quarta-feira, 20 de outubro de 2010

O HOMEM ELEFANTE (1980)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
Título Original: The Elephant Man
Realização: David Lynch
Principais Actores: Anthony Hopkins, John Hurt, Anne Bancroft, John Gielgud, Wendy Hiller, Freddie Jones

Crítica:

OS MONSTROS

Never. Oh, never. Nothing will die.
The stream flows, the wind blows, the cloud fleets, the heart beats.
Nothing will die.


Londres do século XIX: a cidade noturna, os fumos e os ruídos. Uma civilização industrializada, iluminada pelas invenções e pelo progresso. Uma civilização cruel, ofuscada pela insensibilidade e pela desumanidade. No circo, lado a lado com os animais, os monstros: os anões, os gigantes e os deficientes, as aberrações da natureza. Apresentado a sua extraordinária atracção à multidão, Bytes (Freddie Jones) proclama:

Life!... is full of surprises. Consider the fate of this creature's poor mother, struck down in the fourth month of her maternal condition by an elephant, a wild elephant. Struck down!... on an uncharted African isle. The result is plain to see... Ladies and gentlemen... The terrible... Elephant... Man...

Já as imagens de abertura do filme - prodigiosamente montadas por Anne V. Coates e perfeitamente aliadas à inquietante composição de John Morris - davam conta desta bizarra e insólita historieta fabricada, num tom surreal e perturbador. Alimentar o show-off e o espectáculo, horrorizar a plateia, rentabilizar a atracção e potenciar o maior lucro possível... só o dinheiro move Bytes, aproveitando-se da ignorância e do preconceito da gente, amedrontada pela diferença. People are frightened by what they don't understand.

O que está encoberto atrás da cortina, na sombra? Lynch adia a resposta, aumentando o suspense, progressivamente. Só mais tarde, quando o Dr. Frederick Treves (Anthony Hopkins, brilhante no underacting) resgata o freak para o hospital onde trabalha e lhe retira o pano, é que nos deparamos com o choque: a criatura é humana, de nome John Merrick (John Hurt) e ostenta um rosto de aspecto monstruoso e repulsivo, à primeira vista assustador, gravemente deformado e atrofiado por tumores subcutâneos. Uma doença rara, a Síndrome de Proteus (só em 1996 oficialmente diagnosticada e a partir de exames ao esqueleto do verdadeiro John Merrick) que condenou aquela inocente existência ao submundo, à humilhação e à degradação interior, à infinita dor de não ser nem aceite nem amado.

Dr. Fox: Have you ever mentioned his mental state?
Dr. Frederick Treves: Oh, he's an imbecile, probably from birth. Man's a complete idiot... Pray to God he's an idiot.

Não há imbecilidade, contudo, naquela pobre alma amaldiçoada. Apenas medo. John Merrick fala, tem consciência, tem moral, tem memória, sabe ler. Sabe de cor passagens inteiras dos evangelhos. É um homem civilizado, mas rejeitado. O storytelling desenvolve-se com aparente simplicidade narrativa, mas fá-lo de forma sólida e delicada, tocante e comovente. Aquilo que o Dr. Frederick lhe dá, a Merrick, é uma oportunidade para ser um homem - com dignidade. É uma possibilidade de se reencontrar a si próprio, de construir uma catedral interior de fé e confiança no mundo. Ou, pelo menos, em parte dele.

Apesar de tudo, as atracções jamais deixaram de estar centradas nele. Sem querer, Frederik tirou-lhe os holofotes do circo mas catapultou-o para os jornais. Am I a good man? Or a bad man? A emocionante história do Homem Elefante vira um fenómeno mediático e sobre ele recaem dezenas de olhares maldosos, sedentos de escárnio e maldizer. Quando John Merrick é raptado e novamente lançado para trás das grades do circo, a esperança esvai-se. A fotografia (Freddie Francis) cria uma atmosfera sinistra e asfixiante. Afinal, quem são os monstros?

I am not an elephant! I am not an animal!
I am a human being! I am a man!

Que revoltante.

David Lynch concretiza uma obra magistral, plena de humanismo. Um clássico absoluto e em tudo memorável.

20 comentários:

  1. aguardo com expectativa a tua crítica!

    Eu gostei imenso do filme (:

    ResponderEliminar
  2. Duvido que o filme me agrade, mas pesquisei sobre o homenzinho e é de facto um relato de vida chocante e comovente...

    Abraço

    ResponderEliminar
  3. Foi filme de que me lembro de ter gostado quando o vi na estreia, há cerca de 30 anos atrás (julgo que no Estúdio Apolo 70). Curiosamente nunca me apeteceu revê-lo nem comprar o respectivo DVD.
    Há casos assim, estranhos. A memória guarda uma referência, que é boa, mas o tempo como que coloca trancas à porta.


    O Rato Cinéfilo

    ResponderEliminar
  4. Adorei este texto, palavras usadas com muito rigor e adequação. E é mais um grande filme dos que aqui tens analisado e mais um grande filme de Lynch, que consegue criar uma história que é puro entretenimento, deixando o espectador completamente imerso no filme, a torcer pelas personagens, a interrogar-se sobre tudo, e ainda assim transparece um humanismo estrondoso - não precisou de duas horas de filme sem música, neo-realista, com pessoas dentro de salas completamente brancas a olharem-se em espelhos infinitos e afins ... (bom, sou eu a exagerar, óbvio).

    ResponderEliminar
  5. SARAH: Aí está a crítica. Também gostei imenso do filme. Como poderia não gostar? É um filme inesquecível.

    LOOT: Sem dúvida! ;)

    YIRIEN: A crítica já está disponível. Tal como tu, também o filme me marcou e tocou especialmente.

    RUI FRANCISCO PEREIRA: Penso que o filme não tem nada para não te agradar ;) Creio que te vais render ao filme. Podes não vir a idolatrá-lo, mas estou certo de que gostarás dele.

    RATO: Estou certo de que o voltarei a ver. Dê-me a vida tempo e saúde ;)

    DIOGO F: Muito obrigado pela leitura atenta, Diogo ;) Não sei se O HOMEM ELEFANTE é propriamente aquilo a que se chama "puro entretenimento". É um biopic e um drama poderosíssimo, nisso estamos de acordo. A segunda parte do teu comentário, não sei se a entendi bem... é um desabafo sobre as tuas considerações pessoais sobre Lynch? Sobre a sua obra, digo?

    Cumps.
    Roberto Simões
    » CINEROAD - A Estrada do Cinema «

    ResponderEliminar
  6. Já vi algumas das obras de David Lynch, nomeadamente The Lost Highway, Mulholland Dr., Twin Peaks e Eraserhead.
    Sem dúvida é alguém que se consegue destacar da multidão de realizadores.

    ResponderEliminar
  7. ROBERTO: Empreguei mal o termo "puro entretenimento", percebo. Não queria equiparar o filme aos tiros e explosões hollywoodescos completamente forçados. E nesse sentido, concordo contigo ao não concordares comigo. O que quis dizer, e para isso pego na segunda parte do comentário, que não compreendeste, foi que é possível ser incrivelmente humanista contando uma história que envolve o público emocionalmente, uma história clara, que quase sentimos que nos podia acontecer a nós. Ou seja, não precisamos de ser poetas apenas para alguns (ex: Béla Tarr - atenção, adoro Béla Tarr).

    Assim, o meu desabafo não tem nada a ver com Lynch, um realizador que adoro, mas sim com o facto da poesia não ser melhor do que a narrativa (mas sim, é um desabafo, mas em relação a umas declarações de Claude Chabrol, que li num pequeno livro seu, "Como fazer um filme"). ;)

    ResponderEliminar
  8. MIGUEL C: Bem-vindo ao CINEROAD. Ainda que O HOMEM ELEFANTE não conte com o registo surreal e tão marcadamente pessoal que Lynch viria a adoptar nos títulos seguintes, podemos afirmar - de facto - que é um autor que se destaca, mesmo numa obra como O HOMEM ELEFANTE.

    DIOGO F: Sim, nesse caso estamos de acordo. A poesia não tem que ser melhor do que a narrativa, assim como a narrativa não tem que ser melhor que a poesia. Os puristas classicistas preferirão sempre a poesia sobre todas as coisas, e compreendo-os em parte. Mas a narrativa como género e forma tem, igualmente, potencialidades sem limites. Pessoalmente, admiro imenso a narrativa poética. Penso que confere um tom muito mais requintado e etéreo às coisas. Lynch, quando formula o ataque do elefante sobre a mãe de Merrick, serve-se claramente da poesia; note-se a fluidez e a criatividade da montagem. Essas passagens - ou sequências - elevam claramente a narrativa d'O HOMEM ELEFANTE, quanto a mim, distinguindo-a das demais.
    Se nos quiseres aqui deixar as principais premissas do ensaio de Chabrol, teria muito gosto em lê-las e quem sabe discuti-las contigo.

    Cumps.
    Roberto Simões
    » CINEROAD - A Estrada do Cinema «

    ResponderEliminar
  9. Trata-se realmente de um filme bastante comovente, por sinal uma obra bastante acessível de David Lynch, o que é raro.. Deve ser das mais amadas dele pelo vários públicos.

    Cumprimentos

    ResponderEliminar
  10. Eis um filme que merece uma segunda visita da minha parte. Devo confessar que da primeira vez, o meu estado de espírito não era provavelmente o mais adequado para ver este filme.

    ResponderEliminar
  11. Essa obra-prima é o argumento perfeito contra aqueles que chamam Lynch de "bizarro por ser bizarro" e "misantropo".

    ResponderEliminar
  12. DEZITO: Disso tenho poucas dúvidas ;) Bastante comovente, mesmo.

    NUN0B: Merecerá com certeza ;) É um belíssimo filme, extremamente tocante.

    GUSTAVO: Penso que é um filme magistral, mas não genial ao ponto de reclamar o estatuto de "obra-prima". Apesar disso, tem - sim - um grande argumento, que mostra um lado de Lynch bem mais convencional.

    Cumps.
    Roberto Simões
    » CINEROAD - A Estrada do Cinema «

    ResponderEliminar
  13. Certamente um dos filmes que mais gosto do Lynch, os atores estão fenomenais e a direção do Lynch certeira, a maquiagem nem se fala, ótima!

    Vitor Silos
    www.volverumfilme.blogspot.com

    ResponderEliminar
  14. Este filme ainda está a faltar na minha colecção, nunca tive a oportunidade de o ver, tenho mesmo de colmatar essa falha.

    Grande blog!

    Cumprimentos

    ResponderEliminar
  15. VITOR SILOS: Subscrevo o seu comentário inteiramente. Grande filme de Lynch.

    MIGUEL C: Agradeço o elogio ;) É de facto um filme importantíssimo na filmografia de um cinéfilo. Um filme a rever sempre.

    Cumps.
    Roberto Simões
    » CINEROAD - A Estrada do Cinema «

    ResponderEliminar
  16. Gostei, é uma obra monumental, visceral e incisiva da vida de um homem estranho, diferente, mas único e acima de tudo igual a todos nós.

    Também gostei da tua crítica, bem estruturada e bastante aprazível. Trata-se de um grande filme, um filme atípico de Lynch, mas que me enche as medidas (ou quase). O seu lado emocional, apelativo é forte, a história também puxa por isso, mas de qualquer modo me parece que o retrato poderia ter sido mais densificado ou aprofundado, na perspectiva de relacionamento com o espectador.

    De resto não deixa de ter um óptimo argumento e realização, uma boa banda sonora (o tema adagio for strings é encaixado muito bem no final) uma grande fotografia (a opção do preto e branco é na minha opinião magistral, certeira) e ainda montagem, decoração e todo o departamento de arte destacáveis. De realçar ainda a fenomenal entrega e interpretação de John Hurt e a contenção em Hopkins.

    abraço

    ResponderEliminar
  17. JORGE: Obrigado ;) Por acaso não empregaria adjectivos como "monumental" ou "visceral" a este O HOMEM ELEFANTE, mas lá que é um filme magistral, disso não tenhamos dúvidas. Drama intenso.

    Cumps.
    Roberto Simões
    » CINEROAD - A Estrada do Cinema «

    ResponderEliminar
  18. Adorei-o por completo. Vi-o há trinta anos, e mais algumas vezes quando do lançamento em videocassette. Ainda não o vi em dvd.

    É o meu David Lynch predilecto. Mais do que Blue Velvet, inclusive.

    ResponderEliminar

Comente e participe. O seu testemunho enriquece este encontro de opiniões.

Volte sempre e confira as respostas dadas aos seus comentários.

Obrigado.


<br>


CINEROAD ©2020 de Roberto Simões