segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

12 ANOS ESCRAVO (2013)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM 
★★★★★ 
Título Original: 12 Years a Slave
Realização: Steve McQueen
Principais Actores: Chiwetel Ejiofor, Michael Fassbender, Benedict Cumberbatch, Paul Dano, Paul Giamatti, Lupita Nyong'o, Sarah Paulson, Brad Pitt, Alfre Woodard, Dwight Henry, Dickie Gravois, Bryan Batt, Ashley Dyke, Kelsey Scott, Scoot McNairy

Crítica:

NO TEMPO DA VERGONHA

I don't want to survive. I want to live.

12 Anos Escravo é daqueles filmes históricos, profundamente sérios e frontais, que, procurando retratar com verdade as atrocidades do passado, nos envergonham enquanto seres humanos e nos pesam numa consciência colectiva que jamais poderá cair no esquecimento. É a denominada história verídica, a transposição para o cinema da autobiografia de Solomon Northup, o cidadão negro letrado e livre na Nova Iorque de 1841, que se vê inadvertidamente enganado e raptado e tragicamente entregue à escravatura que ainda vigorava no sul do país, separado da mulher, dos filhos, da carreira de músico e de qualquer noção de liberdade. Mais tarde escreverá o livro que dará nome ao filme, relatando, de forma pormenorizada e sem floreados, o violento e absurdo desvio que a sua vida, às tantas, tomou, marcando-lhe para sempre o corpo e a alma. Até lá, 12 Anos Escravo é a história de um homem comercializado como gado, tratado que nem uma besta e humilhado simplesmente por ter uma cor dita amaldiçoada, de uma etnia igual mas monstruosamente inferiorizada desde o tempo das descobertas. Como se tivesse culpa de ter nascido. Tiram-lhe tudo, até o nome - passará a chamar-se Pratt. Tentará a todo o custo manter a lucidez e a esperteza, a fé e a esperança e aguardar pela hora certa para fugir, escapar ou escrever, na invisibilidade, a carta aos amigos que lhe poderão trazer a salvação - e a vida de volta.

I will not fall into despair! I will keep myself hardy until freedom is opportune!

A todo o instante, a fotografia de Sean Bobbitt extrai da natureza e da paisagem bucólica a maior beleza. Ainda que falte o sol, encoberto pelas nuvens. Sopra um ligeiro vento, mas nunca suficiente para abolir velhos costumes. A maravilha está no rio, nas árvores, nas folhas... até nas lagartas e na praga que, a dado momento, afecta a plantação de algodão. O cenário é idílico em contraste gritante com as chicotadas que silvam, vergam e dilaceram, com as cordas que soerguem, apertam e sufocam, com os gemidos que dos tormentos a medo se soltam, seja no silêncio da noite ou entre o ensurdecedor canto das cigarras, em pleno dia. Em cada estrada um caminhante traiçoeiro, em cada quinta um reles capataz ou um feroz senhor, sempre pronto a destilar o ódio e a desferir o golpe. Ford (Benedict Cumberbatch), apesar de dono de escravos, revela uma humanidade singular, mas Tibeats (Paul Dano), seu braço-direito, é de uma repulsa incompreensível para com Solomon e os restantes negros. Quando o violinista (visceral interpretação de Chiwetel Ejiofor) o enfrenta e, fora de si, o agride... espera-o a forca. A cena é, à semelhança de outras, um long take. Bem sabemos da predilecção de Steve McQueen pelas tomadas mais demoradas - lembramos a dureza de Fome. Dessa simplicidade e honestidade - não há truques de montagem, a câmera está parada e limita-se a observar - advém uma carga emocional brutal e uma sensação de realismo e autenticidade inegável. Essa cena é tanto ou mais perturbante quando notamos que os outros, à volta do castigado suspenso no nó, aparentam fazer a sua vida normalmente, pactuantes no medo e na necessidade impreterível de sobrevivência.

Survival is not about certain death, it is about keeping your head down. 

Salvo da forca mas não ileso e sem consequências, Solomon vê-se transferido para a herdade de Edwin Epps (assustadora, a entrega de Michael Fassbender). É recebido com palavras da Bíblia, mas é como se tivesse chegado ao Inferno. Epps é um alcoólatra tirano, em tudo incurável e doentio, um espírito fraco embora de uma força boçal, dominado pela ignorância, pela fragilidade e pelos ciúmes da mulher. É incompreensivelmente (para ele) obcecado pelos encantos carnais de Patsey (Lupita Nyong'o, num papel tão penoso quanto arrebatador), o que desencadeará nalguns dos instantes mais irascíveis, sofridos e chocantes de toda a obra. Para Solomon, o futuro desvanece-se então de dia para dia, como um sol que perde calor. Quando, assolado pela desilusão, destrói em pedaços o violino que o patrão Ford lhe dera em tempos, percebemos que a sua esperança está por um fio. A sua honra e a sua dignidade, há muito que as perdeu. Encontrará alguma luz ou benfeitor no seu poço sem fundo? Haverão lágrimas, ainda, capazes de lhe encher os olhos de felicidade? Tornará a sentir um beijo ou um abraço? Ficam as respostas para quem assiste ao filme e ao seu terno final.

McQueen, num exercício de proximidade tremendo - a câmera está a maior parte do tempo sobre os actores, em planos fechados e intimistas, alternando muitas vezes o focar e o desfocar - potencia as excepcionais performances do elenco, a que se juntam nomes como Brad Pitt (ele também produtor) e Paul Giamatti. Hans Zimmer assina a banda sonora minimalista, pontuando o filme com a sua envolvência, convocando à reflexão - esse mérito maior, todavia, provém sobretudo do trabalho dos actores, dos seus olhares brilhantes e plenos de verdade na história que contam, na História que representam. Que o presente e o futuro ponham fim à injustiça. Tantos anos após a abolição da escravatura, as feridas ainda se sentem na pele: na desigualdade, na descriminação, no racismo. Fica a vergonha e a arte - mas que fiquem, como alerta.

Laws change (...) Universal truths are constant. It is a fact, a plain and simple fact, that what is true and right is true and right for all. White and black alike.


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