quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

A BRUXA (2015)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM 
★★★★★ 
Título Original: The VVitch: A New-Englad Folktale
Realização: Robert Eggers
Principais Actores: Anya Taylor-Joy, Ralph Ineson, Kate Dickie, Harvey Scrimshaw, Ellie Grainger, Lucas Dawson, Bathsheba Garnett, Wahab Chaudhry, Julian Richings, Sarah Stephens  

Crítica:

When I sleep, my spirit slips away from my body...

UM CONTO SATÂNICO

... and dances naked with The Devil.

Algumas extraordinárias e insólitas composições musicais, quando perfeitamente aliadas às mais enigmáticas motion pictures, têm o dom e o poder de tocar o divino. É o caso, por exemplo, dos coros atonais de Ligeti, que imortalizaram o aparecimento do monólito aos primeiros Homens, na obra-prima de Kubrick 2001: Odisseia no Espaço. É o caso, também, da ensurdecedora confusão de cordas e percussões - proposta por Jonny Greenwood - para marcar a explosão do poço de petróleo na numa das mais emblemáticas cenas de Haverá Sangue, de P. T. Anderson. Num caso como no outro, a música impõe - ao filme e ao espectador - estranheza, incómodo e até algum mal-estar. Neste arrepiante A Bruxa, Mark Coven, o compositor, parece ter aprendido com os melhores. Neles bebeu, claramente, inspiração. Caleb's Seduction, por exemplo, imita o Requiem de Ligeti e todos os seus efeitos perturbantes e repulsivos, conduzindo o silêncio do suspense aos mais periclitantes picos da adrenalina e do terror. Na realização, o estreante Robert Eggers nunca atinge, é certo, a dimensão visionária de qualquer um dos realizadores atrás mencionados. Não obstante, concretiza um sólido e por demais virtuoso trabalho de contenção, potenciando o terror psicológico como poucos e causando, certamente, alguns suores frios. A Bruxa poderá nunca atingir o divino, mas jamais terá sido esse o objectivo. A Bruxa é obra do diabo!

Este será sempre um filme de autor: Eggers assina também o argumento. E se há palavra que o caracteriza, tanto na arte de escrever como na arte de filmar, é economia. Poucas vezes estaremos perante um filme tão económico - não há um diálogo a mais, uma palavra a menos, não há uma cena a mais ou um shot a menos. Tudo, nesta belíssima obra, se reduz ao essencial. Cada imagem ou cada som tem a sua carga significante. Mas A Bruxa é também um filme de significados ocultos, de símbolos atrás de símbolos cuja interpretação - e muitas vezes ambiguidade - enriquecerá o sentido da história, permitindo decifrá-la.

New England, na obscura década de 30 do século XVII. O âmago da história é uma família de sete elementos - imigrante, pobre e profundamente religiosa e supersticiosa - cuja devota e doentia existência se resume tão-somente à Bíblia, como se respirassem o evangelho de manhã à noite e o seu pão na mesa fosse a palavra sagrada e a sua literal interpretação. Expulsos pela própria Igreja da comunidade e plantação onde viviam - tal era a sua cega e fervorosa paixão pelos testamentos de Deus, considerada uma tremenda ameaça e tudo menos bem-vinda - encontram, nos terrenos bravios na orla de uma densa e misteriosa floresta, o local ideal para o recomeço. Totalmente isolados do mundo - a aldeia mais próxima fica a largas horas de viagem - têm-se a si próprios, aos seus medos e anseios e a um conhecimento por demais limitado para extrair da terra a abundância necessária a uma vivência cómoda e estável. Temos William, o pai (Ralph Ineson, dotado de um impressionante tom gutural), de todos o mais puritano e que a toda a hora lembra as parábolas e as figuras bíblicas, que deverão guiar as ações dos filhos e livrá-los do pecado. Temos Katherine, a mãe (Kate Dickie), que não tardará a ceder à dúvida e à histeria. E depois temos 5 filhos: o mais novo, Samuel, é um bebé inofensivo. Seguem-se dois gémeos, Mercy e Jonas (Ellie Grainger e Lucas Dawson), duas diabruras mal-comportadas e indomáveis. Mercy é plena de ironia no nome - se há coisa que não terá por ninguém será precisamente misericórdia, quando muito não seja pelos seus repetidos gritos estridentes. Temos Caleb (Harvey Scrimshaw), por demais curioso e fascinado com os relatos bíblicos do pai e por fim, mas não menos importante - pelo contrário -, temos Thomasin (Anya Taylor-Joy, promissora revelação), a filha mais velha, sobre a qual a câmera abre e encerra o filme. De olhar intenso e intrincado, a jovem servirá de bode expiatório para justificar tudo o que de inexplicável e hediondo vier a acontecer - e que será muito.

Sempre presente, a floresta como pano de fundo - a observar, a escutar... Virgem e intocada, é vítima das piores suspeitas e da mais supersticiosa ignorância, como se da fonte de todo o Mal se tratasse, onde retorcidas forças se dispõem para atacar sem motivo aparente, a qualquer instante. Por isso, está decidido que a devem evitar. A floresta desempenha n'A Bruxa, portanto, papel semelhante ao que desempenhara n'A Vila, de Shyamalan, em que atravessá-la significava transgredir as fronteiras do medo rumo ao temido desconhecido.

Tornemos a Thomasin, que desde logo assume o protagonismo. Certa vez, enquanto brinca com Samuel perante a floresta, o bebé desaparece-lhe como por magia. Vêem-se ervas secas a mexer-se, na direcção do arvoredo. Samuel é raptado e não se sabe por quem, desencadeando a acção. A mãe apressar-se-á a culpá-la - antes disso, porém, acompanharemos, na escuridão da noite, uma bruxa into the woods e de bebé ao colo, pronta para mutilá-lo e, num acto de canibalismo, prová-lo. Qual lobo mau no conto popular infantil do Capuchinho Vermelho, ávido de criancinhas inocentes. Mais tarde, quando Caleb e Thomasin, quais Hansel e Gretel, se aventuram pelo bosque, noite adentro, na tentativa de aliviar a escassez e de encontrar caça e recursos que impeçam os pais de a vender na aldeia - por já ter formas maduras - Caleb encontra uma lebre de olhar suspicaz e perde-se da irmã. Acaba por encontrar o grutesco lar da bruxa que logo avança para ele, voluptuosa e sedutora, o beija e experimenta, corrompendo-lhe o corpo e a alma, num acto de - aos olhos de hoje - pura pedofilia. Thomasin regressa então a casa, tendo, sem querer, entregue à morte mais um dos irmãos que tanto amava. E será a Thomasin que Caleb lhe aparecerá, no mais chuvoso e nocturno breu, nu e possesso, como que envenenado pela bruxa cuja existência, aos olhos de todos, nunca foi comprovada. Até da boca lhe tira o pai uma maçã - clara alusão ao conto da Branca de Neve. A cena que se segue é das mais impressionantes de todo o filme: o momento em que a família, desesperada com a maldição, dá entre si as mãos à volta do leito de Caleb, rezando e implorando pelo exorcismo e pela cura. É como se Deus e o Diabo medissem forças. É a cena nuclear, em que se confrontam uns aos outros na tentativa de entender a maldição e a experiência sobrenatural que se lhes impõe, implacavelmente. Nela acreditam mas, simultaneamente, não querem acreditar. É a altura em que se percebe, claramente, de que lado estão os gémeos, que se recusam a rezar perante as bizarrias e bruxedos que Caleb, no acesso de loucura, tão fortemente profere: A cat. A crow. A raven. A great black dog. A wolf. She desires of my blood. She sends em upon me! They feed upon her teats, her nether parts! She sends em upon me. Sufocam-nos as cordas de Coven e os gémeos repetem, incessantemente, contorcendo-se no chão: She desires of my blood! She desires of my blood! Quando as cordas se calam e se silencia a força derrotada, as culpas recaem novamente sobre Thomasin. Como se fosse ela a bruxa, a infiel, a pactuante com a Besta. Nós, espectadores, pela forma como Eggers joga o seu xadrez, sabemo-la injustiçada. E é precisamente por jogar, desde o início, de forma pouco clara e pouco explicativa que se instala a dúvida. Coloca-nos o realizador, ao fim e ao cabo, no lugar e sob o prisma de qualquer elemento daquela família, prostrado e incapacitado face à violência da inevitabilidade e da fatalidade. A problemática da origem do Mal relacionada com as crianças lembra-nos, a espaços, o ensaio de Haneke, o magistral O Laço Branco.

Quando, anteriormente, à beira do riacho e perante a floresta, Thomasin ouve Mercy falar de uma bruxa da floresta e a assusta dizendo I am that very witch. When I sleep my spirit slips away from my body and dances naked with The Devil. That's how I signed his book. (...) He bade me bring him an unbaptized babe, so I stole Sam, and I gave him to my master. And Ill make any man or thing else vanish I like. Aye. And Ill vanish thee too if thou displeaseth me... acreditamos que apenas brinca com a fedelha. How I crave to sink my teeth into thy pink flesh. If ever thou tellst thy mother of this, I will witch thee and thy mother! And Jonas too! No entanto, não tardará a perceber que tudo o que disser perante a floresta tenderá a ser entendido como uma proposta aceite pelo Diabo, invocado e cultuado pelas bruxas e corpóreo na forma do Black Phillip, o negro bode - símbolo pagão e satânico - que a família alimenta e ignora. O mesmo que os gémeos afirmaram segredar-lhes e que tão alto cantaram aos céus: Black Phillip, Black Phillip, King of sky and land! O mesmo que o pai se recusa a acreditar que seja o Diabo, quando mais tarde encerra os restantes filhos no estábulo, a tábuas e pregos, na companhia do malvado animal e das cabras, como que os castigando ou protegendo. Como se o lobo não destruísse casas de madeira (referência a'Os Três Porquinhos). If that old billy be The Devil - lança o pai, na presença da floresta - I would have danced with him myself. Proposta que o Baphomet se prontifica a aceitar. E não tardará muito a marrar mortalmente contra ele e contra as pilhas de lenha que William tão bem cortou ao longo do filme (Thomasin chega a dizer-lhe, a dado momento: Thou canst do nothing save cut wood!). Os gémeos desaparecem na hora da bruxa, pela ainda escura madrugada, quando esta visita o estábulo, sedenta não de leite mas de sangue de cabra. À mesma hora em que Katherin se levanta da cama e tem uma visão improvável: Caleb aparece-lhe de Samuel ao colo, como que regressados do Inferno, e o bebé dá lugar a um corvo, que lhe debica o seio, na profusão dos símbolos. A imagem é macabra e transtorna-nos. O Mal manifesta-se, pois, numa pluralidade de formas. Revela-se, portanto, um pacto secreto e por demais perverso entre os agentes do Mal, servas bruxas e reles Diabo, que se concretiza numa divertida - e para nós e para as personagens absolutamente aterradora - brincadeira de sangue e morte. O jogo da eliminação continua, caindo os peões uns atrás dos outros, sem qualquer clemência.

O conflito do feminino - foi notória desde o início a especial dificuldade de relacionamento entre a mãe e as filhas e as filhas entre si - conhece um duelo sem precedentes. Estamos no último acto e a mãe sai à rua, completamente desvairada e fora de si, cobrando à filha mais velha - que já lhe competia nas formas - a tragédia que se abatera sobre a família. You have made a covenant with death! You bewitched thy brother, proud slut! Did you not think I saw thy sluttish looks to him, bewitching his eye as any whore? And thy father next! You took them from me! (...) Witch! É caso para dizer: santa ignorância, pensamos. E desfere-se o golpe final, quebrando a inocência, provando o sangue. Estava principiado o ritual. O plano é de afastamento médio e a fotografia (Jarin Blaschke), sempre com luz natural, cores esmorecidas e abrilhantada pela incrível recriação histórica do guarda-roupa (Linda Muir), lembra Veermer ou outros mestres da idade de ouro da pintura holandesa; como nos lembrou noutros instantes, nomeadamente quando os pais olham para Caleb na sepultura, envoltos no frio da paisagem e na companhia da casa, fumegante. O plano, dizia, é incrível e abre lentamente à medida que Thomasin se levanta, enquadrando o pai, ali também caído ao lado, e o restante cenário de destruição. Quando entra em casa, a jovem cobre-se com um manto, senta-se e apoia a cabeça na mesa. O silêncio é imperioso. Fade out. E o filme poderia acabar ali, deixando em aberto o porquê de Thomasin ser a única sobrevivente de tudo aquilo.

Não obstante, há uma coda, a fechar o conto. E o bode ainda está vivo, claro está. Cumprir-se-á o ritual no abraço da floresta, a floresta que ouviu Thomasin, ainda que em vão, e que aceitou a sua proposta. O chifrudo rirá por último, vitorioso sobre qualquer reza ou súplica. Há coisas, dizem os supersticiosos, com as quais não devemos brincar e muito menos pronunciar. Ora bem, A Bruxa é um filme supersticioso, com personagens supersticiosas num tempo em que, longe do esclarecimento científico, a superstição dominava. Não tardaria a começar um dos períodos mais intensos da caça às bruxas nos Estados Unidos, que ficou marcado nomeadamente pelo icónico episódio das Bruxas de Salém, no final do século.

I will guide thy hand...

Por tudo isto, que exímio contador de histórias se revela Robert Eggers - que inclusivé consultou relatos históricos das autoridades de então para recriar as expressões e as falas das personagens, tão focado que estava no episteme e no escape a revisionismos. O subtítulo da obra aponta precisamente para esta natureza real e folclórica do conto. A viagem no tempo parece-nos, por isso, cabalmente plausível. É de filmes destes, superiores, que o género precisa para se vitalizar. Bem, parece-me que está de boa saúde. A Bruxa é um autêntico clássico instantâneo - e nem vou arriscar a dizer o contrário, não vá o Diabo tecê-las!

2 comentários:

  1. Bela descrição e narrativa dos fatos, de uma obra que arrisco dizer, é a melhor do gênero, no século 21!

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    1. SILMAR DOS SANTOS: Bem-vindo ao CINEROAD e obrigado pelo seu comentário. Não sei se será a melhor, mas certamente será uma das melhores até agora. Destaco também OS OUTROS (The Others) do Amenábar ou ANTICRISTO (Antichrist) do Lars von Trier, ambos também já criticados neste blogue.

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