, aviador e pioneiro da aviação, inventor exigente e engenheiro sem diploma, empresário capitalista e revolucionário das viagens aéreas comerciais e transcontinentais, um excêntrico playboy. Um homem à frente do seu tempo, disposto a apostar a sua palavra e a sua fortuna na concretização dos seus grandes sonhos, contra todas as probabilidades, contra todos os detractores, desafiando - sempre - o impossível. Citando o trailer: for some the sky is the limit, for him it was just the beginning. Mas se do pai herdou os milhões, da mãe herdou a misofobia, que se viria a agravar num distúrbio incapacitante e numa doença capaz de o afastar e isolar, de uma vez por todas, da razão, da realidade e do mundo. Apesar de rodeado por milhares de trabalhadores, não foi senão um solitário nervoso, maníaco, obsessivo-compulsivo e ligeiramente surdo, repleto de particularidades. Como tão bem preconiza Hepburn, a dada cena de casa de banho: we're not like everyone else. Too many acute angles. Too many eccentricities. We have to be very careful not to let people in or they'll make us into freaks.
A MÃE, OS GERMES E O PASSADO
No prólogo, as luzes acendem-se, gradualmente. Howard ainda criança, desnudo na banheira, é cuidadosamente lavado pela mãe. O momento, em que os medos e as inseguranças - não os germes - são transmitidos, ressoará em todo o filme. Serão inúmeras as cenas de casa de banho, onde Howard encontrará a intimidade, o seu reflexo e a doentia preocupação com a higiene. Na dita cena com Hepburn, a actriz lava-lhe o sangue e trata-lhe das feridas, após o despenhamento do H-1 Racer num campo de beterrabas. Mais adiante, à medida que as compulsões se vão intensificando, assistimos a dois momentos insólitos, nas luxuosas e verdes casas de banho do Pantages e do mítico Cocoanut Grove: na primeira, Hughes, petrificado pela fobia, recusa uma toalha a um aleijado, enquanto ensaboa os dedos, minuciosamente. Na segunda, esfrega as mãos com tal veemência que até ferida faz e sangra, salpicando a camisa. Quando vai a sair, já de mãos impecáveis, defronta-se com a maçaneta em que todos tocam - um obstáculo sério e inultrapassável, a não ser que aguarde por alguém que lhe abra a porta, entretanto, e o alivie da agonia. O filme fecha, depois, de forma circular e, mais uma vez, numa casa de banho: as luzes apagam-se, gradualmente. Ao espelho, Hughes consigo próprio e com os fantasmas do passado.
O Aviador é, por isto e sobre todas as coisas, um voo assombroso aos meandros mais obscuros da mente de Hughes, assolada pelo desnorte e pelo pavor. Como lhe diz a Ava Gardner de Kate Beckinsale, às tantas: nothing's clean, Howard. But we do our best, right? Não admira, portanto, que no clímax da doença e do filme, em que o homem se tranca na sala de projecção por tempo indeterminado, completamente nu e entregue ao mais puro e assustador desmazelo - deixando crescer o cabelo, a barba e as unhas e coleccionando urina numa fileira de garrafas de leite -, assista a pequenas filmagens do deserto, dizendo: that's just beautiful. Oh, yeah. I like the desert. It's hot there in the desert, but it's clean. It's clean.
As suas fragilidades justificarão, seguramente, a sua constante busca de afecto nas mulheres, com as quais pode partilhar a tão preciosa intimidade. Note-se, por exemplo, o caso de Hepburn: o desejo e o sentimento no cortejo permite que Hughes lhe empreste para as mãos o manche, ainda que por precaução revestido a celofane, depois lhe ofereça a beber leite da mesma garrafa de onde já bebeu e de onde tornará a beber e por fim a toque, a beije e com ela sexualmente se envolva. Hughes procura numa mulher, de certa forma, a imagem da mãe, uma pessoa limpa e higienizada e com a qual possa baixar a guarda da sua paranóia, para seu salutar descanso. Uma pessoa em quem possa confiar as suas particularidades e que possa, preferencialmente, controlar de perto... o que acabará por sufocar e condenar, inevitavelmente, qualquer uma das suas relações.
O CÉU, O DINHEIRO E A TENDÊNCIA DO FUTURO
Mas O Aviador é também uma viagem pelo lado luminoso da personagem. É no céu que Howard Hughes encontra a felicidade genuína. É o sonho - e a sede do amanhã - que sempre o evadem, libertam e revitalizam, tanto da solidão como da enfermidade. E claro, é o dinheiro (a perder de vista) que lhe permite concretizar os seus mais elevados devaneios. Ao mesmo tempo que sonha os céus, mostra-se provido de uma misteriosa força telúrica que o faz superar-se na adversidade e quebrar recordes. É assim quando se torna o homem mais rápido do mundo no brilhante e metálico H-1, de rebites embotados. Quando espera meses por cúmulo-nimbos, para filmar as sequências aéreas d'Os Anjos do Inferno (1930), até então o filme mais caro da História do Cinema. A sua megalomania leva a atrasos e adiamentos vários, a pilhas intermináveis de bobines, a milhões empatados... e quando o filme finalmente fica pronto, eclode o cinema sonoro e Hughes decide refazê-lo, agora com som. Saído do limbo para as luzes da ribalta, a obra torna-se um sucesso de bilheteira e é igualmente aclamada pela crítica. A sua ousadia cinematográfica levá-lo-á ainda a discutir seios e decotes com a censura da época, a propósito da estreia d'A Terra dos Homens Perdidos (1943). Dá a volta ao mundo em três dias, compra a TWA e desafia a hegemonia da Pan Am. Com o seu Constallation voa acima das nuvens, contornando o mau tempo, poupando combustível e permitindo viagens com maior segurança. Da administração dos Estados Unidos e durante a Segunda Guerra Mundial recebe cerca de 56 milhões de dólares para a construção de centenas de XF-11, aviões de espionagem, e para a construção do lendário Hércules, a plane, a boat, a flying city, o maior avião de todos os tempos, capaz de levar as tropas americanas em grande número e de uma só vez, a aterrar na Europa. Contudo, o seu perfeccionismo demora a conclusão da encomenda e a guerra acaba sem que os aviões sejam entregues, o que desencadeia a investigação do FBI e as demoradas audiências no Senado, com que culmina o terceiro acto do filme. Custa a crer que esta seja a vida de um só homem.
Qual Ícaro que, ao aproximar-se demasiado do sol, lhe ardiam as asas, também Howard Hughes não consegue atingir as alturas e o sucesso sem atrair a queda e o desastre. O seu punho de ferro e a sua resiliência, contudo, farão frente a tudo e todos e revelar-se-ão determinantes para o triunfo. A cada queda, cada vez mais mortal, a ressurreição, sempre procurando descolar voo e tornar às alturas, em nome da sua paixão:
I care very much about aviation. It has been the great joy of my life. That's why I put my own money into these planes. And I've lost millions (...) and I'll go on losing millions. It's just... what I do.
Daí o título do filme e as fases da sua vida se apresentarem sempre ligadas a um determinado modelo da aviação, daí Os Anjos do Inferno e outros dos seus filmes conciliarem a sua paixão do cinema com a dos aviões. Daí voar para além da duração recomendada, desencadeando aparatosos e perigosíssimos acidentes. Por capricho, mas também por irresponsável deleite infantil. O acidente no XF-11, sobre todos os outros, queima-lhe a pele, dilacera-lhe o corpo e abala-lhe a alma, irreversivelmente.
Ainda ao espelho e perante os fantasmas do passado - nomeadamente perante a criança que foi -, Hughes recorda a vez em que sonhou o futuro:
When I grow up, I'm gonna make the biggest movies, fly the fastest planes ever built and be the richest man in the world.
Eis, pois, O Aviador como a batalha pessoal e interior, intensa e avassaladora, do indivíduo com estes dois tempos - o passado e o futuro - e a forma como eles tão decisivamente se manifestam e se defrontam, impulsionando o motor do seu presente. Atendendo ao seu próprio presságio, é claro concluir como se sonhou e cumpriu. The way of the future, como o próprio repete compulsivamente nos instantes finais, assegura-lhe um lugar incontornável na História da aviação e uma vida, apesar de instável, plena de vitórias.
A audaciosa visão de Scorsese presta-lhe a mais rasgada homenagem e o mais portentoso elogio. Porém, nas suas mãos, mais do que uma biografia e um drama, mais do que um filme sobre uma doença e sobre o sucesso dos sonhos e negócios de Howard Hughes, O Aviador torna-se um filme sobre o próprio cinema e uma impressionante viagem no tempo à glamorosa Hollywood dos anos 20 e 30, sendo que a acção se prolonga até meados dos anos 40 do século XX. O magnífico trabalho de fotografia de Robert Richardson vive do estupendo controlo da iluminação, da manipulação cromática e dos enquadramentos meticulosos. A respeito das cores, cada década teve direito a uma paleta distinta: na primeira são privilegiados os castanhos, laranjas e azúis (até a relva ou as ervilhas ficam azuladas), conferindo um esplendor vintage aos exteriores d'Os Anjos do Inferno, ao Cocoanut Grove, ao campo de golfe ou à praia. Na segunda década, numa imagem muito mais natural, são introduzidos os amarelos e os verdes (quando Hepburn entra com Hughes pela herdade da família adentro, o contraste é claro). O resultado advém da colaboração com os efeitos digitais, cujos filtros a 2 ou 3 cores processaram e transformaram as filmagens iniciais, tornando O Aviador uma maravilha visual. Os cenários e decoração de Dante Ferretti e Francesca Lo Schiavo, respectivamente, são extraordinários na recriação histórica; não tenhamos dúvidas, são dos melhores profissionais do ramo no seio da indústria. A cada cena, a sonoplastia revela-se excepcional e na música, entre temas clássicos e da época, os temas de Howard Shore sobressaem. Sempre que se ouvem as castanholas e as sonantes, repetitivas e incisivas notas do tema principal, sabemos que brilha na tela a mente de Howard Hughes, criativa e tão sui generis na sua relação com o mundo. Alternando entre datáveis sonoridades radiofónicas e sonoridades mais modernas, vamos avançando de episódio em episódio, ao sabor da organização do argumentista John Logan. A vívida montagem de Thelma Schoonmaker ousa a sobreposição, o split screen e até a prolepse da imagem, enquanto o som ainda nos posiciona na acção presente. São usadas imagens de arquivo, entremeadas pela narração factual, como num documentário. Alguns melhores momentos do filme são de pura mise en abyme, em que o cinema olha para si próprio: Scorsese e Hughes filmam a sequência aérea, concretizando um inspirado bailado de asas. O estilo é assumidamente old fashioned. Visitamos os bastidores da Hollywood da época, as estreias dos filmes, os produtores dos grandes estúdios, as sessões de cinema e a invocação dos clássicos de Hughes, a censura, a sala de projecção, o desfile de estrelas... o faustoso guarda-roupa de Sandy Powell é, continuamente, de um requinte assinalável. A tremenda paixão de Scorsese pela sua arte transborda em cada um dos seus filmes. O Aviador é um dos exemplos mais assumidos. Mas a declaração de amor maior estaria ainda por vir, na deslumbrante e mágica obra-prima que é A Invenção de Hugo.
Dando corpo e alma à biografia, a excelência do elenco: um genial Leonardo Dicaprio (no melhor papel da sua carreira até então e num dos melhores até agora; de uma entrega absolutamente arrepiante e fora-de-série), uma camaleónica Cate Blanchett (completamente rendida ao sotaque e aos maneirismos de Hepburn) e um conjunto de secundários de notável talento: John C. Reilly, Alec Baldwin, Alan Alda, Ian Holm, Matt Ross, Kate Beckinsale, Danny Huston e as participações curtíssimas de Jude Law e Willem Dafoe.
Senão o melhor, seguramente um dos melhores filmes de 2004 e um dos meus preferidos de Scorsese. Grande pedaço de arte.
O melhor papel de Leonardo di Caprio :D
ResponderEliminarCor excelente, bons cenários, um filme memorável.
Pois com o Scorcese não posso dizer que alinho sempre, aliás poucas vezes mesmo. Reconheço-lhe as qualidades mas os argumentos estão ou são sempre muito biográficos, realistas e por isso pouco emocionais. Pelo menos para me cativar. Pode ser que mude com o tempo e maturidade.
ResponderEliminarEste não é um mau filme, mas cansa-me sinceramente. E o melhor, para mim, é mesmo a interpretação de DiCaprio. Muito boa.
abraço
Dou mérito a esta tentativa de Scorcese, que para mim é um filme bastante interessante (e certamente melhor a meu ver com o razoável "Million Dollar Baby"). Salva-se DiCaprio que para mim é bom (um pouco acima do razoável aliás e não mais que isso, eu tendo a não ir com a cara de actores que racionalizam muito quando interpretam pessoas com deficiências, doenças, distúrbios ou problemas mentais - ver como exemplo Hanks, "Forrest Gump" ou Penn, "I Am Sam"; em prova em contrário, temos Julie Christie em "Away From Her" ou Judi Dench em "Iris"). De resto, boa fotografia de facto e um bom argumento.
ResponderEliminarMuito sinceramente, tirando "The Departed" (mas esse também, com o material original - um filme fora de série, não é - era impossível não ser um sucesso), acho que Scorcese está a perder um pouco o jeito. Se bem que "Gangs of New York" ou "The Aviator" seriam filmes que muitos realizadores gostariam de ter no currículo.
Abraço.
Jorge Rodrigues
http://dialpforpopcorn.blogspot.com
Já eu, contrariamente às minhas expectativas, adorei este O Aviador.
ResponderEliminarNão sendo mereçedor de 5 estrelas, é ainda assim um grande filme repleto de fabulosos momentos de Cinema.
Curiosamente, gosto muito mais do Scorsese recente do que do antigo.
Gangs de Nova Iorque continua a ser o meu filme favorito.
Abraço
YIRIEN: Um dos melhores, certamente. O seu desempenho em DIAMANTE DE SANGUE é, porventura e na minha opinião até à data, o melhor de todos. De resto, estou absolutamente de acordo ;)
ResponderEliminarJORGE: Há uma certa frieza em Scorsese, isso é notório. Mas essa característica não é um defeito (é claro que o pode ser em função do gosto do espectador, evidentemente). A interpretação de DiCaprio é de facto fabulosa, agora de cansativo é que o filme não tem nada! É um exercício fascinante do princípio ao fim.
JORGE RODRIGUES: Não concordo em relação à tua opinião acerca de DiCaprio. Aliás, penso que o seu talento é mais do que evidente. Discordo totalmente da tua opinião no que se refere à representação de Hanks em FORREST GUMP, de Penn em I AM SAM e de DiCaprio neste O AVIADOR.
E desta vez, para variar, discordo também que Scorsese venha a perder qualidade ou vigor. Aqui e ali tem-se tornado mais mainstream, nisso estaremos porventura de acordo, mas não creio que tenha perdido qualidade. Aliás, as suas últimas obras têm sido assaz extraordinárias.
JACKIE BROWN: Pois, na verdade não esperava que gostasses do filme. É claro que não poderei concordar com outra nota para o filme senão a máxima.
Cumps.
Roberto Simões
» CINEROAD - A Estrada do Cinema «
É o meu filme preferido de Martin Scorsese. O Aviador é uma obra-prima, tão obsessiva quanto imaculada, tecnicamente soberba, genialmente vivida (e não interpretada) por um extraordinário elenco.
ResponderEliminarTIAGO RAMOS: Finalmente, alguém que concorda comigo. Obra-prima, sim! Genial. Gostei da hipérbole quanto às interpretações ;)
ResponderEliminarCumps.
Roberto Simões
» CINEROAD - A Estrada do Cinema «
Uma das obras-primas de Scorsese. Filme fantástico.
ResponderEliminarMUITO BOM! Adorei o papel de neurotico e maniaco de L.D!
ResponderEliminarhttp://cinemaschallenge.blogspot.com/
WALLY: Mais alguém com a minha opinião ;) Subscrevo inteiramente.
ResponderEliminarANDREIA MANDIM: Bem-vinda ao CINEROAD ;) Já somos dois, também adorei.
Cumps.
Roberto Simões
» CINEROAD - A Estrada do Cinema «
Hmm talvez seja altura de eu revisitar o filme. Já o vi há algum tempo e pode ser que me tenha falhado qualquer coisa que vocês viram e eu não vi.
ResponderEliminarE Roberto, eu concordo plenamente, o DiCaprio tem talento, aliás eu não disse nada em contrário. Só disse que achei que não o achava assim tão fantástico quanto vocês neste filme.
Pois e eu estive a ver as tuas críticas ao Forrest Gump e ao I Am Sam e de facto nós discordamos bastante das interpretações.
Quanto ao Scorcese... Não é da questão do mainstream, que eu até acho que ele faz bem. É só que há qualquer coisa na realização dele que me parece bastante diferente dos filmes mais antigos dele, que não sei bem dizer o que é, mas que me faz gostar mais do Scorcese dos anos 80 e 90 do que de agora.
Já agora, as minhas notas à filmografia de Scorcese esta década, a título de curiosidade:
- Gangs of New York, B
- The Aviator, B/B+
- The Departed, A-
- Shutter Island, B/B-
Há em todos detalhes que eu apreciei imenso e gosto da forma como ele vai variando na sua maneira de filmar. Mas ainda assim só o THE DEPARTED é que se mantém, para mim, como um dos melhores da década. Gosto do Gangs (mas Cameron Diaz estava completamente errada para o papel, embora Day-Lewis seja de facto brilhante) e como disse dou bastante mérito a este esforço do Scorcese - um dos melhores biopics da década, seguramente. Já o Shutter Island... Acho que não foi tão bom como devia ter sido porque o Scorcese se focou demasiado no livro no qual se baseia o filme.
Abraço,
Jorge Rodrigues
http://dialpforpopcorn.blogspot.com
JORGE RODRIGUES: Revisite a obra, então. É sempre um prazer incomensurável rever tamanha obra-prima, tamanha obra de arte.
ResponderEliminarNão partilhamos a mesma opinião nem sobre a qualidade e valor dessas interpretações nem sobre a carreira recente de Scorsese, se bem que ainda não vi SHUTTER ISLAND (a crítica por cá chegará em Setembro, veremos se concordarei contigo).
A Cameron Diaz pode não ter grandes escolhas na carreira, mas está bem neste filme. Discordo da maioria das opiniões, muitas delas só pelo facto de Diaz não ser uma actriz de elite põem-na de parte automaticamente quando integra grandes produções como GANGS DE NOVA IORQUE. Mas para discutir este assunto recomendo a ficha do filme GANGS, por forma a condensarmos sempre os debates e discussões em sítio próprio.
Cumps.
Roberto Simões
» CINEROAD - A Estrada do Cinema «
Nova crítica publicada a 03/04/2017.
ResponderEliminarCINEROAD