terça-feira, 31 de janeiro de 2017

FÚRIA (2014)

PONTUAÇÃO: BOM
Título Original: Fury
Realização: David Ayer

Principais Actores: Brad Pitt, Shia LaBeouf, Logan Lerman, Michael Peña, Jon Bernthal, Jim Parrack, Brad William Henke, Kevin Vance, Xavier Samuel, Jason Isaacs 

Crítica: 

CAVALOS DE FERRO

Ideals are peaceful. History is violent.

Se há género que proliferou em Hollywood, nas últimas décadas, foi o filme de guerra, retratando e reflectindo, especialmente e na grande parte das vezes, a brutalidade, o horror e a desumanidade da 2ª Guerra Mundial, cuja sombra ainda esvanece, cujas feridas ainda saram, cuja memória ainda não esquece. Ainda há sobreviventes, marcas e arte. Fúria continua a tradição e esse cânone, na sombra da guerra e, claramente, na sombra d'O Resgate do Soldado Ryan. A angústia da influência, como lhe chamaria Harold Bloom, é por demais notória e a comparação, se não necessária, pelo menos irresistível. Édipo não mata o pai - Ayer não foi nem é um Spielberg - no entanto, diria que estamos perante um digno discípulo, um bom filme do género.

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O Resgate diria que herda, a olhos vistos, os tons. Os tons, mas não o grão. Falo de cores e da atmosfera que estas possibilitam. A fotografia de Roman Vasyanov é absolutamente deslumbrante e é capaz de pintar o mais atrativo dos quadros perante o pior dos cenários. O plano de abertura - cujo mérito é mais do diretor de fotografia do que realizador - é magnífico: uma luz centrada, gélida e bruxuleante ilumina a tela, azulando-a. Vem do horizonte longínquo e parece inebriar a terra com uma quase neblina: não se percebe se o que vemos são arvoredos ou campos, pois não temos noção das escalas ou proporções. À medida que a luz se vai e o ecrã escurece, dá lugar a um vulto cavalgante. Somos reposicionados. E só quando a câmera solenemente decide mover-se finda o mistério. São poucos mas não meros segundos. Belíssimos. Dá gosto saborear, que abertura.

Também pelos ouvidos ecoa o mestre; aquele, o de 1998. A experiência de um filme de guerra vive-se sobremaneira pelo espectáculo sonoro e, nesse aspecto, Fúria jamais poderia defraudar o espectador. É com a fúria do título com que tiros, ricochetes e explosões irrompem cena a cena, retumbantes, reclamando a atenção e uma qualidade fora de série. Tanto os efeitos como a sua montagem são de primeiríssima linha - a equipa responsável é vastíssima e mereceria, com toda a certeza, a nomeação individual. Fica a menção honrosa pela brilhante sonoplastia. A composição musical de Steven Price é, de forma geral, subtil e temperada, pontuando ou alavancando, de forma sábia, os momentos narrativos. Sempre com o volume certo, à hora certa.

Feitos os principais destaques, foquemo-nos no elenco - um colectivo com um potencial poderosíssimo; notem-se os principais nomes: Brad Pitt (mega-estrela, com um historial de personagens que fala por si), Logan Lerman (claramente em ascensão e a ter em conta) e o malogrado 
Shia LaBeouf (malogrado por sua própria conta e risco, porque de talento está muito bem servido - aqui num notável underacting). Temos em Fúria grandes interpretações, pelo menos à altura do argumento, que orienta um road dos tanques ao sabor dos ataques e das investidas do inimigo. Um road movie como o filme de Spielberg e tantos outros propõem, num tempo em que a verdadeira cavalaria ganha força nos ares mas que em terra não é assegurada senão pelos tanques blindados, essas claustrofóbicas e assustadoras máquinas de guerra, que tudo levam à frente, conduzindo a ambição - e a esperança - humanas de campo em aldeia e em cidade, esmagando pó, carne ou osso. Cavalo a cavalo, todos sucumbem ao fogo e à destruição. Temos até direito a um duelo, em que só a maior astúcia ou inteligência poderá ditar a vitória. Animais, monstros, todos se tornam monstros, todos se transformam. Até o cândido Norman de Lerman, pela força das circunstâncias, quando o impulso ganha domínio sobre qualquer reflexão. Na guerra, não há tempo para isso.

Tivesse David Ayer mais cuidado e inspiração na encenação e na construção das cenas e estaríamos, provavelmente, perante um filme superior, mas não procuro, de todo, cair na tantas vezes fácil lamentação e exigência cinéfilas. Estamos perante um filme tremendo. O momento mais tenso e melhor conseguido será, porventura, aquele central em que as personagens de Pitt e Lerman sobem ao apartamento das primas alemãs. As diferenças linguísticas impõem, desde logo, uma barreira que rapidamente se esbaterá no respeito ou desrespeito com que os soldados tratarão as duas mulheres. A contrabalançar as violentas e viscerais sequências de acção que se antecederam e que se sucederão, esta
 cena mais demorada ou este acto mais delicado; nunca menos brutal ou impactante, pois... o que dizer do emocionante final, em que a coragem é extremada e aqueles homens se superam na defesa do tanque como quem defende a sua própria casa, até ao último fôlego? Que chacina, que final.

Fúria é, por tudo isto, uma homenagem maior a todos esses heróis que manobraram os míticos veículos, armados até aos dentes, atemorizados até ao mais profundo e recôndito lugar das suas almas. Uma homenagem, um retrato embebido num realismo esfomeado, um convite à reflexão, mas um filme. O filme dos tanques. E um filme que vale seguramente a pena. Não leva as cinco estrelas por uma unha negra.

domingo, 29 de janeiro de 2017

ENCONTROS IMEDIATOS DO 3º GRAU (1977)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM 
★★★★★ 
Título Original: Close Encounters of the Third Kind
Realização: Steven Spielberg
Principais Actores: Richard Dreyfuss, François Truffaut, Teri Garr, Melinda Dillon, Bob Balaban, Cary Guffey 

Versão do Realizador

Crítica:

OS SINAIS E O CONTACTO 

Major Walsh, it is an event sociologique.
Claude Lacombe 

Encontros Imediatos do 3º Grau é, por variadíssimos motivos, um dos mais icónicos e extraordinários filmes de Spielberg. Desde cedo fascinado pela cultura popular dos OVNI's, a obra concretiza o abraço duvidoso dos grandes estúdios de Hollywood à temática, numa altura em que a Columbia Pictures encarava sérios problemas financeiros. O devaneio de Spielberg era considerado um risco, mesmo estreando-se na sequência do estrondoso sucesso de Tubarão, considerado o primeiro blockbuster de todos os tempos. Por isso mesmo se estreou em apenas 2 salas, a medo, antes do êxito se propagar pelo país e, depois, por todo o mundo. Alimentaria e ajudaria a expandir o fenómeno dos extraterrestres como poucos, na verdade e de forma incontornável, seguindo-se o acarinhado E.T. - O Extraterrestre em 1982 e só em 2005 o tão subvalorizado Guerra dos Mundos, numa altura em que a sua fé se rendera ao cepticismo - ou não tivessem os avistamentos tão misteriosamente abrandado, em inícios do século XXI, numa era tão marcadamente tecnológica e em que as câmeras de filmar proliferaram. 

A história é sobre pessoas banais (traço comum nas obras do cineasta) que, em circunstâncias extraordinárias, são alvo do extraordinário e concretizam o extraordinário. O Roy de Dreyfuss é exatamente uma dessas pessoas, que se vê alienado do seu dia-a-dia e da sua família por força de um chamamento superior, que o impele e desafia numa busca existencial, em busca de significado, de revelação, de respostas às suas muitas perguntas. O argumento mergulha o fascínio extraterrestre com um complô à escala internacional, que tenta esconder, no maior dos secretismos, os sinais e os contactos entre os humanos e as criaturas desconhecidas. A narrativa avança num impressionante crescendo de suspense, entre cenas em que discos luminosos e voadores rasgam os céus nocturnos, navios aparecem misteriosamente no meio de desertos ou adoráveis crianças são, na sua desarmante inocência, atraídas pelo desconhecido e sequestradas pelos invasores. Nem por um momento, no entanto, Spielberg deixa antever se os extraterrestres nos querem bem ou mal. O segredo adensa-se como o mais forte dos nevoeiros e nós, que presos ao filme nos encontramos, embrenhamo-nos sem resistência. 

Nota para a presença de François Truffaut como Claude Lacombe - Spielberg sempre pensou nele como ideal para o papel, por se tratar de uma criança grande ou de um adulto que vê o mundo com os olhos e a natureza de uma criança. Segundo Spielberg, Encontros é para adultos capazes de se entregarem ao desconhecido com a mesma fé - incondicional - de uma criança. Da mesma forma, espontânea, com que o pequeno Barry (brilhante Cary Guffey) abre a porta de sua casa ao mistério. Destaque ainda para o cuidado inspirado no fecho de determinadas cenas: são como demonstrações de amor à arte, numa arquitetura da cena ao mais ínfimo pormenor, do primeiro ao último instante.

Encontros estreou no mesmo ano de Guerra das Estrelas - o contributo de ambos os filmes para a ficção científica é evidente; não obstante Spielberg preferisse chamar-lhe, no seu caso, especulação científica. Contudo, o poder imagético daquele grandioso final não só ecoa na memória do espectador que adora o género como na própria História do Cinema. Spielberg arquitectou um fascinante espetáculo de luz e som no cume da Torre do Diabo (Wyoming) - para sempre associada ao filme - como se pela matemática da música enquanto linguagem universal fosse possível o contacto e a comunicação. O grande mistério culmina ali, na audaciosa orquestração de John Williams a partir das cinco notas, na extravagância visual da Direção Artística de Joe Alves e Daniel A. Lomino e no portento de fotografia de Vilmos Zsigmond - a experiência transcende-se num momento absolutamente mágico, belo e inebriante.


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CINEROAD ©2020 de Roberto Simões