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Título Original: NoahRealização: Darren Aronofsky
Principais Actores: Russell Crowe, Jennifer Connelly, Douglas Booth, Logan Lerman, Emma Watson, Anthony Hopkins, Ray Winstone, Frank Langella, Nick Nolte, Leo McHugh Carroll, Mark Margolis, Kevin Durand, Marton Csokas
Crítica:
O GRANDE DILÚVIO
The waters of the heavens will meet the waters of the earth.
(...) We build an ark.
Está na hora de ser justo para com Noé, arrojada e visionária criação de Darren Aronofsky. É tempo de rever, reavaliar e, certamente, reconsiderar. Sejamos objectivos: Noé não é um filme bíblico, é um filme fantástico, por mais que a Bíblia possa ou não ser uma fantasia. O episódio das antigas escrituras é a fonte de inspiração - e é só. Noé desenvolve uma mitologia e imaginário próprios e bastante singulares. Ao arrumarmos Noé na prateleira e se o género for o critério, jamais se fará acompanhar d'Os Dez Mandamentos de Cecil B. DeMille. Noé estará ao lado d'O Senhor dos Anéis, de Peter Jackson. E ter consciência deste facto é preponderante para que possamos assistir ao filme livres de um preconceito capaz de nos turvar a visão e de nos afundar por completo o prazer de experienciá-lo e o poder de, devidamente, apreciá-lo. Foi um erro crasso e tremendo, assisti-lo em permanente comparação com a história conhecida e procurando as eventuais correspondências com o texto original. Ocupei-me, portanto, com uma discussão desnecessária (que jamais me permitiu desfrutar do filme em si) e, sobretudo, perfeitamente inoportuna. Por isto, Noé faz parte de uma fileira de filmes que me desiludiram e aos quais voltei, maravilhando-me com a redescoberta.
Em 2014, Hollywood virou-se para a Bíblia. Ridley Scott com o seu épico gorado sobre a figura de Moisés Exodus - Deuses e Reis, protagonizado por Christian Bale, e Aronofsky com o controverso e incompreendido Noé, protagonizado por Russell Crowe. Ambos com sofisticadíssimos efeitos visuais, ambos visualmente deslumbrantes e ambos tão duramente criticados do ponto de vista narrativo. Foquemo-nos em Noé: o erro não foi tanto o de partir de material religioso, imediatamente polémico. O erro - comercialmente compreensível, dado o gigantesco orçamento - foi ser vendido como um filme bíblico, o que atrai muito público correndo o risco, quase obrigatório, de defraudar expectativas. Ora bem, Aronofsky é ateu. Estão a perceber bem onde quero chegar? É claro que Noé não colide crassamente com os versículos do Antigo Testamento, mas, no seu oceano de liberdades criativas, reinterpreta-os, arquitectando uma obra gnóstica e de entendimento universal - sobre todas as religiões e sobre nenhuma em particular. Funde, habil e inteligentemente, criacionismo com evolucionismo: Noé tem um dos mais audazes time-lapses da História, numa brilhante sequência que vai do Big Bang à divisão celular e à plausível evolução das espécies - provavelmente, mais plausível do que nunca - até que chega à criação do Homem e a obra se enche de símbolos e misticismo cabalístico, cuja interpretação resolve a mensagem encriptada. A narrativa tem prólogo, três actos e uma coda. Ao longo desta sua jornada, Noé é um filme fantástico, às vezes de inspiração surrealista, e um filme catástrofe, apocalíptico, com uma forte preocupação ecológica por trás (Noé e a família são vegetarianos). É um filme de acção e um drama familiar, com nuances de romance e de tragédia. Tem, portanto, uma natureza bastante abrangente e totalizante e jamais se perde na sua ambição. Camuflado entre a aparência de blockbuster, temos a marca inconfundível de um autor genial, intransigente e de pulso firme, que sabe o que quer, como quer e que não prescinde do seu conceito - como fez em The Fountain; embora, neste caso último, evidentemente, com menos dinheiro. Aqui, serve-se do milionário investimento de um grande estúdio para bancar hordas de animais digitais - primeiro as aves, depois os répteis e os insectos e por fim os mamíferos terrestres - que, de outra forma, não seriam possíveis.
A comparação com The Fountain não é, de todo, despropositada. Diria que os dois filmes fazem parte da mesma dimensão criativa dentro do universo de Aronofsky, dialogando entre si, partilhando inúmeras referências - e não só porque ambos têm personagens principais obsessivamente empenhadas na sua missão de salvação. Aronofsky é, aliás, dos cineastas que melhor explora a obsessão em toda a sua complexidade, desde as motivações às suas inevitáveis consequências. Veja-se o caso de Requiem for a Dream ou de Cisne Negro. Em Noé, Russell Crowe interpreta os sinais divinos, os sonhos e as profecias e, munido de uma fé indestrutível, avança com o plano de construção da arca. A magia germina a cada punhado de terra. A fé da família nele e no plano do Criador (que nunca é referido como Deus) é igualmente inabalável. Às tantas, todavia, Crowe começa a parecer-se cada vez mais com o seu arqui-rival Tubal-cain (aguerrida interpretação de Ray Winstone), na medida em que não olha a meios para atingir os seus fins. Sem jamais questionar os desígnios do Criador, barrando a entrada aos milhares que, lá fora e em pleno dilúvio, clamam por ajuda e salvação, Noé ver-se-á ainda confrontado com a necessidade de sacrifício da própria família, por forma a travar a descendência e a continuação do Homem. O plano é claro:
The Creator has judged us. Mankind must end. Shem and Ila, you will bury your mother and I. Ham, you will bury them. Japheth will lay you to rest. You, Japheth, you will be the last man. And in time you, too, will return to the dust. Creation will be left alone, safe and beautiful.
O fundamentalismo da sua fé levá-lo-á à loucura e poderá torná-lo um sanguinário, cada vez mais à imagem e semelhança do seu Criador. Ou cumpre a sua missão até ao fim ou será odiado por todos os que ama, até ao fim dos seus dias. É o que lhe diz a mulher Naameh (comovedor desempenho de Jennifer Connelly, que volta a formar casal com Crowe depois da sua química inegável em Uma Mente Brilhante). A transfiguração do actor é assustadora, conduzindo a sua dor e a narrativa a um inesperado e intenso terceiro acto. O elenco, completado com notáveis prestações de Emma Watson, Anthony Hopkins, Logan Lerman e Douglas Booth, edifica uma crescente carga dramática, que tenderá a emocionar-nos na sua complexidade. Frank Langella e Nick Nolte emprestam as suas sonantes vozes aos Vigilantes, os gigantes de pedra outrora Anjos Caídos, que ajudam na construção da megalómana arca e que lutarão contra os malditos que nem Ents às portas de Isengard.Tornemos à comparação com The Fountain e às suas interligações: ambas as obras partem do Genesis para criar o seu imaginário, partilhando a imagem da árvore sagrada do Jardim do Éden, seja ela a Árvore da Vida ou a Árvore do Conhecimento. Uma é o ponto de chegada, a outra o ponto de partida. A árvore não é igual nos dois filmes, mas o poder da imagem e a estética assemelha-se. Assim como se assemelha a branca flor, que brota do solo por magia, símbolo do eterno recomeço. The end of everything. (...) The beginning of everything. O musgo é o alimento tanto do descendente de Adão como do Último Homem de Hugh Jackman, que viaja no espaço e numa dimensão metafísica. Noé partilha com The Fountain algum do seu esplendor visual, também, nos efeitos especiais relacionados com o cosmos e em planos em que as silhuetas das personagens - negras - se destacam dos seus fundos maravilhosos. No caso do filme de 2006 temos um plano em que Jackman se alonga e medita sobre um fundo de constelações e no caso de Noé temos marido e mulher sobre o crepúsculo. A beleza do frame é inebriante, entre outros tantos frames que nos esmagam com o seu poder visual. Matthew Libatique é o prodigioso artista por detrás da fotografia dos dois filmes, adaptando triunfalmente, nos dois casos, novelas gráficas e storyboards. Mas também a música desempenha um papel semelhante em ambas as criações - e também aqui não se mexeu na equipa. Clint Mansell é o compositor e, para além de a sonoridade de Noé invocar, muitas vezes, a memória dessa transcendente experiência que é The Fountain, também neste caso a repetição e a persistência da repetição das mesmas frases musicais ao longo das cenas espelha a obsessão do protagonista e da sua missão, marcando um ritmo pulsante e que gradualmente se intensifica. Noé é, por tudo isto, um arrebatador espetáculo de som e imagem, filmado e orquestrado por um realizador que se movimenta como um deus. Tal como em The Fountain, também aqui temos impressionantes planos verticais - god's eye view -, confrontos à chuva perante a presença da vegetação e uma ágil montagem (Andrew Weisblum) ao serviço das diferentes mas sempre económicas e empolgantes cadências narrativas.
Uma das mais controversas observações que tenho a apresentar prende-se com intencionais anacronismos colocados no filme e, assim sendo, com a eventual atemporalidade da acção. Depreender-se-ia, à partida, que Noé desenvolvesse a sua fantasia num passado histórico. Contudo, não só os amplos planos da primeira parte deixam antever uma civilização outrora industrializada como, a dado momento, um dos time-lapses mostra silhuetas de combatentes de diversas épocas, entre os quais guerreiros pré-históricos, gregos, egípcios, romanos, árabes, vikings, índios e europeus medievais, do tempo dos descobrimentos ou da Revolução Francesa, soldados das guerras mundiais... Todos os figurinos e armas são datáveis, do pau à espada e à espingarda. Um mero devaneio meta-ficcional, na tentativa de abranger a totalidade do tempo, do passado ao futuro? Ou a dupla possibilidade desta história apocalíptica tanto se passar lá atrás como amanhã ou num tempo sem tempo? Na minha opinião, tudo isso. Já desde The Fountain que sabemos que Aronofsky procura atingir, neste seu tipo de cinema, a plenitude. É essa sua obsessão. A dada entrevista* o cineasta avançou: I'm Godless. And so I've had to make my God, and my God is narrative filmmaking, which is ultimately what my God becomes, which is what my mantra becomes, is the theme. Basta assistirmos a um destes seus filmes para compreendermos a amplitude e o significado das suas palavras. Qual Noé, Aronofsky transporta a pele da serpente e, na sua carga esotérica, a herança de um cinema por demais iluminado.
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(*) Entrevista a Ruby Rich aqui.
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