sábado, 2 de abril de 2011

O FABULOSO DESTINO DE AMÉLIE (2001)

PONTUAÇÃO: EXCELENTE
★★★★★
Título Original: Le Fabuleux Destin D'Amélie Poulain
Realização: Jean-Pierre Jeunet
Principais Actores: Audrey Tautou, Mathieu Kassovitz, Rufus, Lorella Cravotta, Serge Merlin, Jamel Debbouze, Clotilde Mollet, Claire Maurier, Isabelle Nanty, Dominique Pinon, Artus de Penguern, Yolande Moreau

Crítica:

A VIDA É UM MILAGRE

Les temps sont durs pour les rêveurs.

O Fabuloso Destino de Amélie é um daqueles raros, preciosos e apaixonantes filmes capazes de mudar uma vida. Uma comédia genuína, excêntrica e original, sobre os simples prazeres do dia-a-dia. Por intermédio da contagiante e encantatória composição de Yann Tiersen, deixa-se docemente invadir... pela melancolia, pela nostalgia da infância e pela solidão trágica do ser humano. É cinema em estado puro, de irrepreensível sofisticação técnica, visual e narrativa. Um universo mágico, repleto de cores e de fantasia, dotado de memoráveis performances, onde o pequeno fait divers encontra uma dimensão hilariante e universal. Onde a bondade e a humildade, no fim de contas, renovam a esperança no ser humano. Genial, a obra-prima de Jean-Pierre Jeunet, com uma adorável e carismática Audrey Tautou no papel principal.

A pequena e graciosa Amélie (Flora Guiet) acompanha-nos nos créditos iniciais: colando a boca e o nariz aos vidros, fazendo brincos com cerejas, pintando de bonecos, o queixo e as mãos. Os prazeres da infância, nas muralhas em dominó, que ao mais simples toque ou sopro se destroem, a música que nasce dos dedos, à volta sobre a boca dos copos de cristal, o barulho do chupar das palhinhas, o assobio com as folhas de árvore, o descolar das peles de cola dos dedos, o soprar das serpentinas, o rodar das moedas sobre a mesa, o comer das amoras, uma a uma enfiadas nos dedos. Ainda nos lembramos nós do que foi sermos crianças? Desde logo e por identificação, Amélie invoca em nós, espectadores, a memória e a recordação.

Desde o prólogo, que antecede os créditos, e até ao final da obra, a narração - pilar tão fundamental neste filme. Omnisciente, a voz de André Dussollier introduz - de uma forma tão peculiar e com um detalhe e precisão notáveis - as mais variadas e caricatas personagens. Amélie é sobretudo um filme de personagens e é através da sua pluralidade que a mensagem do filme sai enriquecida. Para apresentar a sua protagonista, no presente diegético, o narrador recua e principia no momento da concepção:


Le 3 Septembre 1973 à 18 heures, 28 minutes et 32 seconds, une mouche bleue de la famille des Calliphoridés pouvant produire 14670 battements d'ailes la minute se posait rue Saint-Vincent, à Montmartre. A la même seconde, à la terrasse d'un restaurant, le vent s'engouffrait sous une nappe, faisant danser les verres sans que personne ne s'en aperçoive. Au même instant, au 5e étage du 28, avenue Trudaine dans le 9e, Eugène Koler, après l'enterrement de son ami, Émile Maginot, en effaçait le nom de son carnet d'adresse. Toujours à la même seconde, pourvu d'un chromosome X de M. Raphaël Poulain atteignait l'ovule de Mme Poulain, née Amandine Fouet. 9 mois plus tard naissait Amélie Poulain.

Depois, descreve os ambientes e as personagens (reais ou imaginárias) que figuraram no passado de Amélie. Começa, pois, por falar dos pais da menina. Permitam-me, a propósito, a irresistível e bem humurada paráfrase: Raphaël Poulain (Rufus), o pai de Amélie, não gosta: de urinar com alguém ao lado, de um olhar de desdém sobre as suas sandálias, sair de água e sentir o fato-de-banho colado. Raphaël Poulain gosta: de arrancar bocados inteiros do papel de parede, de alinhar e polir os seus sapatos, de esvaziar, limpar e tornar a arrumar a sua caixa de ferramentas. Amandine Fouet (Lorella Cravotta), mãe de Amélie, não gosta: que os dedos fiquem enrugados pela água quente do banho, que alguém de que não goste lhe toque ao de leve na mão, de acordar com as marcas dos lençóis no rosto. Amandine Fouet gosta: dos fatos de patinagem artística que vê na televisão, de pôr o soalho a brilhar com o suor dos seus chinelos, de esvaziar, limpar e tornar a arrumar a sua mala.

Amélie teve uma infância solitária. A sua personalidade presente não é senão o reflexo dessa vivência especial e concreta: o pai, médico militar, nunca lhe expressou afecto. A intimidade excepcional de uma das habituais consultas entre pai e filha até fez com que o seu juvenil coração disparasse. Tanto, que Raphaël se convenceu de que a filha sofria de anomalia cardíaca. Por isso, nunca foi à escola, nunca se relacionou com crianças da sua idade. A nervosa da mãe, nada afectuosa também, acabou por ser a sua professora. Até Cachalot, o alaranjado peixe lá de casa, se tornou neurasténico e suicida com tamanho mau ambiente. O escape de Amélie era a fantasia, a Kodak instantânea que a mãe lhe oferecera e os conflitos com os vizinhos que, tão convictamente, levava a cabo. Quando um turista se atira das alturas da Notre Dame e cai bizarramente sobre Amandine Fouet, Amélie fica órfã de mãe. Até crescer e sair de casa, viverá com a irremediável apatia do pai e com o confortável silêncio do seu ursinho de peluche.


Amélie Poulain gosta: de se virar para trás no cinema e ver a cara dos outros espectadores, de notar os pormenores, na tela, nos quais mais ninguém repara, dos antigos filmes americanos onde os condutores dos automóveis nem olham para a estrada enquanto guiam, de afundar a mão nas sacas de sementes, de partir o leite queimado com a ponta da colher, de coleccionar pedrinhas para fazer ricochetes na água.

C'est l'angoisse du temps qui passe qui nous fait tant parler du temps qu'il fait.

La vie n'est qu'une interminable répétition d'une représentation qui n'aura jamais lieu.
Hipolito

Paris, bairro de Montmartre, 1997. Amélie não é uma jovem especial. Não será vítima da tragédia nem do sucesso. Divide a sua simples e humilde existência entre os afazeres de casa, o trabalho no Café des Deux Moulin e os sonhos mais mirabolantes, na parafernália da cidade ou na quietude do seu quarto. Em seu redor, os mais vulgares exemplares da espécie humana: Suzanne, a patroa e proprietária do estabelecimento, é coxa mas jamais entornou um copo. A eficiente Gina gosta de estalar os dedos e de testar a bondade dos outros através de provérbios. Georgette tem a mania das doenças, Joseph gosta de reventar bolhas de plástico e Hipólito é um poeta fatalista e falhado. Philomene é assistente de bordo e gosta de ouvir o bater da taça do gato sobre o chão. Será a cúmplice de Amélie nos passeios internacionais do gnomo de Raphaël Poulain pelos quatro cantos do mundo. É esta riqueza e pormenor na descrição das mais variadas personagens que é deveras apaixonante. Ao nível da comédia e sempre acompanhadas por flashbacks (tantos deles a preto e branco), revelam uma eficácia tremenda. No rol de habitués do bairro, faltam ainda o mal-disposto e resmungão Sr. Collignon, proprietário da mercearia da esquina (também ele, mais tarde, alvo do Zorro justiceiro de Amélie) e o coitado do cretin Lucien, sempre alvo das rimas fanfarronas do patrão. Felizmente, e por contraste, é um eterno bem-disposto e, ainda que não directamente, é capaz de gozá-lo à altura: Collignon, crêpe-chignon! Collignon, face de fion! Collignon, tête à gnon!

O dia 30 de Agosto de 1997 traz pela televisão - sempre a televisão - a chocante notícia da morte da Lady Di. A vida mais ou menos inconsequente de Amélie mudaria, então, para sempre. O ímpeto da notícia faz com que Amélie deixe cair a tampa do perfume, que descobrirá num esconderijo do rodapé uma misteriosa caixa de lembranças de infância. Às 4 da manhã do dia 31, tem uma ideia luminosa: esteja onde estiver, encontrará o dono da caixa e devolver-lhe-á o seu tesouro. Se isso o comover, está decidido: intrometer-se-á na vida dos outros.

Na demanda em busca de Dominique Bretodeau, o legítimo dono da caixa, como descobrirá mais tarde, conhecerá a chorosa Madeleine Wallace (magistral Yolande Moreau), cujo cão petrificou à espera do dono desaparecido há décadas, os pais do merceeiro Collignon e o eterno falsificador de Renoir, Raymond Dufayel (Serge Merlin), l'homme de verre, com o qual partilhará as mais deliciosas cassetes de vídeo.

C'est drôle la vie. Quand on est gosse, le temps n'en finit pas de se trainer, et puis du jour au lendemain on a comme ça 50 ans. Et l'enfance tout ce qui l'en reste ça tient dans une petite boite. Une petite boite rouillée.
Dominique Bretodeau

Bretodeau emociona-se bastante ao reencontrar a sua caixa. É precisamente da mesma natureza, o sentimento que nos invade ao reconhecermos ou compararmos a nossa infância naquelas imagens. Dado o sucesso da sua missão, Amélie avança então no sentido de se intrometer na vida das pessoas à sua volta, proporcionando-lhe felicidade. A sua missão não é, repare-se, salvar o mundo, nem sequer o seu bairro. É tão-somente a de trazer um sorriso a quem se cruzar com ela; fosse essa a missão de todos nós, ainda que num só dia por ano. O cego: Amélie encontra um cego a escutar a solidão nos versos de Piaf, na estação do metropolitano. Cena memorável, a que se segue: Amélie dá-lhe o braço e atravessa com ele a rua, descrevendo-lhe tudo aquilo que vê, tal é a euforia que sente em poder ajudar os outros. Uma luz divina desce sobre aquele homem, quando ela o deixa, como que metaforizando a nobreza do gesto. No café, servirá de cupido entre Joseph e Georgette. O estabelecimento até estremecerá, tão comicamente, ao ritmo do sexo que se pratica contra a porta do W.C..

Uma felicidade imensa compensa o altruísmo de Amélie. Ela sente-a por dentro. Contudo, ao chegar a casa, vê espelhado no televisor o reflexo da sua solidão. Adagio for Strings potencia a atmosfera desoladora. É uma boa samaritana, uma Madre Teresa de Calcutá. É uma jovem bonita e adorável, mas está só. Porque não arrisca Amélie a sua própria felicidade?

Raymond Dufayel: [sobre a misteriosa rapariga do copo de água, no Le Déjeuner des Canotiers] Autrement dit, elle préfère s'imaginer une relation avec quelqu'un d'absent, plutôt que de créer des liens avec ceux qui sont présents.
Amélie: Non, p'têtre même qu'au contraire elle se met en quatre pour arranger les cafouillages de la vie des autres.
Raymond Dufayel: Mais elle, et les cafouillages de la sienne, de vie, qui va s'en occuper?
Amélie: Bin en attendant, mieux vaut se consacrer aux autres qu'à un nain de jardin!


Ao passar pelo photomaton do metro, um dia, Amélie vislumbra, pela primeira vez, Nino Quincampoix (Mathieu Kassovitz). É o destino, avança o narrador. Já em pequenos comunicavam sem se conhecerem, cada um na sua janela e com o seu espelho brilhante. Nino divide a sua existência entre a feira de diversões, na Casa Fantasma, e o trabalho numa sex shop. Não é um galã rico e bonitão, é um jovem comum que gosta de coleccionar as fotografias rasgadas dos photomatons num álbum já impressionante. É precisamente nos photomatons, pelo metro ou na Gare d'Lest, que Amélie o reencontrará, num outro dia em que Nino perderá o seu precioso álbum em busca do enigmático L'inconnu des photomatons. Será Amélie quem ficará com ele e que, assim, terá a oportunidade ou a desculpa perfeita para se aproximar de Nino, escapando à timidez e ultrapassando os seus medos e inseguranças. É a oportunidade para ser feliz, como merece.

La chance, c'est comme le Tour de France: on l'attend longtemps et ça passe vite!


Voilà, ma petite Amélie, vous n'avez pas des os en verre. Vous pouvez vous cogner à la vie. Si vous laissez passer cette chance, alors avec le temps, c'est votre cœur qui va devenir aussi sec et cassant que mon squelette. Alors, allez y, nom d'un chien!
Raymond Dufayel

Um jogo de escondidas vai começar; como Amélie é perita nestas brincadeiras. O romantismo ganha aqui uma pureza infantil. O encontro desejado entre os dois acontecerá inesperadamente e com uma beleza e ternura indescritíveis. Abre-se a porta e nem uma palavra. Apenas o olhar apaixonado... Amélie envolve-se, subtilmente, naquela delicada sequência de beijinhos... no canto do lábio, no pescoço, no sobrolho... depois, é Nino quem repete os beijos subtis. Não há palavras para descrever um clímax desta sensibilidade... Não há muitos filmes românticos assim, estou certo.

Amélie a soudain le sentiment étrange d'être en harmonie totale avec elle-même. Tout est parfait en cet instant: la douceur de la lumière, ce petit parfum dans l'air, la rumeur tranquille de la ville. Elle inspire profondément et la vie lui parait alors si simple et si limpide, qu'un élan d'amour, comme un désir d'aider l'humanité entière, la submerge tout à coup.

Zooms, chariots, os mais variados split screens, fast motion, e toda uma variedade de técnicas numa câmera em movimento constante. A exímia montagem de Hervé Schneid junta-se à criatividade sem limites de Jeunet, na marcação de um ritmo imparável e imprevisível. A mise-en-scène, tratada ao pormenor, alia-se magistralmente ao jogo de cores e de luzes da belíssima fotografia de Bruno Delbonnel. Excepcional, toda a concepção artística dos cenários e da decoração (Aline Bonetto, Volker Shäfer, Marie-Laure Valla). Não admira, pois, que assistir a O Fabuloso Destino de Amélie se torne uma experiência tão arrebatadora. Amélie é um sublime pedaço de arte e um milagre de filme! C'est tout.

14 comentários:

  1. Adorei. :D

    Excelente interpretação de Audrey Tautou, com um grande argumento e uma excelente banda sonora do Fabuloso Yann Tiersen.
    Para ver uma, duas e três vezes :p

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  2. Filme simpático ao extremo. Audrey Tautou cria uma personagem única.

    Abraço

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  3. Este é o meu filme favorito de sempre. Estou agora curiosa para ver a tua critica ;)
    Bjks

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  4. Já vi este filme. Adorei. A visão peculiar sobre a vida é fabulosa.
    Frank and Hall's Stuff

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  5. Não apenas um filme lindo, mas com alta qualidade, no argumento, nas interpretações, uma banda sonora fabulosa e, para mim especialmente, com fotografia quase magica.
    Sem duvida um clássico do cinema francês.

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  6. Por isso e muito mais "O Fabuloso destino de Amélie Poulain" é meu filme favorito, não por ser o melhor de todos, mas por esse brilho, delicadeza, amor e toda onda de sentimentos e emoções indescritível que me atingem ao assistir essa bela obra de arte, além de uma certa identificação com a personagem principal.

    Excelente texto, conseguiu descrever momentos únicos para mim. =)

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  7. MIGUEL: Quatro, cinco... é o filme de uma vida, ou um dos. Magnífico a todos os níveis. Grande Jeunet.

    HUGO: "Simpático" sem dúvida, mas dizer "simpático" será sempre pouco.

    GEMA: Aqui está a crítica, já disponível. É, também, um dos filmes da minha vida.

    BRUNO CUNHA: Como o próprio título adiante, é sem dúvida "fabuloso". Um dos meus filmes de eleição, um pedaço do éter.

    STONEZINHA: Bem-vinda ao CINEROAD! Há magia que sobre nesta obra-prima. Deslumbrante e radiosa. Volte sempre.

    CAROL: Bem-vinda ao CINEROAD! Obrigadíssimo ;) É curioso perceber como AMÉLIE arrasta um clube de fãs imenso e é o filme preferido de muitos. Genial. Volte sempre.

    Roberto Simões
    CINEROAD

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  8. Não é dos meus filmes preferidos, talvez em 2001 nem no meu top-5 estaria, mas é daqueles que melhores memórias tenho. É simplesmente encantador. E a Audrey Tautou é brilhante. Tanto é que nunca nada do que fará no pós-AMÉLIE vai apagar esta interpretação. Deve ter falhado por pouco a lista de nomeados da Academia.

    Cumprimentos,

    Jorge Rodrigues

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  9. JORGE RODRIGUES: Penso que Audrey Tautou desempenhou a sua Amélie com uma espontaneidade notável. Penso que o papel só beneficiou com isso. Outra actriz no papel dificilmente traria este encanto, este olhar inocente e simultaneamente malicioso.

    Roberto Simões
    CINEROAD

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  10. Eu sabia que te ias render, é simplesmente magnifico :D

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  11. GEMA: Esta é a nova crítica, mas sempre o classifiquei com EXCELENTE. Delicioso.

    Roberto Simões
    CINEROAD

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  12. Semana que vem estarei em Montmartre, vou revê-lo antes disso.

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  13. ENALDO: Terá sempre um Montmartre postal neste AMÉLIE ;) O que acha desse filme de Jeunet?

    Roberto Simões
    » CINEROAD «

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