sexta-feira, 25 de novembro de 2011

RIO LOBO (1970)

PONTUAÇÃO: FRACO
Título Original: Rio Lobo
Realização: Howard Hawks
Principais Actores: John Wayne, Jorge Rivero, Jennifer O'Neill, Jack Elam, Christopher Mitchum, Victor French, Susana Dosamantes, Sherry Lansing, David Huddleston, Mike Henry, Bill Williams

Crítica:

UM TIRO AO LADO

You mess this up
(...) and you won't live to know it!

Pergunto-me se este filme não terá sido um equívoco. Dizem-no a última parte da trilogia iniciada com Rio Bravo e continuada com El Dorado, mas desses filmes não herdou nem o estilo, nem a qualidade do argumento, nem - e é disto que sentimos mais falta - o acting arrebatador dos actores; nem sequer o de Wayne, lamentavelmente. A representação dos (tantos) jovens actores que completam o elenco é de um amadorismo tão gritante que expõe ao ridículo qualquer hipótese de história minimamente envolvente. São péssimos actores.

A equipa técnica, por sua vez, conta com nomes sonantes, desde a direcção de fotografia à montagem, banda sonora, etc. mas, no seu todo, aquilo que Rio Lobo alcança é de uma mediania assustadora. Ainda estou para perceber porque é que às tantas a escuridão da noite assume por inteiro o enquadramento e me vejo ainda mais às cegas do que as próprias personagens. Sou privado da acção e limitado ao som. Durante vários minutos.

Hawks tem um ou outro movimento de câmera inesperado e bem-vindo (sobretudo para quem sentiu a sua ausência nos westerns anteriores), mas falha no essencial: falta o sentimento de humanidade naquela história, naqueles lugares, entre aquela gente. O saldo final não é, pois, o mais positivo: não posso dizer que gostaria de rever este Hawks.

EL DORADO (1966)

PONTUAÇÃO: BOM
Título Original: El Dorado
Realização: Howard Hawks
Principais Actores: John Wayne, Robert Mitchum, James Caan, Charlene Holt, Paul Fix, Arthur Hunnicutt, Michele Carey, R.G. Armstrong, Edward Asner, Christopher George, Marina Ghane, Robert Donner, John Gabriel, Johnny Crawford

Crítica:
The wind becomes bitter, the sky turns to grey
His body grows weary, he can't find his way...

OS PROFISSIONAIS

...But he'll never turn back, though he's lost in the snow
For he has to find El Dorado.

El Dorado é um caso curioso. Não é propriamente um remake, mas é quase. Na verdade, é um misto de repetição e variação. Repete, na sua acção, os lugares comuns de Rio Bravo como a prisão ou o saloon, repete as suas personagens-modelos (o bêbedo de Dean Martin dá lugar ao bêbedo de Mitchum, o velho Stumpy dá lugar ao velho Bull, o jovem Colorado dá lugar ao jovem Mississipi, Wayne passa de xerife a pistoleiro contratado, mas a sua personagem é essencialmente a mesma). No fundo, Hawks revisita a mesma história, aprofundando a meditação sobre os seus temas de eleição: entre os Homens, a honra e a dignidade, o respeito pelo inimigo, a cortesia cavalheiresca e a camaradagem no masculino, a amizade, a justiça, o profissionalismo e a responsabilidade perante a lei. Perante o envelhecimento, a doença e a incapacidade, a competência do Homem fica inevitavelmente comprometida... mas não é por isso que os valores caem por terra.

Mantêm-se os diálogos inventivos, cómicos e prolongados, que nos apaixonam pelo argumento e pelas personagens, tão caricatas e carismáticas. Leigh Brackett, não será por acaso, escreve o argumento de ambos os filmes. A direcção de actores é sublime (nisso Hawks é mestre). O suspense é intenso, na preparação das cenas de acção... puro entretenimento, que torna a experiência de assistir ao filme não só convidativa como extremamente prazerosa e gratificante.

A fotografia de Harold Rosson é brilhante, sobretudo na conjugação das cores da sua paleta. A propósito de cores, não posso deixar de destacar a maravilhosa sequência de pinturas aquando dos créditos iniciais, ao som da também ela maravilhosa e nostálgica canção El Dorado (letra de John Gabriel, seguramente inspirada no poema de Poe - declamado, às tantas, por Mississipi - e composição de Nelson Ridle, que ecoará ao longo de todo o filme). A lamentar, somente a ausência de uma câmera mais ciente das suas potencialidades narrativas.

As semelhanças entre as duas obras são tantas e tamanhas que a pertinência de El Dorado poderá sempre ser posta em causa. Ao assisti-lo, invade-nos, afinal, uma constante sensação de déjà vu. Todavia, ainda que prefira Rio Bravo, como poderei não gostar deste segundo filme?

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

O HOMEM QUE MATOU LIBERTY VALANCE (1962)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
Título Original: The Man Who Shot Liberty Valance
Realização: John Ford
Principais Actores: John Wayne, James Stewart, Vera Miles, Lee Marvin, Edmond O'Brien, Andy Devine, Ken Murray, John Carradine, Jeanette Nolan, Denver Pyle, John Qualen, Woody Strode, Lee Van Cleef

Crítica:

A LEI: MATAR OU MORRER

This is the West, sir.
When the legend becomes fact, print the legend.

Aclamado como o último grande western de John Ford, O Homem que Matou Liberty Valance marca a transição entre dois tempos, entre duas eras: entre o passado onde a justiça se fazia pelas próprias mãos, onde o crime se resolvia pelas armas, e o presente, onde a imposição da lei vem zelar por uma maior igualdade entre todos os Homens. O comboio a vapor - com que abre a obra - e os caminhos de ferro - que rasgaram a paisagem e a aridez do deserto, aproximando e unindo as grandes cidades às pequenas vilas do fim do mundo - simbolizam a evolução tecnológica, mas essa evolução na moral e nos costumes, só nos apercebemos dela aquando da entrevista ao senador Ransom Stoddard (James Stewart), recém-chegado a Shinbone para o funeral do bêbedo e desgraçado Tom Doniphon (John Wayne).

O argumento desenvolve-se estruturadamente. Aquando da viagem no tempo, na qual residirá a maior parte da acção, conheceremos as raízes do político àquela terra e àquela gente. Vindo de leste, traz o advento da nova civilização, onde é cultivada a ordem e a escolarização. Onde deveria trazer uma arma, traz os livros de Direito, que perante brutais criminosos como Liberty Valance são perfeitamente inúteis. Tão inúteis como o xerife Link Appleyard, que acomodado na sua inércia pessoal e na ineficácia do sistema, colecciona suculentos bifes no fiado da estalagem, em vez de foras-da-lei na prisão.

The jail's only got one cell, and the lock's broke and I sleep in it.

Como noutros filmes de Ford (lembra-me de repente o anterior que vi dele, Os Cavaleiros), colidem duas formas distintas de ver o mundo, num conflito assumido pelos protagonistas. O então carismático e corajoso Tom Doniphon duvida da eficácia das efabulações do advogado, perante a selvagaria do oeste, que tão bem conhece:

I know those law books mean alot to you, but not out here.
Out here a man settles his own problems.

Quando, logo à chegada, a diligência do culto peregrino é assaltada, sendo este violentamente espancado, a dureza da realidade impõe-se sobre quaisquer ilusões ou utopias académicas. Vingar-se pela força contriaria, contudo, todos os seus princípios e crenças.

I don't want to kill him, I just want to put him in jail!

Pois... Mas ninguém faz frente a Liberty Valance, por aquelas bandas, nem sequer as autoridades que supostamente são pagas para isso. Stoddard jamais terá, portanto, o perfil de herói do faroeste. Não deixa de ser trágica, por isso, a cedência de Stoddard aos seus ideais, empunhando a pistola na direcção de Liberty Valance. O assumir da fraqueza, da sua humanidade, ou a conversão à nova realidade, onde ser fora-da-lei é a única forma de fazer pela lei. Somente Tom configura esse perfil, mas abandoná-lo-á em favor dos novos tempos, dos novos tipos de heróis e... por amor a Hallie (Vera Miles), que entretanto parece ter caído de admiração e paixão pelo advogado. You taught her how to read and write; now give her something to read and write about!, diz-lhe Tom, que daí em diante se entregará ao álcool e à desgraça.


O twist e o desfecho do filme deixam bem clara a verdade sobre o título e sobre Tom. O homem que salvou Ransom Stoddard morrerá no esquecimento, por vontade própria, justificando as tão poucas presenças no seu velório. A entrevista do senador repõe a verdade, mas como acaba destruída pelo impulso da lenda, ficará apenas entre nós, espectadores. A respeito, o filme remata com a máxima memorável com que me iniciei:

This is the West, sir.
When the legend becomes fact, print the legend.

Em cenas como as da cozinha, da escola ou das eleições, há espaço e tempo para desenvolver os secundários, focando as suas particularidades. A soma de todos traz uma riqueza imensa e indispensável para um retrato que se quer plural e colectivo. O povo, a democracia. A comédia toma, não raras as vezes, as rédeas da acção. A obra constitui, por isso mesmo e provavelmente, o western mais divertido de Ford. E também o mais violento, na medida em que não somos privados de assistir à ferocidade com que são disferidos, uma e outra vez, os tantos golpes.

De certa forma e reflectindo sobre essas duas eras, O Homem Que Matou Liberty Valance condensa em si próprio toda a maturidade que o western alcançou até então (seja com Ford, Mann ou Hawks) e antecipa o western de Leone, Peckinpah ou Eastwood, onde o género se debruçará flagrantemente sobre si próprio, consciente e munido de intenções moralizantes, condenando o carácter meramente lúdico e a acção do matar por matar da sua longa herança cultural (questão amplamente desenvolvida na crítica a Imperdoável). Ford despede-se do western, tal e qual a personagem de John Wayne. Sem heroísmos, conservador e fiel aos seus valores, mas pleno de sentimentos, consciente da nova realidade.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

O FANTÁSTICO SENHOR RAPOSO (2009)

PONTUAÇÃO: BOM
Título Original: Fantastic Mr. Fox
Realização: Wes Anderson

Filme de Animação

Crítica:

UMA FAMÍLIA À BEIRA
DE UM ATAQUE DE NERVOS

Why a fox? Why not a horse, or a beetle, or a bald eagle? I'm saying this more as, like, existentialism, you know? Who am I? And how can a fox ever be happy without, you'll forgive the expression, a chicken in its teeth?

O Fantástico Senhor Raposo é daqueles filmes dos quais gosto mais hoje do que ontem e dos quais, muito provavelmente, gostarei ainda mais amanhã do que hoje. Todo o cinema de Wes Anderson acaba por ter este efeito curioso em mim, de certa forma. Penso que seja porque tem muito mais substracto do que aparenta, porque mascara na sua comédia nonsense o lado mais trágico da humanidade, mesmo quando envereda pela mais grotesca e inesperada animação, trabalhando a técnica stop motion de forma brilhante, como é o caso.

A narrativa é episódica, cada capítulo tem um título próprio e no centro da história está a família, como não poderia deixar de ser. Disfuncional, quais Tenenbaums ou aqueloutros em viagem a Darjeeling. E se não bastasse o cómico de personagem, brota o cómico a cada situação caricata ou a cada diálogo rápido, descarado, frontal ou profundamente filosófico. Marido, mulher, pai, mãe, filho, primos, amigos, comunidade... todos os papéis sociais são convocados, numa sátira hilariante sobre as relações entre os indivíduos ou sobre os problemas inerentes a qualquer relação. Não deixam de ser notáveis a complexidade e a eficácia com que Wes Anderson concretiza esta moral, recorrendo à fábula, tendo raposas e outros castiços animais como protagonistas da acção, a partir do conto infantil de Roald Dahl. Para isso, o elenco de vozes é, acredito, preponderante: George Clooney, Meryl Streep, Jason Schwartzman, Bill Murray, Willem Dafoe, Owen Wilson, entre outros, emprestam as suas vozes aos bonecos e os mesmos ganham alma e dimensão. Todas as aventuras e desventuras caminham para a redenção, para a aceitação uns dos outros, como se apenas pela união a existência individual e a de conjunto ganhasse sentido e utilidade.

Criar ou formular uma realidade estilizada, ainda para mais 100% animada, e depois apercebermo-nos da arte de a filmar, que apesar de tudo não descura uma só vez as suas potencialidades (narrativas, semânticas, etc.) diz muito sobre o cuidado e a sensibilidade artística deste projecto. O filme maravilha-nos com movimentos metódicos e precisos; todo o cinema de Wes Anderson é bastante geométrico, desde as configurações da mise-en-scène a este olhar iminentemente artístico, que enquadra, ritma e constrói imagens num código e numa linguagem característica (esse método e geometria ecoa também, por exemplo, nos diálogos, escritos a quatro mãos entre o realizador e o habitual parceiro Noah Baumbach).

Nunca demasiadamente infantil, às vezes sagaz, outras vezes ternurento, mas sempre inteligente e sobretudo divertido, O Fantástico Senhor Raposo assegura, pois, hora e meia de grande entretenimento, com uma apropriadíssima banda sonora de Alexandre Desplat. Animação irresistível, que explora a sua técnica nos mais variados registos de forma irrepreensível.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Afinal, mais 2 nomeações nos TCN Blog Awards



Afinal, calharam ao CINEROAD mais 2 nomeações.

Para 'Melhor Crítica' (ao filme GIGANTE: http://cineroad.blogspot.com/2011/10/gigante-1956.html) e para 'Melhor Blogger do Ano' para a minha pessoa. Fico muito contente. Para quem já escreve há algum tempo, é um grande incentivo para fazer mais e melhor.

Muito obrigado a todos! Muitos parabéns também para os meus colegas nomeados.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

CINEROAD nomeado para 'Melhor Blogue Individual' nos TCN Blog Awards 2011


Soube há instantes que o CINEROAD está nomeado, pelo segundo ano consecutivo, para Melhor Blogue Individual nos TCN Blog Awards. Obrigado a todos os que nomearam o CINEROAD. Obrigado à "Academia".

O ano passado o prémio não foi ganho, quem sabe se é este ano, mas o mais importante é que estejam desse lado, que leiam, comentem e partilhem comigo este amor maior pelo cinema.

Obrigado a todos. As votações abrem oficialmente amanhã:

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

AS ASAS DO DESEJO (1987)

PONTUAÇÃO: EXCELENTE
★★★★
Título Original: Der Himmel über Berlin
Realização: Wim Wenders
Principais Actores: Bruno Ganz, Peter Falk, Solveig Dommartin, Otto Sander, Curt Bois, Hans Martin Stier, Elmar Wilms, Sigurd Rachman, Beatrice Manowski, Lajos Kovács,

Crítica:

A CIDADE DOS ANJOS


Als das Kind Kind war,
wußte es nicht, daß es Kind war...

As Asas do Desejo, obra-prima de Wim Wenders, imortaliza o encontro entre o humano e o divino, entre a dimensão terrena, efémera e material, e a eternidade jamais palpável. Entre o físico e o metafísico, entre a vida e a morte, o espectro romântico e esotérico de uma narrativa profundamente melancólica, depressiva, reflexiva e metafórica; Peter Handke, juntamente com o realizador, concebeu um argumento assaz poético e eloquente, fantasioso, mas absolutamente lúcido, mergulhado em existencialismo. De uma beleza transcendente, a fotografia de Henri Alekan pinta rasgos de genialidade, desde o preto e branco imaculado ao mais apurado sentido estético da cor e da composição dos planos. A religiosidade da banda sonora de Jürgen Knieper convoca, a cada compasso, uma experiência mística, derradeiramente perturbante e desoladora. No seu todo, As Asas do Desejo constitui uma autêntica celebração da arte, do cinema e da vida - a vida como privilégio.

Sobre os céus da Berlim ferida pela guerra, sobre os prédios e os monumentos, vagueiam anjos, intocáveis e invisíveis aos mortais, quais almas perdidas - somente algumas crianças os reconhecem e identificam, tomadas pela inocência. Desvanecem-se as asas, inicialmente, para que identifiquemos na transparência a simultaneidade deste mundo paralelo. Têm forma humana e vestem gabardinas, mas raramente comunicam entre si. Deambulam num silêncio lúgubre. Ouvem as angústias e os pensamentos mais secretos das pessoas e invejam a sua condição (conhecemos as personagens, essencialmente, através dos seus pensamentos). São seres condenados à solidão e ao infinito do tempo. Não sentem calor nem frio nem dor, não sentem o peso pois são mais leves do que uma pena, é-lhes impossível o toque. São voyeurs em eterna contemplação da humanidade.

Als das Kind Kind war,
war es die Zeit der folgenden Fragen:
Warum bin ich ich und warum nicht du?
Warum bin ich hier und warum nicht dort?
Wann begann die Zeit und wo endet der Raum?
Ist das Leben unter der Sonne nicht bloß ein Traum?
Ist was ich sehe und höre und rieche
nicht bloß der Schein einer Welt vor der Welt?
Gibt es tatsächlich das Böse und Leute,
die wirklich die Bösen sind?
Wie kann es sein, daß ich, der ich bin,
bevor ich wurde, nicht war,
und daß einmal ich, der ich bin,
nicht mehr der ich bin, sein werde?

Sob a influência dos poemas de Rilke, o argumento recupera os anjos Damiel e Cassiel. Certa vez, contudo, Damiel (Bruno Ganz, num papel memorável) apaixona-se por uma trapezista circense e o seu destino altera-se para sempre. O storytelling desenvolve-se envolvente, intrigante, num lirismo sensível e hipnotizante. A cadência da montagem (ou da ausência dela, por vezes) contribui decisivamente para o ritmo irregular, tendencialmente lento e moroso, assim como alguns diálogos. A elegância da filmagem impera. Wenders domina as mais variadas técnicas: planos-sequência, travellings e os mais virtuosos movimentos de câmera; nós, espectadores, somos como que embalados neste ritual encantatório. Qual Muro de Berlim, que na cor dos seus graffitis separa duas dimensões de um só mundo, também As Asas do Desejo é sobre uma barreira entre a realidade que conhecemos e o além etéreo. O Muro, para lá das conotações políticas, simboliza o obstáculo a transpor. Não é por acaso, pois, que a metamorfose de Damiel (e do próprio filme) se dá em frente ao Muro. A mudança acontece, Damiel ganha a vida e o filme ganha, definitivamente, cor. Dos céus traz uma armadura, como na mitologia, para o princípio da existência mundana.

Na cidade, a vida moderna, a publicidade e o product placement a cada esquina (abundam as marcas de tabaco e de automóveis), mas especialmente a beleza na arte: no circo, no concerto de Nick Cave, no cinema. Por meio da mise en abyme - o cinema dentro do cinema - a contextualização e a representação de um passado histórico, o fantasma do holocausto. Peter Falk, o actor, magnetiza-nos a atenção na interacção aparentemente alucinada com o vazio. Revela-se, por fim, também ele, um anjo caído.

E logo depois do Fortsetzung folgt, a dedicatória da obra a todos os anjos antigos, mas sobretudo a Yasujiro, François e Andrej. Não são eles senão Ozu, Truffaut e Tarkovsky, respectivamente. Segundo James Kendrick, we can see [nesta assombrosa obra de Wenders] traces of Ozu’s quiet elegance and humanism, Truffaut’s romanticism, and Tarkovsky’s obsession with the interrelations of time and space and history (Cf. aqui). Revejo-me inteiramente na sua afirmação.

Por tudo isto e tanto, tanto mais, As Asas do Desejo é uma obra que parece vislumbrar, a cada instante, a perfeição. Um sublime e incontornável pedaço de cinema, tão ousado na estética como prodigioso em memória.

Als das Kind Kind war,
wußte es nicht, daß es Kind war
alles war ihm beseelt,
und alle Seelen waren eins.

domingo, 6 de novembro de 2011

O VISITANTE (2007)

PONTUAÇÃO: BOM
Título Original: The Visitor
Realização: Thomas McCarthy
Principais Actores: Richard Jenkins, Haaz Sleiman, Danai Jekesai Gurira, Hiam Abbass, Marian Seldes, Maggie Moore, Michael Cumpsty, Bill McHenry, Richard Kind, Tzahi Moskovitz, Amir Arison, Neal Lerner

Crítica:

AO RITMO DO DJEMBÉ

Walter vive uma inexistência. A mulher faleceu, o filho vive em Londres e tem-se a si mesmo numa solidão inerte. É professor universitário, mas não encontra significado nas suas acções. Não tem sonhos e a sua realidade é um puro bocejo. Crise da meia idade? Aparentemente, tão mais do que isso. A performance de Richard Jenkins é simplesmente fenomenal: e a sublinhar está tanto o adjectivo quanto o provérbio. Na verdade, a serenidade, a autenticidade e diria mesmo naturalidade com que o actor interioriza e exterioriza a sua personagem são notáveis. É uma interpretação inteira, desde o olhar à expressão facial, aos ombros... o mínimo movimento corporal ganha uma importância incrível, no meio de tanta calma e passividade. A intensidade do drama vem muito do extraordinário trabalho de contenção de McCarthy (e de todo o minimalismo potenciado pelos enquadramentos, pela fotografia e pela banda sonora, que nos foca no essencial, sendo o essencial a dimensão humana das personagens e do argumento), mas vem sobremaneira deste acting tocante, arrebatador e impossivelmente sincero.

O título é... um excelente título. Creio que o mais difícil seria conseguir com que fizesse sentido; acaba não só por fazer todo o sentido como por ser um dos maiores trunfos do filme. Afinal, e se nos ficarmos apenas pelas breves linhas da sinopse, como é que alguém que vê, de um dia para o outro, o seu apartamento em Nova Iorque ocupado por um casal de imigrantes ilegais pode ser o visitante? Percebemos, a priori, que é Walter o protagonista e acabaremos por concluir que o visitante aqui não vem de fora, mas de dentro. Inesperadamente envolvido em toda a história de Tarek e Zainab, é ele quem toma de assalto uma existência (só ela poderia justificar uma trama) e se vê a desenvolver afectos, que crescem à medida da redescoberta de si próprio: de que está vivo, de que sente e de que estará sempre a tempo para quebrar a rotina, caminhando para a realização e para a felicidade. Quando muito não seja, caminhando para o sentido.

Com a prisão de Tarek e a ameaça da deportação para a Síria (país de onde é original), dá-se o twist nada previsto no seu percurso. De repente, Walter tem alguém com quem se importar, algo por que lutar. A causa de Tarek torna-se a sua causa, levando-o a cessar todas as suas obrigações profissionais, toda a sua vida - qual vida?, perguntar-me-ia ele, muito provavelmente - para ajudar Tarek. Com a chegada de Mouna (luminosa Hiam Abbass), a mãe do estrangeiro, Walter ganhará inclusivé um brilho no olhar, há muito perdido. Há ocasiões que podem mudar uma vida ou, neste caso, acordar uma vida, há muito adormecida. O djembé será sempre um símbolo: a linguagem universal da música, capaz de unir os mais distintos seres humanos pelo sentimento, sem preconceito - coisa que a política norte-americana e o sistema social não faz, sobretudo no pós 11 de Setembro -, e a batida que lhe despertará o coração para uma nova vida. Ou, pelo menos, assim esperamos nós.

O Visitante numa só palavra? Humanidade.

You can't just take people away like that. Do you hear me? He was a good man, a good person. It's not fair! We are not just helpless children! He had a life! Do you hear me? I mean, do you hear me? What's the matter with you?

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

TRAINSPOTTING (1996)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
Título Original: Trainspotting
Realização: Danny Boyle
Principais Actores: Ewan McGregor, Ewan Bremner, Jonny Lee Miller, Kevin McKidd, Robert Carlyle, Kelly McDonald, Peter Mullan, James Cosmo, Irvine Welsh, Dale Winton

Crítica:

A VIDA NÃO É UM SONHO

People think it's all about misery and desperation and death and all that shit which is not to be ignored, but what they forget is the pleasure of it. Otherwise we wouldn't do it. After all, we're not fucking stupid. At least, we're not that fucking stupid.

Pedaços de narração corrosiva, plena de sarcarsmo e ironia, não faltam neste alucinante - ou alucinado - Trainspotting. O argumento é de John Hodge, a partir do romance de Irvine Welsh. Num registo irreverente e relativamente cool, funde-se humor, sátira, choque, nojo e uma dose ilimitada de palavrões. Danny Boyle - num estilo que se lhe tornaria característico - combina as mais variadas e distintas técnicas de filmagem, estimulando e potenciando uma verdadeira experiência sensorial para o espectador, com uma energia inesgotável e a um ritmo psicadélico e electrizante. Indissociável a tão vertiginoso impacto é a banda sonora: a sonoridade electrónica insiste, persiste e é como que omnipresente do início ao fim do filme.

Do eco de Laranja Mecânica ao advento de Clube de Combate ou de A Vida Não É Um Sonho, a obra revelou-se não só marcante como manifestamente influente no cinema do fim de século. O sentimento de solidão e de alheamento da juventude perante uma sociedade mascarada, o niilismo, a necessidade de escape e de evasão da realidade, o refúgio nas drogas, na vivência sem limites nem responsabilidades... é sobre tudo isto, este surpreendente Trainspotting. Ewan McGregor ascende ao estrelato, por meio de uma interpretação genuína e cheia de vida, à frente de um elenco de caricaturas diversificadas e bem conseguidas.

Excepcional, o acuro visual da fotografia de Brian Tufano, das cores à iluminação, em perfeita sintonia com toda a arte da mise en scène e com a demais direcção artística. Mas a riqueza visual da obra nasce também das ideias surrealistas, por sua vez provenientes dos efeitos secundários do uso e abuso dos químicos. O mergulho na sanita será, muito provavelmente, a cena mais memorável de todo filme; pelo menos, é a minha preferida.

Sem jamais atingir uma mestria suprema, Trainspotting transborda emoções fortes e um sentido estético inegavelmente ousado e ecleticamente eficaz. Tem apenas uma contra-indicação: pode tornar-se viciante. A primeira vez que assistir ao filme, não será certamente a última.

Choose Life. Choose a job. Choose a career. Choose a family. Choose a fucking big television, choose washing machines, cars, compact disc players and electrical tin openers. Choose good health, low cholesterol, and dental insurance. Choose fixed interest mortgage repayments. Choose a starter home. Choose your friends. Choose leisurewear and matching luggage. Choose a three-piece suit on hire purchase in a range of fucking fabrics. Choose DIY and wondering who the fuck you are on Sunday morning. Choose sitting on that couch watching mind-numbing, spirit-crushing game shows, stuffing fucking junk food into your mouth. Choose rotting away at the end of it all, pissing your last in a miserable home, nothing more than an embarrassment to the selfish, fucked up brats you spawned to replace yourselves. Choose your future. Choose life... But why would I want to do a thing like that? I chose not to choose life. I chose somethin' else. And the reasons? There are no reasons. Who needs reasons when you've got heroin?

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

1492: CRISTÓVÃO COLOMBO (1992)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
Título Original: 1492: Conquest of Paradise
Realização: Ridley Scott
Principais Actores: Gérard Depardieu, Armand Assante, Sigourney Weaver, Loren Dean, Ángela Molina, Fernando Rey, Michael Wincott, Tchéky Karyo, Kevin Dunn, Frank Langella, Mark Margolis, Kario Salem
Crítica:

A CONQUISTA DO PARAÍSO

Paradise and hell both can be earthly.

Em 1992, também Hollywood comemorou os 500 anos da descoberta da América. Num ambicioso e impressionante trabalho de reconstituição histórica, possibilitou-se a viagem no tempo e a homenagem. 1492: Cristóvão Colombo, contudo, passou ao largo das expectativas de meio mundo, que aguardava por mais um filme de acção e aventuras. Em vez disso, Ridley Scott concretizou uma epopeia: hipnotizante, espectacular e arrebatadoramente bela. E como nas clássicas epopeias, recai o protagonismo sobre a voz do poeta: chegando a atingir uma dimensão mística e espiritual, tanto por meio da deslumbrante poesia das imagens como por meio da gloriosa e arrepiante banda sonora de Vangelis, a arte da filmagem revela-se absolutamente magistral em toda a sua técnica, elegância e apurada sensibilidade, num tom marcadamente contemplativo e elegíaco. A realização e a visão únicas do cineasta, quais decisões de montagem, mostram-se imperiais para a essência narrativa do filme, muito mais do que o argumento em si ou do que as performances dos actores. É essa a verdadeira e incompreendida natureza do filme, que se prende, é certo, a fortes compromissos de ordem histórica, mas que pela arte imortaliza toda a humanidade, em todos os seus defeitos e virtudes.

Qualquer filme de Ridley Scott é sempre um assombro visual e 1492 não é excepção. Cada frame é minuciosamente planeado, desde a escolha dos exteriores à construção dos cenários, à riqueza da decoração e à pintura e iluminação do quadro. O perfeccionismo e a sofisticação alastram-se ao guarda-roupa, aos acessórios e aos demais valores de produção. Sobre o ceú vermelho do entardecer, içam-se as velas para ocidente. A partida da expedição do Porto de Palos, enaltecido por cânticos graves e sonantes, consititui um momento extraordinariamente poderoso. Após meses de viagem, desfaz-se a névoa e o mistério. Olhares de espanto e regozijo acolhem o mítico Éden das escrituras, de vegetação abundante... em solene slow motion, passo por passo, Colombo pisa o solo virgem das índias ocidentais e ajoelha-se perante o extenso e sonhado areal. Que cena memorável. A atmosfera do Novo Mundo, em toda a sua variedade de cores e sons, maravilha-nos e invade-nos o inconsciente. A influência de obras como Aguirre, O Aventureiro de Herzog ou A Missão de Joffé é, a meu ver, notória.

Perante a pureza da América selvagem, evidencia-se o contraste com a corte espanhola; plena de inveja e intriga, hipocrisia e sede de poder. Longe da civilização e de um Deus inquisidor, o divino em cada folha, em cada árvore, em cada pedra. O Deus na Natureza, a religião nativa. Corrompidos, esses sim, os exploradores da fé perdida condenam o paraíso à má-aventurança e à destruição. Nas poucas cenas de acção, suscitadas pelo motim de Adrián Moxica, a brutalidade e o pior do ser humano. Pelas acções do navegador Cristóvão (Gérard Depardieu, num underacting desarmante), o conhecimento, o respeito e a não-violência. O inconformismo, o empreendorismo, a necessidade de calar as teorias vãs e de comprovar que a terra é redonda e não plana como uma mesa. O desejo da evolução, do progresso das ideias e das mentalidades. Riches don't make a man rich, they only make him busier. Porque seriam impossíveis novas descobertas? Também a conquista de Granada aos mouros se dizia impossível, lembra Colombo à rainha, em vésperas da benção da missão.

Nothing that results from human progress is achieved with unanimous consent. And those who are enlightened before the others are condemned to persue that light in spite of others.

Um triunfo magnífico.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

A REDE SOCIAL (2010)

PONTUAÇÃO: BOM
Título Original: The Social Network
Realização: David Fincher
Principais Actores: Jesse Eisenberg, Rashida Jones, Justin Timberlake, Brenda Song, Andrew Garfield, Joseph Mazzello, Rooney Mara, Malese Jow, John Getz, Bryan Barter, Patrick Mapel, Calvin Dean, Aria Noelle Curzon, Josh Pence, Steve Sires, Armie Hammer

Crítica:

INVENTANDO O FACEBOOK

Drop the The. Just Facebook. It's cleaner.

O mínimo que poderemos dizer do mais recente percurso de David Fincher é que a sua obra perdeu a ousadia e a irreverência, sem que, no entanto, tenha perdido a consistência. Mais comedido - tanto na forma como no conteúdo (que, em saudosos tempos, tinha o twist como marca principal), o realizador continua o actual e pertinente retrato social, sempre focado na tragédia moral do ser humano.

Em A Rede Social, Fincher experimenta o biopic, mais ou menos fiel à história do criador do Facebook, Mark Zuckerberg. Jesse Eisenberg assume, com inegável competência, o papel de protagonista - ironicamente, um prodigioso e falador nerd de chinelos, completamente assombrado pela alienação e pelo fracasso das suas relações pessoais. O que o motiva - there is a difference between being obsessed and being motivated - é a necessidade de pertença a um grupo de pares que defina o seu lugar no mundo. A sua ambiciosa e viciante ideia - We lived on farms, then we lived in cities, and now we're going to live on the internet! - levá-lo-á da insignificância à notoriedade social, ao sucesso e ao enriquecimento, arrastando consigo uma série de morosos processos judiciais, assentes na inveja, na mentira e na competição desregrada. Genial, a propósito de competição, a memorável sequência da prova de remo, ao som de um arrepiante arranjo de In the Hall of the Mountain King, original de Edvard Grieg.

Tecnicamente, a agilidade da montagem (Kirk Baxter, Angus Wall) alia-se magistralmente à natureza rítmica do argumento (Aaron Sorkin), concretizando uma construção narrativa sólida e permanentemente fluída. Apesar de ser um grande filme, duvido seriamente que A Rede Social se imponha como um clássico. É mais um filme centrado numa personagem - e numa realidade concreta e datável - do que um ensaio sobre o Homem condenado à solidão e à ausência de afectos, no auge das tecnologias de comunicação.

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Originalmente publicada na edição 27 da Revista Take.


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