segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Nova Iniciativa: «AS ESCOLHAS DOS 20»

Em Novembro, as grandes iniciativas voltam ao CINEROAD.

Caros colegas, atenção à vossa caixa de e-mail.
Tenho um desafio a propor-vos.


Quem e Quais serão os escolhidos?

ESTREIA DIA 3 DE NOVEMBRO

Os participantes já foram todos convocados.

sábado, 18 de setembro de 2010

POR UM FIO (1999)

PONTUAÇÃO: BOM
Título Original: Bringing Out the Dead
Realização: Martin Scorsese
Principais Actores: Nicolas Cage, Patricia Arquette, John Goodman, Ving Rhames, Tom Sizemore

Crítica:

NOVA IORQUE FORA DE HORAS

I'd always had nightmares,
but now the ghosts didn't wait for me to sleep.

Em Por um Fio - presentes estão as reminiscências de Taxi Driver - o atormentado é Frank Pierce (Nicolas Cage, num grande papel), um paramédico do serviço de urgência de Nova Iorque, que deambula pela cidade, à noite, pronto a prestar socorro a qualquer momento.

Saving someone's life is like falling in love. The best drug in the world. For days, sometimes weeks afterwards, you walk the streets, making infinite whatever you see. Once, for a few weeks, I couldn't feel the earth - everything I touched became lighter. Horns played in my shoes. Flowers fell from my pockets. You wonder if you've become immortal, as if you've saved your own life as well. God has passed through you. Why deny it, that for a moment there - why deny that for a moment there, God was you?

As chamadas sucedem-se e a sua âmbulância cruza um autêntico inferno de condenados: miseráveis, drogados, prostitutas... Às tantas, a grande questão para ele é precisamente: para quê salvá-los, se ninguém os cura e se eternamente continuarão a ser o lixo da cidade? Há compaixão para com esses perdidos, mas, ao mesmo tempo, todos eles enchem as alas hospitalares, noite após noite, todos eles estão mortos e não há esperança de salvação. Não seria mais útil para a sociedade salvar apenas aqueles interessados na vida?

A contradição da profissão que desempenha começa a angustiar Frank, seriamente. A falta de dormir e de se distanciar desta atmosfera louca e sinistra impõe-se. Tenta despedir-se e afastar-se, mas simultaneamente sente misericórdia para com as personagens noctívagas, repetentes e reincidentes. O cansaço torna-se tão intenso que Frank sucumbe ao ritmo frenético das urgências, iluminado pelas luzes e pelas cores da cidade (fotografia de Robert Richardson), e começa a alucinar, assombrado pelas vidas que perdeu, e pelas vozes daquelas que lhe imploram por partir.

O filme é negro, satírico, e o humor que lhe verte da veia é cáustico, corrosivo (argumento de Paul Schrader, a partir do romance de Joe Connelly). O filme, de resto, encontra-se bem montado e bem realizado, virtuoso nos movimentos de câmera e na captação de todo o ambiente daquelas ruas. O restante elenco tem prestações convincentes; destaco Patricia Arquette, John Goodman e Tom Sizemore. O filme é bom, mas é claramente um filme menor de Martin Scorsese, tendo em conta os tantos títulos magistrais e/ou geniais que a sua carreira nos trouxe. Porém, é um feito que - sem dúvida - muitos outros realizadores gostariam de igualar.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

KUNDUN (1997)

PONTUAÇÃO: EXCELENTE
★★★★★
Título Original: Kundun
Realização: Martin Scorsese
Principais Actores: Tenzin Thuthob Tsarong, Gyurme Tethong, Tulku Jamyang Kunga Tenzin, Tenzin Yeshi Paichang, Tsewang Migyur Khangsar, Tencho Gyalpo, Sonam Phuntsok, Gyatso Lukhang, Tenzin Trinley, Jigme Tsarong, Robert Lin

Crítica:

A RODA DO TEMPO
E O GRANDE SILÊNCIO

I am a reflection, like the moon, on water.
When you see me, and I try to be a good man, see yourself.


Sob o espectro da eternidade, ao longo do qual a natureza renasce e reincarna, ciclicamente, os budistas acreditam no nirvana, um estado sublime de pureza e de libertação, no qual as almas superam a existência, os sentidos e o material e atingem a paz absoluta no imaterial. Só a meditação e a introspecção, no grande silêncio e na serenidade deles próprios, lhes permitirá essa iluminação. Kundun não é senão um épico visionário e magistral, dotado de uma sensibilidade extraordinária, que nos conduz pela transcendência dessa espiritualidade.

O estilizado argumento de Melissa Mathison conta-nos a história de Tenzin Giatso, a criança que, com apenas dois anos e meio, foi encontrada e escolhida para liderar os deveres religiosos e políticos do seu país, o Tibete, e que desde então se apresentou ao mundo como o sucedâneo de uma adorada e inspiradora linhagem: a linhagem do Dalai Lama.

I will liberate those not liberated. I will release those not released. I will relieve those unrelieved. And set living beings in nirvana.
Dalai Lama

Tenzin Giatso cresce entre os monges, no Palácio de Potala, desde os tempos em que foi encontrado em criança e nos quais não teve oportunidade, efectivamente, para ser criança (I am only a boy); ressoam as reminiscências de O Último Imperador, de Bertolucci. Tenzin torna-se um estudioso e um pensador erudito, fascinado por sapatos, cinema e por todas as invenções do ocidente às quais tem acesso, e um representante máximo da não-violência. Dalai Lama doesn't believe in war. Quando a ameaça comunista da China de Mao Tse-Tung reclama o Tibete como parte integrante do seu território e impõe a guerra, a missão de zelar pela espititualidade e pela paz de um mundo em sangue revela-se tremendamente dificultada. O império chinês intensifica a opressão, o conflito invade as suas fronteiras, alastrando-se na sua moral e consciência.

Religion is poison. It undermines the race and it retards the progress of the people. Tibet has been poisoned by religion.
Mao Tse-Tung

Tibet has never been part of China. We are different races. We are different cultures. We need change, we know that. But we could do it alone. We were just about to do it alone. (...) If we agree that we are part of China, nothing else will matter. Not trade, not defense. We will be lost.
Dalai Lama

Como lutar com um inimigo quando a nossa religião tem como arma apenas e só o silêncio e a meditação? A menos que deles resulte a acção essencial, o entendimento entre os diferentes povos não será possível. Às tantas, só o exílio lhe é possível, em Dharamsala, na Índia. A profundidade da história, essa, sentimo-a a cada instante.

Kundun atinge níveis de uma perfeição técnica aos quais raríssimas obras se poderão igualar. A fotografia de Roger Deakins, por exemplo, é de uma beleza não só impressionante e desarmante como de cortar a respiração, verdadeiramente. É como poesia pintada a ouro. Por vezes, ecoa Kurosawa na composição do plano. A banda sonora de Philip Glass é absolutamente magnífica e lança-nos um feitiço inesquecível. Como uma melopeia, plena de harmonia e en
volvência, une-se com o genial trabalho de montagem de Thelma Schoonmaker na criação de uma cadência hipnótica, que nos inebria durante toda a experiência e que faz com que a estrutura episódica do argumento flua com virtuosa densidade poética. Poesia, poesia, poesia. O guarda-roupa e todos os cenários (Dante Ferretti) são de um detalhe, exuberância e requinte notáveis - daí o filme reclamar uma autenticidade poucas vezes conseguida - e a câmera de Scorsese, por fim, num movimento contínuo e inspirado, atinge momentos de uma subtileza, maturidade e simbolismo assinaláveis. Note-se, a respeito do simbolismo, toda a carga semântica que a construção e destruição daquela colorida mandala, já no final, potencia.

É neste Kundun, um dos filmes menos citados do mestre Martin Scorsese, curiosamente, que encontro a plenitude da excelência e o reflexo da genialidade. Creio que será porventura numa obra como esta que Scorsese concretiza a expiação da violência que tão frequentemente assombra os seus filmes. Pessoalmente, considero Kundun um dos seus melhores filmes. Puro deleite cinematográfico, do melhor cinema que pode existir.

O TEMPO QUE RESTA (2005)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
Título Original: Le temps qui reste
Realização: François Ozon
Principais Actores: Melvil Poupaud, Jeanne Moreau, Valeria Bruni-Tedeschi, Daniel Duval, Marie Rivière, Christian Sengewold, Louise-Anne Hippeau

Crítica:

O ADEUS

Tu sens mon coeur?… Il bat encore.

Desta vez tenho poucas palavras para escrever. Fiquei desolado, claramente emocionado. A simplicidade da história e, ao mesmo tempo, a sua profunda carga emocional e sentimental, a partir da brilhante interpretação de Melvil Poupaud e da magistral realização de François Ozon. Podia ser mais um filme, mas é um grande filme. Bem fotografado, bem montado e com um argumento absolutamente excepcional.

Um reencontro com as memórias mais íntimas e pessoais perante as evidências de um cancro, que prenuncia a morte. A incapacidade da despedida, a necessidade do perdão, o vazio e a solidão, a tristeza e a desolação, o indiscritível. A irmã, o pai, a avó, o namorado, um futuro filho, o mar, a vida... Dói...

domingo, 12 de setembro de 2010

AGUENTA-TE, CANALHA (1971)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
Título Original: Giù la Testa
Realização: Sergio Leone
Principais Actores: James Coburn, Rod Steiger, Maria Monti, Rik Battaglia, Franco Graziosi, Romolo Valli, Domingo Antoine, Antoine Saint-John, Vivienne Chandler, David Warbeck, Giulio Battiferri

Crítica:

ERA UMA VEZ A REVOLUÇÃO

A revolution is not a social dinner, a literary event, a drawing on an embroidery; it cannot be done with elegance and courtesy.
The revolution is an act of violence.

Mao Tse-tung

México, 1913. Antes da dinamite, uma intensa e espumante chuva de mijo; a abrir o filme, indesperadamente, provocando o caos numa comunidade de formigas, aparentemente pacata. Chom, chom!... Chom, chom!... Sacode-se o instrumento, sacodem-se os pés sujos e descalços, empoeirados pela aridez da paisagem, fecha-se a braguilha. Rosto barbudo e anafado, tez suada e cozida pelo sol, um chapéu a condizer com o fato grosseiro e miserável. Chom, chom, chom!... Está apresentado o protagonista do filme.

Ressoa um estrondo de arma, Juan Miranda vislumbra ao longe uma veloz e apetecível carruagem, que se aproxima. Quando a caravana passa por ele, chicoteada sobre oito cavalos, Juan faz-lhe sinal. A princípio, parece ignorá-lo, oferecendo-lhe o desprezo condizente com o seu aspecto - desprezível. Todavia, pára mais à frente e o vagabundo corre para ela: Señor! Señor! Señor! Pede boleia para San Felipe, com a melhor das desculpas: my mother is dead! Um dos condutores da carruagem diz-lhe que vá a pé, enquanto aperta as correias dos animais. Mas enfim, nada que uma notinha não resolva, $$$$$, não é verdade? Chom, chom!... Chom, chom!... Antes de entrar, é revistado, não vá tratar-se de um desses bandidos ou assassinos que fazem esperas no deserto. No entanto, encontram-lhe apenas uma... meia-sandes, que fazem questão de atirar para o chão e a qual Juan se recusa a desperdiçar, recuperando-a rapidamente.

Já no interior do veículo, segue a viagem, depara-se com gente da alta sociedade, toda muito elegante e requintada, que o olha de alto a baixo, dando depois continuidade à sua conversa chata e racista. O silêncio é tanto de cortar à faca... como de rir às gargalhadas. A situação até que é séria, mas com uma personagem tão simples e desajeitada como Juan, sempre a coçar-se por todos os lados, e com uma encenação plena de ironia como a de Sergio Leone, é completamente impossível. Aguenta-te, Canalha é simplesmente notável enquanto comédia.

A seguir, que montagem extraordinária, assinada por Nino Baragli: faces, bocas, olhos, faces, bocas, olhos... bocas, olhos, bocas, olhos, bocas, olhos; uma brilhante sequência de extremos e obssessivos zooms e close-ups, invocando a boa memória de A Greve (1925), de Eisenstein, enquanto os ricaços degustam uma saborosa e variada refeição e Juan quase boceja. Mas a monotonia não dura para sempre.

Mais à frente, a carruagem cruza-se com um bando de pistoleiros ladrões e o tiroteio começa. Quem são, quem são, esses espalhafatosos foras-da-lei? O Papa, Chulo e os outros chulitos! Que é como que diz, o suposto pai de Juan e os seus seis filhos, todos eles de mães diferentes! Chom, chom, chom!... Está apresentada a família do hilariante Juan Miranda, pela qual nos apaixonamos, desde logo, e que rapidamente fuzila ou desnuda os viajantes, atirando-os por fim aos porcos e assumindo a posse de todos os seus bens.

Logo depois, é-nos apresentada a personagem de James Coburn, o enigmático John H. Mallory. Irlandês, de poucas palavras mas de farto bigode e fumador de charutos, é um profundo amante da revolução e um adepto absoluto da dinamite. I used to believe in many things, all of it! Now, I believe only in dynamite. O forasteiro viaja tranquilo e seguro da si na sua motocicleta, quando as balas de Juan o abordam. Ardiloso, o estrangeiro não tarda em surpreender tudo e todos com as suas artes mágicas, possantemente explosivas. É por esses instantes que a Juan lhe ocorre: que bando implacável formariam, se John se juntasse à família! John e Juan, os dois, a assaltarem bancos até à América. Nem que lhe torne a furar os pneus uma e outra vez, terá que conseguir tamanho elemento para a sua estirpe de bandoleiros! Perante tão lucrativa ideia, Leone chega mesmo a colocar um letreiro imaginário sobre a cabeça do irlandês, dizendo: Banco Internacional de Mesa Verde! $$$$$! Chom, chom!... Chom, chom!...

 ... the most beautiful, wonderful, fantastic, gorgeous, magnificent bank in the whole world! When you stand before the bank and you see it has the gates of gold, like it was the gates of heaven. And when you go inside, everything, everything is gold! Gold spittoons, gold handles, and money, money, money is everywhere. And you know, I know 'cause I saw this when I was eight years old. I went there with my father. He tried to rob the bank, but they caught him. (...) Listen, Firecracker. Now you listen to me. Listen, why don't you come with me, eh? And we will work together and we will become rich!
Juan Miranda

John, contudo, não está minimamente interessado na parceria. Está no México com outros intuitos. Sempre que pode, por isso, esquiva-se e evapora-se. Nem desconfia o mexicano que está perante um terrorista fortemente procurado, pelo qual o governo inglês oferece a aliciante quantia de 300 libras! $$$$$! Quem é, afinal, John Mallory? Noutros tempos, fora um activista revolucionário no seu país. Os constantes flashbacks ao longo de toda a obra dão conta de um passado feliz, ao qual nunca mais voltou nem nunca mais poderá voltar. As revoluções, afinal, têm consequências irreversíveis.

John Mallory: Oh, we fought a revolution in Ireland.
Juan Miranda: A revolution? Seems to me the revolutions are all over the world. You know, they're like the crabs! We had a revolution here. When it started, all the brave people went in it, and what it did to them was terrible. Pancho Villa, the best bandit chief in the world, you know that? This man had two balls like the bull. He went in the revolution as a great bandit. When he came out, he came out as what? Nothing. A general, huh? That, to me, is the bullshit!

Sempre que se separam, o destino volta a reuni-los. A acção é pausada, ao melhor estilo de Leone, mas os encontros são explosivos. Duck, you sucker! Com o tempo, John envolve Juan na grande conspiração revolucionária do México - tierra y libertad! - tornando-o num herói aclamado pelo povo!

Where there's revolution there's confusion and when there's confusion a man who knows what he wants stands a good chance of getting it.
John Mallory

Desde a libertação dos presos ao assalto ao comboio, a missão torna-se cada vez mais arriscada e perigosa e a comédia dá lugar ao drama, à reflexão sobre a violência, sobre a revolução e sobre as suas consequências. A pólvora é uma invenção mortal e até o maior dos bandidos tem coração, quando a tragédia bate à sua porta, dizimando os seus entes mais queridos. A contemplação dos mortos e o desolamento esbatido no rosto de Juan é assombroso. Quantos não são os sacrifícios pessoais que não se seguirão em nome da causa. A banda sonora de Ennio Morricone (numa nova cooperação com Leone e uma vez mais fascinante, irreverente e singular) torna-se mais lírica e finalmente soa, com sotaque certeiro: - não o chom... chom... chom!, mas o - sean... sean... sean!

A câmera de Leone é implacável, magistral. Como as suas obras beneficiam dessa arte verdadeiramente destemida, audaciosa e, em última instância, sublime de saber filmar. As interpretações dos actores são tão carismáticas como as de O Bom, O Mau e O Vilão ou de Aconteceu no Oeste, tanto James Coburn como Rod Steiger agarram os seus papéis com especial dedicação, contribuindo eficazmente para o triunfo e sucesso da obra.

Depois, o entretenimento puro volta à carga, pondo fim à melancolia. E como? Com a queda de um cocó, na tola do mexicano. Chom, chom!... Chom, chom!... A dupla John e Juan avança para a concretização do plano final e a irrepreensível técnica do cineasta manifesta-se a cada compasso. O choque frontal dos comboios é impressionante. Quando os créditos assumem o ecrã, apetece-nos gritar: Raios! O filme é mesmo bom! Mas só cantarolamos, repetidamente: Chom, chom, chom!...

Grande, grande filme. Absolutamente memorável.

BAMBI (1942)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
Título Original: Bambi
Realização: David Hand

Filme de Animação
Crítica:

O BOSQUE ENCANTADO
Árvores, troncos e ervinhas, coelhos, esquilos e doninhas, flores, bolotas e cogumelos, codornizes corujas e outros passarinhos, riachos, borboletas e inocência. Apetece dizer que Bambi é de uma época nostálgica em que ainda se faziam filmes para crianças. E, na verdade, já não os fazem assim, tão encantadores, simples e puros.

A obra abre que nem uma canção de embalar, quando a natureza da floresta desperta para a beleza e magia da Primavera. A vida floresce entre todos os animais, entre todos os seres e há alegria no ar. Bambi nasce e todos os animais se dirigem para a clareira, para conhecerem o desajeitado jovem príncipe que, do cimo das suas quatro altas e esguias pernas, tenta o equilíbrio, com dificuldade. Há uma sincronia perfeita entre a imagem, mais abstracta no segundo plano, e a maravilhosa composição musical de Edward H. Plumb. Há sequências magníficas e de uma esplendorosa criatividade: por exemplo, quando a música nasce do tilintar das gotas da chuva sobre as folhas, subtilmente. Depois, há outras longas passagens sem diálogos e onde esta interactividade entre música e imagem se revela um autêntico triunfo.

As folhas secas caem sobre o riacho e dançam ao sabor do vento, o manto branco anuncia o rigor do Inverno. Mudam as estações e Bambi desenvolve, prodigiosamente, o seu candor de fábula: uma fábula sobre a descoberta do mundo e daquilo que nos rodeia, uma fábula sobre o crescimento, sobre a amizade (o coelhinho tambor ou a doninha flôr serão seus amigos para a vida) e sobre os bons valores (os cumprimentos, a boa educação ou o respeito pelos mais velhos, nomeadamente). Uma fábula sobre os obstáculos que, ao longo de toda a vida, atravessamos, sejam eles as rivalidades, os riscos ou mesmo a dor da perda. A morte da mãe de Bambi é, a propósito, uma cena comovente e crucial na sua etapa enquanto ser vivo. Note-se o poder destrutivo do Homem, tanto pela caça como pelos incêndios - as principais ameaças e os maiores perigos para toda a vida e diversidade do bosque. Bambi lança, pois, uma importante mensagem ecológica sobre a preservação da natureza.

Com o regresso da Primavera, despertam as paixões e o ciclo da vida perpetua-se. Quando Bambi ganha um adversário pela conquista amorosa de Falina, a equipa artística tem o cuidado de alterar a estética cromática, como forma de representar e simultaneamente condenar a violência.

Enfim, um clássico deslumbrante e verdadeiramente bonito.

EM PARIS (2006)

PONTUAÇÃO: BOM

Título Original: Dan Paris
Realização: Christophe Honoré
Principais Actores: Romain Duris, Louis Garrel, Guy Marchand, Joana Preiss, Marie-France Pisiers, Alice Butaud

Livre na forma e de pretensões artísticas maiores, brilham o argumento e o trabalho dos actores, sobre todas as coisas. Há Garrel nu, várias vezes, para delírio dos adolescentes que devoram este tipo de cinema, há melodrama, humor e intimidade quanto baste, há sobretudo uma proximidade assinalável com a realidade do quotidiano e beleza naquela relação entre irmãos. Honoré conflui leveza com encantamento num produto claramente acima da média, mas sem potencial para muito mais.

A MARATONA DOS ÉPICOS - Encerramento

O CINEROAD - A Estrada do Cinema encerra aqui a sua Maratona dos Épicos que, entre 03 e 11 de Setembro, encheu o blogue de críticas, apresentações, vídeos, participações especiais, comentários e visitas.

A propósito, as visitas do CINEROAD duplicaram durante estes dias e foram aceites, diariamente, dezenas de comentários, pelo que o profundo agradecimento que tenho a tecer se dirige a todos.

Para eventual curiosidade, segue o ranking dos 5 posts mais visitados da Maratona:

1º lugar | Ben-Hur
2º lugar | Álamo
3º lugar | Spartacus
4º lugar | Gladiador
5º lugar | Tróia

Ficaram um sem fim de épicos por tratar, como esperado; muitos deles filmes absolutamente obrigatórios. Mas estou certo de que falaremos deles futuramente e que não deixaremos que a sua chama se apague.

Obrigado a todos e, já sabem, vemo-nos na estrada!

sábado, 11 de setembro de 2010

BEN-HUR é o melhor épico de sempre!

Após uma votação inicialmente renhida e ultimamente mais expressiva, ultrapassando a fasquia dos 150 votos, BEN-HUR acaba por conquistar o ouro, o primeiro lugar do pódio desta Maratona dos Épicos, com 53% dos votos. Em segundo lugar, O SENHOR DOS ANÉIS, com 47% dos votos.

Obrigado a todos os que votaram!

OS DEZ MANDAMENTOS (1956)

PONTUAÇÃO: BOM
Título Original: The Ten Commandments
Realização: Cecil B. DeMille
Principais Actores: Charlton Heston, Yul Brynner, Anne Baxter, Edward G. Robinson, Yvonne De Carlo, Debra Paget, John Derek, Cedric Hardwicke, Nina Foch, Martha Scott, Judith Anderson, Vincent Price, John Carradine, Olive Deering, Douglass Dumbrille

Crítica:

O PREDESTINADO

So let it be written, so let it be done.

Uma das mais belas histórias da Bíblia obteve, no ano de 1956 e graças à ambição sem limites de Cecil B. DeMille, a sua melhor adaptação cinematográfica - em live action - de que há memória. O bebé hebreu que é abandonado nas águas do Nilo, numa arca de juncos, no tempo em que Ramsés I proibia a procriação do povo de Deus e o escravizava arduamente, é recolhido na corte do Faraó e feito Príncipe do Egipto, desconhecendo o seu passado e a sua origem.

Memnet: Do you know the pattern of this cloth?
Bítia: If my son is wrapped in it, it is a royal robe!

Mais tarde, ao descobrir a sua verdadeira identidade, Moisés decide juntar-se aos seus e conhecer o outro lado do chicote.

If this god is God, he would live on every mountain, in every valley. He would not be the god of Ishmael or Israel alone, but of all men. It is said he created all men in his image. He would dwell in every heart, every mind, every soul.

Expulso do Egipto pelo próprio Faraó, e após a desolação do deserto, encontrará Deus no cimo do Monte Sinai, onde Ele o iluminará e o incubirá da missão de libertar o seu povo da escravidão, de encontro à Terra Prometida, Canaã, desafiando Ramsés e todo um Egipto que o adoptara de braços abertos.

O filme levanta questões pertinentes: serão os homens
propriedade do estado, de um ditador como Ramsés, ou livres almas sob Deus? God made men. Men made slaves.

O argumento, escrito a quatro mãos (Æneas MacKenzie, Jesse Lasky Jr., Jack Gariss e Fredric M. Frank) consiste num exercício de escrita assaz prodigioso, que possibilita uma metragem de aproximadamente 220 minutos a partir de uma história que, nas sagradas escrituras, se resume em poucas páginas. Um dos maiores encantos da obra reside, precisamente, nesses instantes maravilhosos em que a eloquência das declamações, embebida na poética dos evangelhos e protagonizada tanto pelos actores como pelo narrador, nos arrebatam por completo. A magnífica banda sonora de Elmer Bernstein constitui, também, uma das dádivas maiores da obra. No momento da travessia do Mar Vermelho, então, e juntamente com a espectacularidade dos revolucionários efeitos especiais (John P. Fulton), possibilita um clímax absolutamente deslumbrante, impressionante e apoteótico, que se estende até ao episódio do forjamento dos dez mandamentos.

There's no freedom without law.

Os valores de produção são verdadeiramente monumentais: não só os já referidos efeitos especiais, mágicos e notáveis ao logo de toda a obra, como os cenários (Hal Pereira, Walter H. Tyler, Albert Nozaki, Sam Comer, Ray Moyer) que, do mais ínfimo pormenor ao mais imponente e vistoso ídolo de um Egipto no seu máximo esplendor arquitectónico, são de um trabalho majestoso e extraordinário, capaz de justificar, por si só, o valioso orçamento da obra. O guarda-roupa (Edith Head, Ralph Jester, John Jensen, Dorothy Jeakins, Arnold Friberg) é rico, luxuoso e exuberante, com uma panóplia de corte e costura notável! Desfilam as mais variadas cores e texturas, enchendo o ecrã de uma pura beleza visual.

Ainda que nem sempre o DeMille-realizador esteja na sua melhor forma, nomeadamente na primeira parte da obra em que o ritmo e a dinâmica se tornam, por vezes, um tanto ou quanto fastidiosos, e o movimento de câmera não se encontra particularmente inspirado, é na segunda parte que o filme ascende a um patamar superior, culminando nalgumas das cenas mais memoráveis da História do Cinema e que povoam, certamente, o nosso imaginário. A direcção de centenas de figurantes e a própria direcção de actores revela-se inequivocamente magistral: Charlton Heston como Moisés,
Yul Brynner como Ramsés II ou Anne Baxter como Nefretiri são papéis deveras excepcionais.

Reprovável em toda a história só mesmo a egocêntrica contradição moral que é condenar a autoridade déspota e assassina do Faraó e, com a mesma facilidade, glorificar a fé em Deus, ele próprio uma entidade monstruosa e autoritária, que dizima inocentes sem qualquer dó ou piedade. Mas enfim, contradições bíblicas às quais o filme não conseguiu fugir.

Independetemente desse aspecto, fica a memória de um épico não só grandioso como megalómano, naquele que foi um dos momentos altos do cinema de Hollywood.

OS DEZ MANDAMENTOS - O Trailer



Um filme arrojado e espectacular.

OS NIBELUNGOS de Fritz Lang, segundo João Palhares

Agradecimento Especial:
João Palhares, Cine Resort

Fritz Lang e Thea von Harbou adaptaram a lenda dos Nibelungos, nos anos 20, para o grande ecrã. Lang com este díptico (já antes tinha feito Die Spinen e fez depois, o épico indiano), afirmou-se como o maior artesão do épico.

O filme demorou dois anos a ser finalizado e reflecte toda um rigor formal e temático, com tanto de épico como interior. É dividido em duas partes (A Morte de Siegfried e A Vingança de Kriemhild) e descreve, segundo Lang, quatro mundos, com diferentes condutas e ideais. Ora é o contraste entre estas duas partes e estes quatro mundos que motiva Lang e o permite trabalhar as escalas dos planos e fazer a transição do grande para o pequeno e do distante para o próximo, do épico para o mais íntimo, das massas para as personagens. O contraste permite-lhe, também, tecer considerações sobre a Alemanha sua contemporânea, uma Alemanha dividida e nas vésperas da subida e notoriedade do partido nazi. É, sim, um hino nacionalista (largamente financiado pela UFA), mas com uma ideologia e uma crença que só podiam ser de quem se preocupava social e politicamente, e Lang foi dos maiores sociólogos cinematográficos.

De resto, estão aqui os temas da aproximação do Mal e da sua propagação, como ente invisível, aqui culpa do mais nobre sentimento humano, o Amor. O de Kriemhild por Siegfried...

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

ALEXANDRE, O GRANDE (2004)

PONTUAÇÃO: BOM
Título Original: Alexander
Realização: Oliver Stone
Principais Actores: Colin Farrell, Val Kilmer, Anthony Hopkins, Jared Leto, Rosario Dawson, Angelina Jolie, Jonathan Rhys-Meyers, Rory McCann, Elliot Cowan, Joseph Morgan

Crítica:

O HOMEM E O MITO


We are most alone when we are with the myths.

All men reach and fall... reach and fall... - disserta o velho Ptolomeu (Anthony Hopkins), ao narrar a história de Alexandre ao escriba Cadmos, na Grande Biblioteca de Alexandria, Egipto, quarenta anos após a morte do lendário rei. Ptolomeu acompanhou, desde cedo, as campanhas de Alexandre pelo norte de África, pela Ásia... até à Índia. Viveu de perto aquele mito vivo: I've known many great men in my life, but only one colossus. (...) He was a god, Cadmos, or as close as anything I've ever seen.

Na verdade, a infância de Alexandre foi profundamente marcada pelos clássicos de Homero e pela mitologia grega. A cena da Gruta dos Mitos, com o seu pai Filipe (Val Kilmer, excepcional), rei da Macedónia e de um só olho, é toda ela um autêntico compêndio mitológico que estabelece um paralelo muito próximo com a própria existência de Alexandre. Primeiro, Filipe eleva a tocha na escuridão e ilumina a gravura de Aquiles. He could've had a long life, but there would be no glory. Alexandre já conhecia, desde o berço, a história do bravo herói do assalto a Tróia: He's my favorite. (...) He loved Patroclus, and avenged his death. (...) He lived without fear. Afinal, Olímpia, sua mãe, acreditava descender do sangue real de Aquiles. Desde que o seu querido filho nascera que o tratava por: my little Achilles. Depois, seguiu-se Prometeu, titã filho de Jápeto, aquele que roubou o segredo do fogo e o deu ao Homem. Zeus ficou tão zangado que o amarrou a uma pedra, no Grande Cáucaso. Todos os dias a águia divina lhe debicava o fígado, mas todos os dias o órgão se regenerava para ser debicado no dia seguinte. A tocha aclareou, de imediato, a imagem de Édipo, que furou os olhos ao descobrir que matou o pai e que desposou a mãe. Em seguida, Medeia, que matou os dois filhos por vingança quando Jasão a trocou por uma mulher mais nova. Alexandre jamais admitiria que a mãe fosse capaz de tamanha monstruosidade. Porém, Filipe adverte-o: It's never easy to escape our mothers, Alexander. All your life beware of women. They're far more dangerous than men. Por fim, Héracles, que mesmo após ter completado os doze trabalhos, se viu punido pela loucura e dizimou a descendência. Aquiles, Prometeu, Édipo, Medeia, Héracles. As cinco figuras mitológicas apresentadas nesta cena metaforizam a história de Alexandre, nas suas mais variadas relações com os seus próximos, e traçam-lhe um autêntico roteiro psicanalítico. Nesta cena, é o pai quem o aconselha e prepara para o futuro:

A king isn't born, Alexander, he is made. By steel and by suffering. A king must know how to hurt those he loves. It's lonely. Ask anyone. Ask Heracles. Ask any of them. Fate is cruel. No man or woman can be too powerful or too beautiful without disaster befalling. They laugh when you rise too high. And they crush everything you've built with a whim. What glory they give in the end, they take away. They make of us slaves.

Contudo, é a mãe Olímpia, fiel devota do deus grego Dioniso, a pessoa mais próxima de todas, a pessoa em quem ele mais confia. E ela e Filipe odeiam-se. Alexandre sabe-o perfeitamente. Aliás, vive neste ambiente de rivalidade entre pai e mãe desde que se lembra. Numa das primeiras cenas do filme, Alexandre assiste a uma fortíssima discussão entre o pai bêbedo e irado e a mãe, sempre rodeada de serpentes e sedenta de vingança: In my womb I carried my avenger! Também ela o aconselha, seduzindo-o para os seus planos:

Why won't you ever believe me? Philip did not want you! You had a condition of the breathing and he wanted to leave you in the mountains for the birds to peck out your eyes!
You are everything Phillip was not. He was coarse, you are refined. He was a general, you are a king. He could not rule himself. And you shall rule the world.

Beware most of all of those closest to you. They are like snakes, and can be turned. (...) in you, the son of Zeus, lies the light of the world. Your companions will be shadows in the underworld when you are a name living forever in history as the most glorious, shining light of youth. Forever young, forever inspiring. Never will there be an Alexander like you, Alexander the Great.


O equilíbrio, Alexandre encontra-o na educação que os seus perceptores lhe dão, tanto nas lutas corpo a corpo como no cultivo da mente. Aristóteles foi seu mentor. Ensinou-lhe geografia, história, lendas e mitos, ensinou-lhe sabedoria, moderação e sensatez. Mas desde novo que ansiava por se equiparar os heróis lendários, quiçá ultrapassá-los. Expandir o reino e criar um império até à Índia, por onde viajaram Héracles e Dioniso, Teseu, Jasão e Aquiles, todos eles vitoriosos, unindo todos os povos. The East has a way of swallowing men and their dreams, but still to think it's these myths that lead us toward the greatest glory... (...) Beware of what you dream - for the gods have a way of punishing such pride - alerta-o o grande mestre. Aristóteles fala-lhe também do verdadeiro potencial do amor entre os homens:

When men lie in lust it is a surrender to the passions and it does nothing to the excellence in us. (...) But when men lie together and knowledge and virtue are passed between them, that is pure and excellent. When they compete to bring out the good, best in each other, this is the love between men that can build a city state and lift us from our frog pond.

Qual Aquiles e Pátroclo, também o amor entre Alexandre e Hefaísto será determinante para os sucessos do futuro imperador. It was said later that Alexander was never defeated in his lifetime, except by Hephaistion's thighs - remata Ptolomeu, na narração, com saudável humor. De louvar a bravura de Oliver Stone no retrato despudorado da pansexualidade de Alexandre.

Com o assassinato de Filipe (Oliver Stone deixa no ar a possibilidade de ter sido Olímpia a arquitectar a fatal conspiração, receosa de que os bastardos viessem um dia a assumir o trono), Alexandre é proclamado rei da Macedónia. The king lives! Alexander, son of Phillip! May the gods bless Alexander! Alexander is king! Os seus ideiais têm finalmente oportunidade para se expandirem; Édipo. Alexandre reúne então um exército de quarenta mil soldados treinados e avança para a invasão da Pérsia, planeada desde o tempo de seu pai. Marcha até ao Egipto, sempre vencedor, onde é proclamado faraó. Com apenas vinte e um anos, o Oráculo de Siwa aclama-o declara-o o verdadeiro filho de Zeus. Alexandre esteve para Zeus como Jesus para Deus. Não dá que pensar na incomensurável importância da sua figura na altura?

Em Gaugamela, o exército de Alexandre defrontou duzentos e cinquenta mil bárbaros, liderados pelo Dário III da Pérsia. Digo-vos, muito sinceramente: está ainda para nascer, na História do Cinema, uma cena de batalha simultaneamente tão complexa, tão massiva e impressionante como aquela que tão genialmente Oliver Stone criou. Conquer your fear, and I promise you, you will conquer death! Da grandiloquência de Alexandre, avançamos, praticamente sem diálogos, para o fulgor da guerra. Setas, lanças, espadas, escudos, cavalos, camelos, carros. Força, pujança, espectáculo. A câmera, como ninguém, lidera a narrativa, plena de ousadia, avançando e esvoaçando sobre a refrega. Tomar o ponto de vista da águia, que desde os primeiros tempos anuncia a glória de Alexandre, é qualquer coisa de extraordinário. Há planos aéreos milagrosos, em muito graças às infinitas possibilidades dos efeitos digitais. Há slow motion, há ritmo frenético e avassalador, em toda a encenação. As estratégias das cargas desenham-se em imagens belíssimas, magnificamente fotografadas por Rodrigo Prieto e com uma paleta de cores notável. A batalha é dourada, empoeirada pelas areias do deserto, enobrecida pelo vermelho do sangue e de algum figurino. Todo o trabalho de montagem (Yann Hervé, Gladys Joujou, Alex Marquez e Thomas J. Nordberg) e de orquestração dos efeitos sonoros é verdadeiramente incrível. E a banda sonora de Vangelis, por Zeus!, é uma das maravilhas maiores do Cinema! Genial, genial, genial. Que triunfo monumental. Por fim, a chacina revela-se vantajosa. Fortune favours the bold. Alexandre opta por ajudar o flanco de Parménio e deixa Dário escapar, mas antes disso profere aos céus: You can run till the ends of the earth, you coward! But you'll never run far enough!


Após o confronto, Alexandre chora entre os feridos. All greatness comes from loss. A águia alimenta-se das vísceras dos cadáveres. Um flashback lembra a gravura de Prometeu, na Gruta dos Mitos.

A entrada na exótica e deslumbrante cidade da Babilónia é inteiramente gloriosa. Alexandre é recebido por milhares e milhares e sente-se amado por todos. Introdu-lo na exuberância e beleza transcendentais daquele autêntico paraíso um onírico e celestial tema de Vangelis. Abundam os jardins, os haréns, os animais raros, o luxo e as cores vivas. O guarda-roupa (Jenny Beavan) assume-se prodigiosamente faustoso. A direcção artística, audaz, concebe um trabalho megalómano, da elegância do design arquitectónico (Jan Roelfs) aos mais ínfimos pormenores da decoração (Jim Erickson). Alexandre jamais se impõe. Antes, coexiste, rendendo-se às maravilhas do mundo novo e ambicionando uma cultura global. Tamanho visionário, tão à frente do seu tempo.

Alexandre: Look at those we've conquered. They leave their dead unburied, they smash their enemies skulls and drink them as dust, they mate in public! How can they think, or sing, or write when none can read? But as Alexander's army they could go where they never thought possible. They can soldier, or work in the cities. From the Alexandrias, from Egypt to the outer ocean. We could connect these lands, Hephaistion. And the people.
Hefaísto: Some say these Alexandrias have become extensions of Alexander himself. They draw people into the cities so as to make slaves.
Alexandre
: But we've freed them, Hephaistion, from the Persias, where everyone lived as slaves! To free the people of the world!

No terraço do Grande Palácio, contemplando a noite sobre as luzes da cidade em festa, Alexandre e Hefaísto trocam juras de amor:

Alexandre: All I know is I trust only you in this world. I've missed you. I need you. It is you I love, Hephaistion. No other.
Hefaísto: You still hold you head cocked like that.
Alexandre: [rindo-se] I have to stop that.
Hefaísto: No, like a dear listening in the wind you strike me still, Alexander. You have eyes like no other. I sound as stupid as a school boy, but you're everything I care for. And by the sweet breath of Aphrodite I'm so jealous of losing you to this world you want so badly.
Alexandre: You'll never lose me, Hephaistion. I'll be with you always. 'Til the end.

Nas cartas que recebe, Olímpia planta o seu veneno ou a sua preocupação de mãe. Frase atrás de frase, previne-o dos invejosos conspiradores e dos possíveis traidores. Alerta-o para a necessidade de voltar ao seu reino. Mas Alexandre segue o seu sonho. Durante três anos, a campanha avança para nordeste. Dário é encontrado morto, envenenado. Numa das suas muitas paragens, conhece uma sensual e perigosa dançarina, sem relevância política: Roxana (Rosario Dawson). If only you were not a pale reflection of my mother's heart. Um comandante bactriano adverte-o: those who love too much lose everything. Those who love with irony... last. E, na verdade, esta é uma frase nuclear para perceber a decisão futura de Alexandre: a de desposar a asiática, arreliando os patriotas macedónios. O seu amor verdadeiro era para com Hefaísto, sabemo-lo, mas só um amor mascarado com a estrangeira poderia garantir-lhe um herdeiro, a união das tribos e a consolidação do império. E o casamento acontece. Como símbolo do grande amor sentido entre os dois, Hefaísto dá-lhe o anel que Alexandre ternamente usará até ao seu leito de morte. I'll be with you always. 'Til the end.

Aos poucos, porém, a divisão entre as tropas começa a fazer-se sentir. Roxana não dá à luz nenhum herdeiro, os principais cabecilhas e conselheiros do rei revelam outros interesses. Uma conspiração partilhada entre Parménio e o filho Filotas quase que envenena sua majestade. Alexandre manda executá-los. Depois de não resistir à tentação da carne com Bagoas, o dançarino enfeminado, a viagem continua. Chegam a Hindu Kush, o Cáucaso das Índias. E prosseguem em frente, descendo os declives nevados e penetrando, por fim, nas densas florestas da Índia, onde macaquinhos povoam as árvores e intensas chuvadas regam a terra durante sessenta dias e sessenta noites.


Numa estadia merecida, banhada em música, dança e álcool, o ambiente é marcadamente tenso. Exaustos e desejosos por voltar aos lares, às mulheres, filhos e netos que nunca conheceram, a discordância à flor da pele assume-se em palavras quentes e ofensivas:

Cleitus: How can you, so young, compare yourself to Heracles?
Alexandre: Why not? I've achieved more in my years. Traveled as far. Probably farther.
Cleitus: Heracles did it by himself! Did you conquer Asia by yourself, Alexander? I mean, who planned the Asian invasion when you were still being spanked on your bottom by my sister? Was it not your father? Or is his blood no longer good enough?
Alexandre: You insult me, Cleitus. You mock my family, be careful.
Cleitus: Never would your father take barbarians as friends or ask us to fight with them as equals in war. Are we not good enough any longer? I remember a time when we could talk as men, strait to the eye, none of this scraping and groveling. I remember a time when we hunted, when we wrestled on the gymnasium floor. And now you kiss them? Take a barbarian, childless wife, and dare call her Queen?
Alexandre: [profundamente insultado] Go quickly, Cleitus, before you ruin your life.
Cleitus: Doesn't your great pride fear the gods any longer? This army's your blood, boy! Without it you're nothing!
Alexandre: You no longer serve the purpose of this march! Get him from my sight! (...) Arrest him for treason! Who's with him? I call father Zeus to witness! I call you to trial before him! And we'll see how deep this conspiracy cuts!
(...)
Cleitus: Now look at you! Great Alexander! Hiding behind his guards! Are you too great to remember whose life was saved by me? I am more man than you'll ever be! (...) What a tyrant you are! Evil tyrant you've become, Alexander. You speak about plots against you? What about poor Parmenion? He served you well! Look how you repaid him! Have you no shame?
Alexandre: You ungrateful wretch! No one, not my finest enemy has spoken like you to me!

Hefaísto bem que tenta acalmar o amado, mas já é tarde demais. Alexandre crava uma lança no ventre de Cleitus, com as suas próprias mãos, e precipita-se, num ímpeto de ira, a tragédia. Depois desse episódio, Alexandre fica doente durante dias. Só Hefaísto o consola:

Hefaísto: You know better than any great deeds are donned by men who took, and never regretted. You're Alexander! Pity and grief will only destroy you.
Alexandre: Have I become so arrogant that I am blind?
Hefaísto: Sometimes to expect the best from everyone is arrogance.
Alexandre: Then it's true. I have become a tyrant!
Hefaísto: No! But perhaps a stranger. We've come too far. They don't understand you anymore.

The world is yours. Take it! A cena do discurso - quando os exércitos, completamente desmoralizados e indignados, ameaçam o motim, é arrebatadora. Aquela retórica e aquela devoção total ao sonho e à causa... Que visceral desempenho de Colin Farrell. Que líder, Alexandre foi. Oliver Stone filma a cena magistralmente. Dá-se a revolta, mas Alexandre, de pulso firme, dizima os adversários. Men of Macedon, we're going home. Mas primeiro, a conquista da Índia.


A sangrenta batalha final, entre as florestas da Índia, é absolutamente colossal e arrepiante. A última carga sobre os elefantes, tão genialmente filmada - plena de coragem, loucura e ferocidade - e sua dimensão operática, convocada pela assombrosa composição de Vangelis, concretizam uma derradeira apoteose. O frente-a-frente entre Bucéfalo e o elefante, sem efeitos especiais, e no qual o cavalo avança vários passos - sem medo - é... de nos deixar sem palavras. E para terminar a sequência, mais um golpe de génio: os tons de vermelho-carmim assumem a acção e o esplendor da imagem, numa passagem poética, simbólica e sublime.

Seis anos passados no Oriente, Alexandre e as suas tropas regressam à Babilónia. Todavia, fate is cruel. No man or woman can be too powerful or too beautiful without disaster befalling. Hefaísto é envenenado e sucumbe. A sua despedida é a mais dolorosa de todas. Sem amor, Alexandre é tomado pela loucura, consumido pela agonia e entrega-se à morte, bebendo o cálice amaldiçoado. Hoje, sabemo-lo, também conquistou a eternidade.

The truth is never simple and yet it is. The truth is we did kill him. By silence we consented... because we couldn't go on. (...) I never believe in his dream. None of us did. That's the truth of his life. The dreamers exhaust us. They must die before they kill us with their blasted dreams.
Ptolomeu

O grande defeito do filme prende-se tão-somente com o argumento que, apesar de tão bem escrito, tem uma estruturação... bizarra. São lamentáveis, todos aqueles avanços e recuos na narrativa, até Gaugamela, ou a inclusão forçada do episódio do regicídio na Índia, após a morte de Cleitus. Não fossem essas opções incompreensíveis e estaríamos perante um clássico absoluto, ao qual não hesitaria em atribuir a pontuação máxima.

Ainda assim, Alexandre, O Grande é um dos épicos mais poderosos e imponentes a que já assisti. Deveras apaixonante.

In the end, when it's over, all that matters is what you've done.

______________________________________
Leitura complementar: Breves notas sobre ALEXANDER REVISITED

ALEXANDRE, O GRANDE - O Trailer



Um magnífico trailer é capaz
de prometer mundos e fundos, não é?

ALEXANDRE, O GRANDE de Oliver Stone, segundo Jorge Teixeira

Agradecimento Especial:
Jorge Teixeira, Comentador assíduo do CINEROAD

Alexandre, O Grande é uma película que em vez de recorrer a muitas e grandes batalhas como cenário para contar uma história, se serve delas (poucas) para relatar o significado de um mito, de uma personagem, visto por ela mesma ou pelos que a rodeiam, numa perspectiva interior. Pois na realidade, será, acima de tudo, visto pelo criador da obra aqui transposta. Nesse sentido, Oliver Stone aborda a película com o objectivo claro de expor a sua visão daquilo que foi um dos maiores personagens históricos da antiguidade. Serve-se para isso de um narrador, de Ptolomeu, algo cínico e afiado (Anthony Hopkins claramente dispensável enquanto actor), para contar a sua perspectiva pessoal da vida do herói macedónio. E é aqui que triunfa, pois não é um narrador deliberadamente absoluto e objectivo, mas sim um homem de idade (e um oficial jovem) que, influenciado pelas suas próprias experiências e ângulos pessoais, oferece uma alternativa para mostrar a complexidade da personalidade aqui tratada. Uma visão sincera e subjectiva e, possivelmente para além dos factos. Talvez demasiado negra, que reflecte excessivos defeitos e receios no herói, mas ao mesmo tempo muito realista e esforçada em retirar e descobrir um ser humano num titã. Desconstrói um mito, uma lenda, um herói num homem carregado de ambição e de sonhos impossíveis. Um homem às tantas entregue a poucas companhias. Compreendido só pelos seus próprios mitos. Amigo para alguns e venerado por outros tantos, será no entanto respeitado e admirado por todos.

Esta visão do realizador converte-se na espinha dorsal da vida do protagonista e do próprio filme, na tumultuosa relação com os seus pais e na aprendizagem inicial. Stone mostra com delicadeza como estes traumas na juventude determinam posteriormente o mundo de Alexandre. Demonstra essa preocupação na caracterização do personagem ao longo de toda a fita, sendo como realizador, inteligente e habilidoso com a câmara, como também atrevido e efectivo por vezes. A cena em que Alexandre cai ferido e toda a paleta se tinge de magenta é de uma extrema beleza tremendamente adequada. O resultado é uma cena soberba em todos os sentidos, sobretudo na fotografia. Aliás a fotografia, a cenografia, as coreografias, toda a direcção de arte e guarda-roupa estão deslumbrantes, roçando a perfeição. Quando juntas, constituem momentos inesquecíveis e muito bem filmados, como são exemplo as duas únicas batalhas do filme. Terrivelmente eficazes. Assim como a banda sonora que acompanha e eleva ao extremo as cenas, intemporalizando-as. Vangelis cria, pois, uma sonoridade única, linda, magnífica, muito bem entregue à história do não menos magnífico, Alexandre. Em relação à montagem e ao argumento é que a obra adquire alguns dos seus defeitos. Estes, que dizem respeito à estrutura narrativa, por vezes lenta em demasia, incoerente em determinadas transições, e sobretudo desequilibrada no seu conjunto. O narrador sendo essencial tem algumas incoerências também, relata passagens que deveriam estar sendo encenadas, enquanto fica ausente nos tais momentos mais cansativos. Por outro lado, nas interpretações tem-se um elenco de um modo geral credível e em sintonia, em que se destacam Angelina Jolie, com a sua força e carisma e Val Kilmer, com uma actuação conseguida e vivaça. Colin Farrel está muito bem, mas algo exagerado em determinadas cenas de grande carga emotiva, tornando menos credível o potente guião que interpreta. Decepcionante por vezes com essa energia desequilibrada, poderá dizer-se, mas no cômputo geral coerente, dedicado e à altura do desafio.

Em suma, um filme muito subvalorizado que não é o grande, o épico filme que poderia ter sido, mas que dá a impressão de não ser visto pela perspectiva mais adequada. A profundidade que Oliver Stone consegue obter no tratamento do protagonista é por demais incompreendida. Provavelmente influência da história do personagem, das possíveis alterações à vida conhecida do herói. Será, contudo, melhor visionar a película, não tanto como um documento histórico, mas como uma análise narrativa, poética e subjectiva de um homem reconhecido por todos pelas suas conquistas, mas afinal de contas também de carne e sangue como qualquer um de nós.

Especial destaque à edição mais recente intitulada Alexander Revisited: The Final Cut, que dispõe de cerca de 40 minutos extra e que se encontra profundamente alterada na montagem, melhorando o produto final. As cenas adicionais acentuam essencialmente as relações entre Alexandre e as suas constantes mais próximas. No entanto a novidade maior reside no modo de organização da película e o ritmo imposto na montagem, que confronta duas linhas narrativas. A principal acompanha um Alexandre adulto, rei e conquistador na Ásia. A outra, e num contexto secundário em analepse, conta a vida de um Alexandre jovem em convivência com seus pais, ainda na aprendizagem. A acção avança, mas sempre estruturada por estas duas narrativas, com paralelismos e articulações interessantes que sustentam melhor as decisões do argumento. Anthony Hopkins como Ptolomeu e narrador é o mediador desta complexa transição entre cenas, o que lhe dá maior dimensão e credibilidade, ainda que a sua aparência física fosse mais uma vez dispensável. Apesar de tudo algumas falhas, referidas anteriormente, mantêm-se tanto no argumento como na montagem.

O NASCIMENTO DE UMA NAÇÃO de D. W. Griffith, segundo Flávio Gonçalves

Agradecimento Especial:
Flávio Gonçalves, O Sétimo Continente

Não é, de todo, tarefa fácil discernir aquilo que faz do épico de D. W. Griffith, a sua primeira longa-metragem (e a primeira alguma vez produzida), um grande filme e, evitando cair num evidente paradoxo, um filme menor.

Resultará, pois, se o olhar adoptado pelo espectador contemporâneo, relativamente ao norte-americano The Birth of a Nation, for, primeira e puramente, de interesse histórico e estético. Este é, sem sombra para hesitações, um dos maiores e mais importantes marcos do Cinema: pioneiro em avanço técnico, utilização de inovadoras sequências e estratégias de narrativa do realizador que são revisitadas (os grandes planos, os desvanecimentos, etc.), em produção (e subsequente custo financeiro – 110 mil dólares amealhados com dificuldade), em duração (mais de três horas), há que, necessariamente, reconhecer o valor deste trabalho pela enorme influência na procedente realização de mais (e sinceramente melhores) obras de arte.

Assim sendo, a substância d’O Nascimento resta-se à ambiciosíssima tarefa de elevar e homenagear a História dos Estados Unidos da América, debruçando-se, para consegui-lo, nas desavenças de duas famílias, de lados adversos, na época da Guerra Civil Americana. É com elevado grau de dramaticidade que Griffith se propõe a retratar a batalha, os tumultos ou o assassinato de Lincoln, em paralelo com uma recta final que faz, inevitavelmente, com que este se mantenha como um dos mais controversos filmes feitos. O racismo inerente ao sacrifício de vida protagonizado por Lillian Gish, que prefere matar-se a cair na “selvajaria” do negro que a persegue, é, por todos nós e no actual pensamento ocidental, motivo suficiente para que rejeitemos, com a devida força (mais ainda na época em que o filme foi feito, em que a comunidade negra lutava para consolidar os seus direitos), esta história. E não nos esqueçamos da exaltação do Ku Klux Klan (liderado pelo amante da virgem que acaba por se suicidar) e do menosprezo tido pela libertação dos escravos. Mas todas estas são razões ideológicas que nos afastam do melodrama, pelo seu carácter exageradamente patriótico e racista, que também se arrasta com algumas sequências longas e desnecessárias.

Não obstante, este épico deve ser visto, principalmente, por aqueles que se interessam pelas origens da arte do cinema, pela técnica que nos envolve na actualidade e pela mestria da realização de D. W. Griffith.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

LAWRENCE DA ARÁBIA de David Lean, segundo Rato

Agradecimento Especial:
Rato, O Rato Cinéfilo

Se há filmes aos quais se associa a impossibilidade de serem feitos de novo hoje em dia, Lawrence da Arábia é certamente um dos melhores exemplos. O próprio Steven Spielberg que, como se sabe, tem o céu como limite, reconhece que, mesmo com toda a moderna tecnologia, seriam precisos mais de 250 milhões de dólares para produzir algo semelhante. E de qualquer modo não valeria a pena pois nunca teria a grandeza do original, que ele mesmo considera o melhor filme jamais realizado.

Classificado em 5º lugar na tabela do American Film Institute dos melhores 100 filmes de sempre, este épico incomparável é fruto da persistência e teimosia de David Lean, inglês nascido em Surrey no dia 25 de Março de 1908 (viria a falecer em Londres, a 16 de Abril de 1991), e que começou por trabalhar na montagem de filmes, durante toda a década de trinta. Depois, e a partir de 1942, realizou 16 longas metragens, destacando-se Brief Encounter / Breve Encontro (1946), Oliver Twist (1948), The Bridge on the River Kwai / A Ponte do Rio Kwai (1957), Doctor Zhivago / Doutor Jivago (1965), Ryan's Daughter / A Filha de Ryan (1970) e A Passage to India / Passagem Para a India (1984). Mas Lawrence of Arabia, que dirigiu aos 54 anos, permanecerá sem dúvida como a sua coroa de glória. Omar Sharif, um dos emblemáticos actores do filme, interroga-se ainda hoje como foi possível conseguir realizar-se tal empreendimento: «imagino-me no papel do produtor do filme e vir alguém dizer-me que queria investir uma data de dinheiro num projecto de cerca de quatro horas, sem estrelas, sem mulheres e nehuma história de amor, sem grande acção também e inteiramente passado no deserto, por entre árabes e camelos... Com certeza que levava uma corrida!». Mas felizmente tal não aconteceu com David Lean, por culpa talvez dos 7 Oscars que o seu último filme também recebera.

Lawrence da Arábia é um filme que, pelo menos uma vez, deveria ser visto no grande écran, numa sala escura. Só assim se poderá usufruir de toda a grandiosidade do filme. Hoje considero-me um felizardo por ter vivido esse momento único no início da década de 70, quando da reposição do filme em todo o mundo. Apesar de já então se encontrar amputado em cerca de meia hora. Mas mesmo assim, assistir ao vivo, no esplendor dos 70 mm de uma grande sala de cinema (hoje em dia uma impossibilidade estabelecida) foi sem dúvida uma excitante e inesquecível experiência. É que Lawrence da Arábia não é apenas um filme biográfico ou de aventuras, muito embora contenha esses elementos. Acima de tudo, é um filme que usa o deserto como palco de emoções, cativando os espectadores a ponto destes se entregarem totalmente ao puro prazer sensorial de ver e sentir o impacto do vento ou do sol abrasador nas dunas. E isto é algo que não se pode descrever por palavras, tal como não se pode explicar o amor que por vezes sentimos por uma pessoa em especial; porque neste caso é o deserto essa outra pessoa, o objecto da nossa paixão.

Acrescente-se agora a memorável música de Maurice Jarre e temos essa paixão elevada aos píncaros do sublime e do êxtase. É esta a razão pela qual as pessoas não se lembram do filme por elementos narrativos; recordam antes uma série de momentos visuais, cuja magia perdura na memória do filme: o apagar de um fósforo a originar o nascer do sol no deserto; a aproximação de uma silhueta no horizonte, como se de uma miragem se tratasse; a travessia do deserto de Nefud; o espectacular ataque a Akaba; o descarrilamento do comboio; a entrada de Lawrence no bar dos oficiais..., e a sequência mais bela - o resgate de Gasim por Lawrence - aqui tudo se conjuga na perfeição. Oberve-se a importância capital da música: começa titubeante, indecisa, a ilustrar a dúvida de Farraj sobre a veracidade da silhueta que mal se distingue ao longe (será ou não uma miragem mais?). Depois, e à medida que a dúvida se transforma em certeza, a música vai crescendo também, até acompanhar o galope desenfreado das duas montadas e os gritos de alegria dos dois homens na iminência do reencontro. É por cenas destas, sem qualquer diálogo, puramente cinemática, que se reconhece a genialidade dos grandes artistas. E David Lean foi sem dúvida um dos maiores.

Uma referência final a Peter O'Toole, que tem aqui um início fulgurante de carreira, com um papel à medida de toda uma vida. Este Irlandês nascido em County Galway (a 2 de Agosto de 1932) mas educado em Leeds, Inglaterra, teve na década de 60 os seus anos de glória no cinema, depois de doze anos passados nos palcos de teatros, nos quais se iniciou com apenas 17 anos; frequentou a Royal Academy of Dramatic Arts, onde teve por colegas Alan Bates, Richard Harris ou Albert Finney. Filmes como Becket (1964), Lord Jim (1965), What's New, Pussycat / Que há de Novo, Gatinha? (1965), How To Steel a Million / Como Roubar Um Milhão (1966), Night of the Generals / A Noite dos Generais (1969), The Lion in Winter / O Leão no Inverno (1969), Goodbye Mr. Chips / Adeus Mr. Chips (1969) ou ainda Man of La Mancha / O Homem da Mancha (1972), ficarão para sempre associados às magníficas interpretações de O'Toole, que conseguia estar à vontade em qualquer tipo de papel. Nomeado 7 vezes para o Oscar, nunca conseguiu levar para a casa a almejada estatueta, apesar de ser considerado um dos melhores actores da sua geração. Nos Globos de Ouro a sorte sorriu-lhe mais: ganhou aquele prémio por três vezes (nos filmes Becket, The Lion in Winter e Goodbye Mr. Chips), num total de oito nomeações. Na déada de 70 problemas de alcool quase que lhe arruinaram de vez a carreira e a própria vida. Conseguiu sobreviver, apesar dos múltiplos tratamentos a que foi submetido lhe terem acabado para sempre com a beleza da juventude, tão bem captada naqueles filmes.


<br>


CINEROAD ©2020 de Roberto Simões