quinta-feira, 20 de abril de 2017

VÍCIO INTRÍNSECO (2014)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
★★★★ 
Título Original: Inherent Vice 
Realização: Paul Thomas Anderson
Principais Actores: Joaquin Phoenix, Katherine Waterston, Benicio Del Toro, Owen Wilson, Josh Brolin, Reese Witherspoon, Sasha Pieterse, Jena Malone, Maya Rudolph, Martin Short, Yvette Yates, Peter McRobbie

Crítica:

O HIPPIE GANZADO 

 Motto panukeiku... motto panukeiku! MOTTO PANUKEIKU! 

Termina o filme e o título, oblíquo e a neon verde, invade o fundo negro. O violino dá lugar ao mais relaxado sintetizador electrónico da Any Day Now, de Chuck Jackson. Paz e amor, paz e amor, tudo acaba bem, mas a nós o que nos invade é um sincero WHAT THE F*CK! Duas horas e meia depois de ter começado, Vício Intrínseco não nos deixa pedrados, deixa-nos para lá de confusos e seguramente arrependidos da nossa lucidez. Mas que raio de filme foi este? O que é que se passou aqui? Talvez, se tivéssemos acendido um espirituoso e bem provido charro, estivéssemos melhor preparados para assistir a um filme assim, tão... alucinado. Absolutamente rendidos à magnetizante e inesquecível moca do hippie de Phoenix e à esquisita compleição narrativa (e ao seu hilariante non-sense), a partir do romance original de Thomas Pynchon, o certo é que não conseguimos desviar o olhar até ao final. Quer dizer, talvez alguns espectadores desistam ao fim de alguns minutos. Talvez outros tantos, entre o desnorte e os bocejos, abandonem a sessão a meio, inteiramente frustrados. Não é talvez, é certamente - basta sondar algumas opiniões aqui e ali. Ainda que completamente distinto no tom e no tema, Vício Intrínseco assemelha-se ao anterior de Paul Thomas Anderson, The Master, no grau de dificuldade e exigência interpretativas levantadas ao espectador. Porventura, será ainda mais difícil, ainda mais exigente. Alguns espectadores, como eu, chegarão ao fim, orgulhosos e contentes - não negarão que se riram e que gozaram um bom bocado -, mas não farão ideia, ou muito pouca, da história a que assistiram. Eu cheguei ao final e não só não sabia da história como não sabia o que dizer do filme. Só sabia que tinha gostado. E então o que fiz? Passei dos créditos finais aos iniciais. E comecei a ver de novo.

Vício Intrínseco é um noir - o mistério adensa-se, entre nuvens de fumo, ao longo de todo o filme. E continua depois de acabar; só não sabemos se por negligência nossa. O caso é resolvido, os caminhos para lá chegar é que são bem sinuosos. Gordita Beach, Califórnia. Anos 70 do século XX. Phoenix - absolutamente camaleónico e genial, elevando-se ao nível dos maiores actores da actualidade e, provavelmente, dos lendários - é Doc Sportello, um detective particular, de cabelos compridos e fartas suíças, quase sempre de óculos de sol, descalço ou de sandálias, mas sempre sobre o efeito mais ou menos despreocupado, anestesiado ou paranóico das drogas, sobretudo do haxixe. As drogas são o seu vício maior, inerente à sua condição, à sua natureza, mas não menos o amor que sente pela ex-namorada Shasta Fay (fabulosa Katherine Waterston), que tão claramente não consegue ou não quer esquecer. Quando esta lhe propõe um caso, a investigação começa... e o filme também. Começam a aparecer personagens e mais personagens, cada uma com uma nova pista ou uma nova proposta de caso - às tantas a baralhação é tanta que até o próprio escreve o nome de todos os intervenientes num quadro e faz por estabelecer as conexões necessárias, com vista a orientar-se. As personagens e os seus relatos contradizem-se uns aos outros e até a narradora - Sortilège (Joanna Newsom), amiga de Doc e por isso muito pouco isenta e fiável - lança achas na fogueira. No fim de contas, todas as personagens revelar-se-ão de alguma forma relacionadas e todos os casos poderão ser um só grande caso, provocado pela mesma pessoa ou pela mesma organização. A história poderá nem ser a coisa mais intricada do mundo, mas a forma como está contada é que é o grande segredo - e o grande reflexo da qualidade e inteligência da obra. As personagens, repletas de particularidades, são riquíssimas e as cenas memoráveis variadíssimas. A minha preferida é a cena de sexo, num só plano, entre Doc e Shasta - absolutamente brilhante: da persistente massagem com os pés nas pernas do hippie até se deitar sobre ele e quase a tocar na câmera, desafiando o enquadramento e o tesão do protagonista.

Mas o que dizer do cómico de situação, imperioso e absurdo, de grande parte das cenas? Aquela em que Doc mira o amigo (amigo?) polícia Bigfoot (Josh Brolin) a saborear, ao volante e apaixonadamente, um fálico gelado? Ou aqueloutra em que agentes do FBI começam, um por um, a esgaravatar os seus narizes? Ou aqueloutra em que Jade (Hong Chau) se ajoelha perante a colega Bambi e, demonstrando a promoção para detectives, naquele bordel de esvoaçantes bandeirolas vermelhas no meio do nada, começa a dar à língua? E aqueloutra em que o Dr. Rudy Blatnoyd (Martin Short), entre snifadas e tresloucadamente, abandona o consultório, desapertando as calças? E o que dizer da excelência do serviço da empregada de Sloane (Serena Scott Thomas), mulher do desaparecido Mickey Wolfmann, que a servir uma bebida a Doc esbarra a sua curtíssima mini-saia a dois dedos da sua cara? O que dizer do agressivo e repetitivo pedido de panquecas de Bigfoot? Do encontrão propositado dos bófias, quando Doc vai a caminho da esquadra? Da representação da Última Ceia, entre pizzas e colares floridos? Vício Intrínseco é um valoroso filme de momentos e de personagens. Absolutamente seguro da sua forma. Tem a confusão de The Big Sleep de Hawks, o disparate e o ridículo comum a tantos dos filmes dos Coen (Doc lembra inevitavelmente o Dude de Jeff Bridges), as longas conversas (e os pés, tantos pés!) de Tarantino... mas, referências à parte, Vício Intrínseco é tanto as marcas do P. T. Anderson, o autor: na arte de filmar, na complexidade da trama, na profundidade e tremenda dimensão dos seus protagonistas, no retrato de uma determinada década da cultura americana. Sobressaem os azúis e os amarelos entre a iluminação de Robert Elwist, Leslie Jones é mais ou menos simples mas sempre eficaz ao leme da edição e Jonny Greenwood, também ele habitual colaborador, é responsável por uma banda sonora por demais contagiante, que reúne também algumas das icónicas canções da época, entre as quais Journey Through The Past, de Neil Young, Vitamin C dos Can e a minha predilecta, a gloriosa Les Fleurs, de Minnie Riperton.

P. T. Anderson não repete um filme que seja. A cada filme, uma aposta ganha. Não falha uma vez que seja. Não admira, pois, que seja um dos artistas mais estimulantes, interessantes e consistentes do panorama cinematográfico actual. O que é Vício Intrínseco? Sobre todas as coisas, mais um filme para a vida, que cresce a cada visualização. Para um verdadeiro cinéfilo, de nada serve abandoná-lo, pois ele jamais nos abandonará.

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