domingo, 5 de fevereiro de 2017

SINÉDOQUE, NOVA IORQUE (2008)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
★★★
Título Original: Synecdoche, New York
Realização: Charlie Kaufman
Principais Actores: Philip Seymour Hoffman, Catherine Keener, Michelle Williams, Samantha Morton, Jennifer Jason Leigh, Tom Noonan, Emily Watson, Hope Davis, Dianne Wiest, Deirdre O'Connell

Crítica:

O GRANDE ENSAIO 

The end is built into the beginning.

À primeira tentativa, Sinédoque, Nova Iorque adormeceu-me. Não terei assistido a mais do que quinze, vinte minutos, na verdade, e depois esteve na prateleira, na companhia de outros tantos títulos, durante seis ou sete anos. Até que, finalmente, me voltou a chamar. Ensonou-me não porque se tratasse necessariamente de um filme mau - quantos não são os factores que nos levam a adormecer. Os filmes de Malick, que tanto adoro, por exemplo, embalaram-me já um par de vezes - inebriam-me, o que posso fazer, mexem com o meu subconsciente. E suspeito que, tendencialmente e com os anos, o sucedido me virá a acontecer ainda mais vezes. Ter-me-ia então, o filme, efetivamente aborrecido? Não seria de estranhar: Caden Cotard (brilhante interpretação de Philip Seymour Hoffman) é, provavelmente, a personagem mais aborrecida e deprimida de que há memória. Não, certamente que não: Caden Cotard é, para o espectador, uma criação por demais rica, enigmática e fascinante. Cessarei, por isso, de tentar culpar o filme, até porque o fait diver de ter adormecido não é mais do que isso, um fait diver - pessoal e sem qualquer importância. O que importa é que, atendendo ao chamamento, vi o filme. E fiquei maravilhado: é extraordinário. Não tardará a chamar-me mais vezes. Conto ficar acordado.

Quem é Caden Cotard e sobre o que fala o filme? Bem, Caden é um encenador de teatro, casado e com uma filha. Vive rodeado de gente, no entanto está mergulhado na solidão e à beira do abismo - e assim viverá toda a vida. Sem qualquer resquício de amor-próprio, é convictamente aborrecido, deprimido, falhado, frustrado, desesperançado, paranóico e hipocondríaco (corre todos os médicos e especialidades, tem todos os sintomas e mais alguns e urina ou defeca sangue com alguma regularidade - quando não o faz certamente que imagina que sim). É incapaz de exprimir sentimentos ou sensações genuínas, já quase que não saliva ou lacrimeja e tem que estimular o corpo nesse sentido, não vá secar-lhe a alma. É mau marido, mau pai, faz terapia de casal e individual, lê livros de auto-ajuda e jornais (nos quais apenas destaca as más notícias e os obituários) e é obsessivo com as limpezas e com o trabalho. Revê-se nos reclames da televisão e até nos desenhos animados, nas situações mais indesejadas. É o centro do mundo, os arredores e a totalidade. Pintado este quadro, não admira que não divirta nada nem ninguém, que todos se fartem dele e que venha a tentar o suicídio. É masoquista, não sabe ser de outra forma, gostaria de ser de outra forma, mas nada faz para isso. A sua melhor definição é capaz de ser a que Millicent Weems, personagem de Dianne Wiest, às tantas lança:

Caden Cotard is a man already dead, living in a half-world between stasis and antistasis. Time is concentrated and chronology confused for him. Up until recently he has strived valiantly to make sense of his situation, but now he has turned to stone. 

O seu nome não é ocasional ou não fosse o síndrome de Cotard o síndrome do cadáver ambulante.

Certo dia, empreende o impossível: replicar, num enorme armazém, a cidade e nela a sua vida, naquela que será, plena de verdade, a maior peça de teatro de todos os tempos. Como se pela representação do teatro vivesse a vida realmente. I won't settle for anything less than the brutal truth. Brutal. Esta peça - por baptizar - replicará, portanto, a trama de Sinédoque, Nova Iorque. Tremendo, o efeito de mise en abyme. Joga-se o microcosmos pelo macrocosmos, a parte pelo todo: a sinédoque do título, como resurso de estilo. Sammy fará de Caden. Claire (sua segunda mulher, interpretada por Michelle Williams) fará de Adele (sua primeira mulher, interpretada por Catherine Keener). Tammy (sua quarta mulher, interpretada por Emily Watson) fará de Hazel (sua terceira mulher, interpretada por Samantha Morton, de todas a que mais genuinamente o amou e a que mais genuinamente por ele foi amada: Hazel, you've been a part of me forever. Don't you know that? I breathe your name in every exhalation) e assim sucessivamente. À medida que cada personagem nova entra em cena no filme, uma nova personagem entra em cena na peça, tendo implicações directas no rumo da acção.

A épica aventura durará quase uma vida, pois o tempo voa, na montagem e na palavra. Caden casa-se, separa-se, desdobra-se em funerais. A acção de todo o filme contemplará, ao todo, cerca de cinquenta anos, tantos dos quais a trabalhar na peça. Com ela, apercebemo-nos do poder insolitamente magnetizante do protagonista. Afinal, apesar de constante e irremediavelmente abandonado (não as terá ele também abandonado a todas?) por uma e outra mulher (ou pelas filhas - a propósito, é especialmente tocante a cena da despedida da filha Olive, onde até aí a comunicação é dificultada), conseguirá sempre atrair os interesses de alguém - e é como se os atraísse para a morte, porque jamais serão felizes ou se realizarão a seu lado. É o caso do enigmático Sammy (Tom Noonan), que desde cedo o persegue e só mais tarde se revela: sabe tudo sobre ele e, qual alter ego, será capaz de confrontá-lo consigo próprio. Atrai sobretudo actores - o elenco da sua companhia resistirá estoicamente à passagem do tempo, ao seu perfeccionismo doentio, às suas mudanças de humor e às intermináveis alterações no guião. Um a um, todos com quem alguma vez interage ou contracena se findarão - e só ele, que para todos os efeitos está morto, não conhece a morte. O assunto da sua vida é, pois, o assunto do seu espetáculo:

I will be dying and so will you, and so will everyone here. That's what I want to explore. We're all hurtling towards death, yet here we are for the moment, alive. Each of us knowing we're going to die, each of us secretly believing we won't.
Caden Cotard

Jon Brion, compositor do redentor Magnólia de P. T. Anderson, assina a espirituosa banda sonora, que tão bem se coaduna com a soturna alma do filme e que tão bem conduz o espectador pela melancólica e sentimental viagem, repleta de imagens incríveis em tão poéticos momentos... a casa que arde e fumega, o enorme dirigível que irrompe pelos céus da falsa cidade ou a pétala que cai da flor tatuada... qual lágrima de um olhar molhado. A cada compasso, cada vez mais fantástico e desolador, filme e peça misturam-se magistralmente. O hiper-realismo converte-se numa metalinguística abstracta e quase indecifrável. A ficção e a realidade da ficção confundem-se, pois, e tornando-se indissociáveis. Qual delas a mais verdadeira? A mais real? Não é possível dizer... Rendidos à magia do que nos é apresentado, resta-nos concluir o mesmo que o protagonista: there are nearly thirteen million people in the world. None of those people is an extra. They're all the leads of their own stories. They have to be given their due. - e esperar que o mesmo ainda vá a tempo de se viver a si próprio, livre e despojado da tão infectada e mórbida consciência que tanto o assombrou e inutilizou, depois do grande ensaio. 

Charlie Kaufman. Só agora, neste ponto do texto, menciono o seu nome? Tudo o que falei para trás espelha o seu génio. Charlie Kaufman é um artista maior. Os seus argumentos, ousados e originais, ensaiam a condição humana e expõem-na da forma mais criativa nos seus peculiares diálogos, personagens, situações e universos. Queres ser John Malkovich? e Inadaptado, ambos realizados por Spike Jonze, surpreenderam o mundo e o virar do século por isso mesmo e, anos depois, o esplêndido e apaixonante O Despertar da Mente, de Michel Gondry, trouxe ainda mais reconhecimento à sua inconfundível identidade artística. Qual deus, Kaufman joga com o ser humano: constrói e desconstrói ficções e realidades, brinca e baralha o espectador, lança-o numa espécie de limbo interpretativo, não poucas vezes absurdo, confundindo drama e comédia, originando a dramédia. As suas personagens, alienadas, como que procuram o sentido da existência. E com Sinédoque, Nova Iorque - que diria que é, até ao momento, a sua mais arrojada e ambiciosa proposta - eis que se lança na realização como quem se atira de um arranha-céus. O aparente devaneio, que poderia desencadear a verdadeira tragédia, acaba por arrebatar-nos e arrancar-nos o mais sentido aplauso. Hiper-lúcido e consistente, de pulso firme, Kaufman concretiza um corajoso, denso e profundo pedaço de cinema. Diria mesmo que, na realização, atinge finalmente o expoente máximo da sua expressão autoral e o controlo absoluto da sua criação. O devaneio não só faz todo o sentido, no fim de contas, como era inevitável.

They say there is no fate, but there is: it's what you create. 

Sinédoque, Nova Iorque: um imprescindível filme de culto e um complexo e inesgotável objecto de estudo.

3 comentários:

  1. Tou com curiosidade em ver este, pois gosto bastante do Seymour Hoffman.

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  2. Acho que só se pode fazer uma crítica a este filme depois de o ver meia dúzia de vezes! É dos filmes mais complexos que já vi. Vindo de uma das mentes mais complexas do cinema!
    Abraço
    Baú-dos Livros

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  3. ANDRÉ SOUSA: Vale muito a pena!

    LUÍS AZEVEDO: Fi-la sem o ver assim tantas vezes, mas será certamente fonte inesgotável de inúmeros estudos e matérias.

    ANTONIO NAHUD JÚNIOR: É mesmo, grande filme. Obrigado e até breve!

    Obrigado a todos pelos comentários!

    Roberto Simões
    CINEROAD

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