As frases com que me inicio são de Shakespeare,
The Merchant of Venice (acto III, cena I). Sabe, quem conhece a comédia, que a eloquente passagem se refere às angústias do agiota judeu, a propósito da discriminação que sobre o seu povo recai, há séculos, injusta e desumanamente:
I am a Jew. Hath not a Jew eyes? Hath not a Jew hands, organs, dimensions, senses, affections, passions; fed with the same food, hurt with the same weapons, subject to the same diseases, healed by the same means, warmed and cooled by the same winter and summer as a Christian is?
Quem diria que o anti-semitismo viria ainda a contribuir para um dos mais negros capítulos da História da Humanidade.
As frases com que me iniciei são proferidas por Henryk (Ed Stoppard), num momento que antecede a dolorosa separação da família, quando Wladyslaw Szpilman (Adrien Brody) o interroga sobre o que está a ler. Estamos no ano de 1942. Terminada a declamação, Wladyslaw remata:
very appropriate. Estão rodeados por uma multidão de judeus: sedentos, famintos, pálidos, de pele e osso, sujos, doentes e em tremendo estado de choque. Recentemente retirados dos
ghettos que os humilharam e desumanizaram por completo, são agora supervisionados pelos soldados da Gestapo: anseiam por paz, mas espera-os o horror dos campos de concentração.
Wladyslaw Szpilman era, até meados de 1939, um reputado pianista. Tocava para a Rádio de Varsóvia e o seu talento era unanimamente reconhecido.
You musicians don't make good conspirators. You're too... too musical. Mas as imposições nazis, que a partir de então se fizeram sentir, anularam por completo qualquer reputação, qualquer integridade. Os judeus foram proibidos de entrar em restaurantes, de frequentar os parques, de andar nos passeios... Foram obrigados a ostentar a Estrela de David no braço, foram caluniados, esbofeteados, espancados, roubados, escravizados... o cerco apertou-se até serem reduzidos à mais miserável condição, à mais miserável existência. Em Outubro de 1940, tiveram que abandonar as suas casas e partilhar as divisões do
distrito judeu com centenas e centenas de famílias condenadas. Venderam todos os seus bens, esconderam cada nota e, ainda assim, alimentaram-se do ar, tal era a escassez de alimento.
I blame the Americans. (...) American Jews, and there's lots of them, what have they done for us? What do they think they're doing? People here are dying, haven't got a bite to eat. The Jewish bankers over there should be persuading America to declare war on Germany!
... diz o pai do pianista.
Os judeus, impotentes, limitaram-se à extrema situação. A revolta, por mais organizada que fosse, revelar-se-ia sempre ineficaz. A única eficácia talvez fosse apenas a morte com dignidade.
Germans never go into Jewish toilets. They're too clean for them.
Majorek
Roman Polanski, que também em criança testemunhou - na pele e na alma - os horrores do holocausto e das perseguições nazis na Polónia, filma este impressionante drama com uma frieza implacável, com uma tenacidade e com uma mestria incríveis. Há cenas verdadeiramente chocantes, tocantes e derradeiramente excepcionais: a morte do menino pelo buraco do muro, a dança do gozo e humilhação, o comer directamente do chão, o homicídio do paralítico a partir do terceiro andar, a partilha de um só caramelo de 20 zlotes entre todos, as sádicas chacinas em fila, etc. O filme vive muito dos planos estáticos e do poder da encenação, vive do poder destroçante das imagens. A
mise en scène é cuidada e minuciosa, perfeitamente iluminada e fotografada (Pawel Edelman). Os valores artísticos por detrás da reconstituição histórica são elevadíssimos (Allan Starski, Nenad Pecur, Wieslawa Chojkowska e Gabriele Wolff). O notável guarda-roupa é da consagrada Anna Sheppard (estilista responsável, entre outros grandes trabalhos, pelo figurino do extraordinário parente
A Lista de Schindler). O filme vive também dos silêncios ou das erudição das peças musicais: Beethoven, Bach, entre outros, mas sobretudo Chopin. A banda sonora original é de Wojciech Kilar. Aquele clarinete a solo é tão solitário e desolador quanto a aterradora experiência de Szpilman. A obra vive ainda e sobretudo dos desempenhos dos actores, em especial da assombrosa e transfiguradora
performance de Adrien Brody.
Quando o conhecido e influente Yitzchak impede que Szpilman parta com a família no comboio, inicia-se um percurso a sós; que se revelará, porventura, as etapa mais difícil e agoniante de todas. Primeiramente, Szpilman ainda se sujeita ao trabalho na construção civil, sob as ríspidas e repressivas ordens dos soldados alemães.
Know why we beat you? Know why we beat you?
(...) To celebrate New Year's Eve!
... exclama um dos monstros, alcoolizado.
Mas a esperança de escapar nunca se esvaiu, nos momentos de maior lucidez.
I want to get out of here, afirma um dia ao colega Majorek, que reencontra na empreitada.
It's easy to get out - responde-lhe o recluso -
it's how you survive on the other side that's hard. Num outro dia, por sorte, proporciona-se a fuga. Valem-lhe amigos antigos que, ainda que polacos e ameaçados pela propaganda de Hitler, se recusam a ignorá-lo, sem o ajudar. Dão-lhe tecto, alguma comida, algumas condições... esconderijos mais ou menos seguros onde deverá aguardar, no mais profundo isolamento, pelo fim do conflito. Tendo um piano em frente e sem poder tocá-lo, com medo de ser denunciado, imagina a concretização máxima da partitura, imagina Chopin, inspiradamente interpretado. Falta-lhe a música, falta-lhe o alento, falta-lhe a família, falta-lhe praticamente tudo. Passa tanto tempo sem falar que quando as explosões se fazem ouvir nos arredores, cada vez mais perto, apenas consegue balbuciar, assolado pelo pânico.
1944. Quando os tanques lhe invadem a rua, foge uma vez mais, ensurdecido pelas explosões. Aquele plano sobre a avenida em ruínas, depois do muro, é tão... silenciadora... Até ao final da obra, sucedem-se as elipses e os episódios. Szpilman não parece mais o mesmo: em trapos que nem um mendigo, cresceram-lhe o cabelo, a barba e o sentimento de perda. Encontra uma lata de conserva, mas não tem força nem física nem psíquica para pensar numa forma de abri-la. Inesperadamente, vê-se frente a frente com um Capitão do exército alemão (Thomas Krestschmann, portentoso no
underacting). O momento é, verdadeiramente, de cortar a respiração.
Play.
Szpilman ainda hesita ao pedido, mas não resiste à possibilidade de finalmente voltar a tocar piano. E o piano ali está ao lado, no meio da sala abandonada, iluminado por um frio feixe de luz. O militar apoia-se no piano e observa-o. E Szpilman toca. Toca com toda a alma e coração, na concretização plena de um momento catártico. Condoídos pelos terríveis acontecimentos que o pianista viveu, e que tão sofregamente presenciámos, somos incapazes de interromper aquela música profundamente sentida... Não há espaço para maniqueísmos - o alemão ajuda-o: dá-lhe comida, um casaco, um abre-latas. Dá-lhe uma última e derradeira esperança. Talvez sobreviva a tempo da chegada dos russos, talvez sobreviva a tempo da libertação. Talvez sobreviva, afinal, para contar a história. Enfim, cenas memoráveis, no culminar de um clássico absoluto e obrigatório.