terça-feira, 11 de abril de 2017

AURORA (1927)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
★★★★ 
Título Original: Sunrise: A Song of Two Humans
Realização: F. W. Murnau
Principais Actores: George O'Brien, Janet Gaynor, Margaret Livingston, Bodil Rosing, J. Farrell MacDonald, Ralph Sipperly, Jane Winton, Arthur Housman, Eddie Boland

Crítica:

UMA CANÇÃO DE AMOR 


 This song of the Man and his Wife is of no place and every place; you might hear it anywhere, at any time.

A aurora do cinema sonoro clareou os céus da sétima arte a um mês da estreia desta incontornável pérola do cinema mudo - o primeiro filme do alemão F. W. Murnau na América, a convite de William Fox. Estávamos em 1927 e o sucesso d'O Cantor de Jazz ditava a nova moda - e o futuro -, ofuscando todos os filmes silenciosos, por mais talentosos e meritórios que fossem. Felizmente, o tempo - não a bilheteira - pesa o verdadeiro valor artístico de uma obra. Noventa anos depois, aqui me encontro, a cantar o amor pelo filme, com o mesmo carinho com que outros tantos escreveram sobre ele, guiando-me a descobri-lo.

Quase sem intertítulos (que, à medida que a narrativa visual se desenvolve, são cada vez mais prescindíveis; e esta é uma façanha e tanto!), Aurora tem uma história simples, que se divide em três partes, cada uma delas com sensivelmente meia hora, cada uma delas com um tom distinto. As personagens não têm nomes, para reforçar a sua universalidade - como aliás as legendas iniciais fazem questão de referir.

Na primeira parte, temos o drama. O campo. A mulher da cidade (Margaret Livingston), toda aperaltada com brilhantes sapatos, sedutoras meias-de-liga e emancipados cigarros, passa férias no campo e atreve-se a seduzir um homem casado (George O'Brien), que até então vivia feliz com a sua mulher (Janet Gaynor) e o filho pequeno. Encontrando-se com ele na calada da noite, sempre às escondidas e à beira-lago, indu-lo a matar a mulher e a ir viver com ela na cidade. Porque não levar a esposa a passear de barco e depois, simplesmente, atirá-la à água? O dilema dura pouco tempo. O tonto, motivado e cegado pela excitação, lá põe o plano em prática, logo no dia seguinte. Sentado na cama, a sobreposição da montagem é brilhante: o homem imagina-se acariciado pela amante - só ela comanda a sua acção e o seu pensamento. Os sinais de que se prepara para fazer uma coisa errada não param de chamar a atenção: ou o cão se solta, entre latidos de alerta, avançando pelo lago adentro e de encontro à barca ou os patos voam, assustados. A esposa está radiante, ansiosa pelo passeio romântico, com o seu melhor chapéu, mas depressa se aperceberá do que está prestes a acontecer. Murnau é exímio na condução do suspense, na direcção de actores, assim como o é a dupla de protagonistas, nas suas notáveis e por demais expressivas interpretações. Quando o homem cai em si e se arrepende, a mulher foge pelos campos fora, escapando no elétrico que a guiará à cidade. O homem apanha o transporte a tempo e, juntos, seguem o ziguezague dos carris, com um futuro incerto. Don't be afraid of me!, repete-lhe ele, implorando pela desculpa.

Na segunda parte, temos a comédia romântica. Dá-se, portanto, uma clivagem radical no género e no rumo da história. Na cidade, a parafernália de afazeres e de atracções potencia o ressurgimento da paixão juvenil. É tempo e espaço para o perdão, para a expiação da culpa e para o recomeço. Quando os dois saem de braços entrelaçados da igreja, é como se tivessem renovado os votos e estivessem casados de fresco, prontos para uma revigorante lua-de-mel - de tal forma que avançam pela estrada adentro indiferentes ao trânsito e às movimentações (a edição engenhosa, uma vez mais, permite efeitos extraordinários), só despertando para a realidade com um buzinão sonoro. O filme é mudo, os actores não falam, mas já haviam alguns sons (Aurora foi o primeiro filme a usar o sistema Fox Movietone) e a virtuosa banda sonora já repicava um sino aqui e ali, em concordância com a sugestão da imagem. Isto são aspectos surpreendentes e inovadores. Na cidade, o cómico de situação é imperioso, da rua à barbearia, do fotógrafo ao parque de diversões - local último em que até os porcos andam de escorrega e se embebedam com vinho tinto. Cada local marca um ponto importante no fortalecimento da relação do casal, testando o ciúme, a dedicação e a genuinidade dos sentimentos. Quando apanham o elétrico de volta a casa, a noite já caiu há algumas horas.

Na terceira e derradeira parte, temos a tragédia. Uma violenta tempestade principia entre os ambiciosos cenários citadinos (a cidade nunca foi filmada em exteriores) e chega ao lago, onde os dois, mais apaixonados e unidos do que nunca, regressam finalmente a casa, no mesmo bote a remos onde o homem tentou o pior dos crimes contra a mulher, no primeiro acto. Os relâmpagos rasgam o céu e o vento tem tamanha força que vira o barco e os dois se perdem nas águas. O homem ata-a antes a um salva-vidas que preparara inicialmente para ele, não fosse acontecer o pior, e a prova de amor mais definitiva dá-se aqui: quando o homem prescinde da sua salvação para salvar a sua mulher. Quando amaina a confusão, o homem, sobrevivente, clama pela ajuda dos aldeões, que logo se apressam a procurar a mulher... mas quis o destino a fatalidade. A mulher desapareceu, deixando um rasto do salva-vidas, desfeito, pelas águas. A cena parece um castigo divino, para que o homem seja condenado pelos seus terríveis e monstruosos pecados. Quando o sol nascer, será um novo dia. A amante, radiante, já lhe assobia da rua. Quem sabe se Deus ou a sorte não dará, ao homem, uma última oportunidade... para a perdição... ou para a redenção.

Murnau solta a câmera do seu estatuto fixo e fá-la voar, acompanhando a acção com travellings pioneiros e, por isso, históricos, que se antecipam às intenções das personagens. É o caso da caminhada do homem, de encontro à amante, nas primeiras cenas do filme. Ou o vôo pelas antecâmeras da entrada do parque de diversões, já na cidade: a câmera avança sempre em frente, culminando na multidão entusiasmada, entre elefantes e carris de montanha-russa. Entre o campo e a cidade, uma poderosíssima história de amor, que apaixona gerações. Uma poderosíssima lição de moral. Um poderosíssimo pedaço de cinema. Aurora quebra quaisquer preconceitos - daqueles, tolos e absurdos, que inferiorizam o cinema antigo só porque não tinha meios, dizem. Naquele tempo, podiam não ter os recursos de hoje, mas tinham engenho e arte. Hoje, como sabemos, têm muitas vezes os recursos. Todavia...

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