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domingo, 3 de dezembro de 2017

SILÊNCIO (2016)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
★★★★★
Título Original: Silence
Realização: Martin Scorsese
Principais Actores: Andrew Garfield, Adam Driver, Issei Ogata, Yôsuke Kubozuka, Liam Neeson, Ciarán Hinds, Tadanobu Asano, Shinya Tsukamoto, Yoshi Oida

Crítica:

O ÚLTIMO PADRE NO INFERNO

 Mountains and rivers can be moved
 but men's nature cannot be moved.

Onde está Deus, no fim do mundo? Esta é a questão que o sofrido padre Rodrigues de Andrew Garfield encontrará, vezes sem conta, no seu mais profundo íntimo. Movido pela sua fé supostamente inabalável, cega e inquestionável, incube-se de uma missão que o distanciará do seu ocidente e o mergulhará num Japão de lama e nevoeiro, onde a inquisição persegue e tortura cristãos e professores da fé até à morte. O motivo é encontrar o desaparecido padre Ferreira (Liam Neeson) e continuar o sequioso plano de evangelização da Igreja Católica. Acompanha-o o colega Garupe (Adam Driver), mas depressa cairá no isolamento e na dúvida. Até que ponto pode a semente do cristianismo plantar a sua verdade no ventre de uma cultura tão distinta, com um imaginário tão mais humano e tão menos divino?

Our Buddha is a being which man can become. Something greater than himself, if he can overcome all his illusions. But you cling to your illusions and call them faith.
Intérprete

Até que ponto vale a pena rezar em segredo, na sombra do medo, condenando a existência a uma natureza fantasmagórica? Acreditam os aldeões, verdadeiramente, na palavra de Deus e nas suas representações, ou na palavra dos padres como Rodrigues e nas representações mais aproximadas que o seu imaginário permite? Acreditarão, os que proferem e os que ouvem, efectivamente e com exactidão, nas mesmas coisas? Onde está Deus, no fim do mundo, quando se sacrificam vidas e famílias em nome d'Ele? Para que serve o martírio? Garantirá ele o acesso livre ao paraíso? Valerá o paraíso desconhecido mais do que a existência terrestre, a do dia-a-dia? Poderá definir-se um cristão como aquele que, tão-somente, recusa pisar uma imagem ou cuspir na cruz, quando da apostasia resulta a sobrevivência dos que ama? Porque significa a fé dor e sofrimento e não bem-estar e jubilo? Negar é uma fraqueza ou uma força? A fé em Deus, tornando-nos dele dependentes, é em si mesma uma coisa positiva? Uma vantagem numa vida repleta de agruras e obstáculos? No olhar e nas lágrimas de Garfield espelham-se todas estas interrogações, todas estas dúvidas, num crescendo que se intensifica tão imperioso quanto o silêncio de Deus perante os acontecimentos. Poderá o jovem escutar no silêncio a voz divina e obter uma resposta?

Mais do que uma meditação, Scorsese concretiza um abalo na consciência do crente, adaptando o romance homónimo de Shusaku Endo, naquele que é, seguramente, o seu mais fervoroso ensaio religioso desde a excelência de Kundun. Julgo, inclusive, que as duas obras estabelecem, até determinado ponto, um interessante e estimulante debate e diálogo, acerca de duas perspectivas da fé propostas pelo cristianismo e pelo budismo. Silêncio é, todo ele, uma viagem delicada mas absolutamente densa e imersiva, que desafia, a todo o instante, os limites da fé e que se densifica cada vez mais pela ausência total de música. São os sons da natureza e as vozes dos homens que chegam ao ouvido de quem assiste ao longo dos 160 minutos de exibição. O espectador, perante este quadro, ou se desinteressa e se alheia completamente da história e do filme (o que é fácil de acontecer àquele menos paciente ou treinado) ou se entrega inteiramente no abraço narrativo, porventura perdendo-se quais protagonistas entre aquilo que considerava certo e toda uma nova ou renovada discussão suscitada pelos mais variados suplícios e horríveis provações. A cena da tortura das ondas, contra os crucifixos de carne e osso, é por demais emblemática, a propósito. Até onde vai o fanatismo de uns e o de outros e até que ponto valem a pena? Não será a dita verdade universal um veneno perigoso e letal num mundo assumidamente plural? Porquê a necessidade da conquista, da supremacia, da imposição? Quando os mundos colidem, há um rio de deuses e um oceano de verdades. A verdade... a verdade... a verdade é que o mundo é um só e é de todos. Como podemos conviver, então? Impondo? Ajoelhando? Em última análise, qual a necessidade da fé e o seu contributo em todo o processo? Para crentes ou não crentes, creio, Silêncio é um cântico de urgente pertinência.

O elenco é inteiramente extraordinário, dos nomes já mencionados ao suculento e hilariante inquisidor Inoue de Issei Ogata e ao eterno judas de Yôsuke Kubozuka, tão pronto a pecar e por isso mesmo tão humano. A fotografia de Rodrigo Prieto pinta-nos telas de inebriante beleza, em enquadramentos estudados. Às vezes, a violência gráfica é inevitável e o seu impacto acautelado. Dante Ferretti incorpora a viagem no tempo, por meio das suas verosímeis construções, entre a paisagem húmida e verdejante. E Thelma Schoonmaker demora-nos num ritmo pausado e meditativo, por um sempre brilhante trabalho de montagem. Scorsese despe-se de si próprio (de eventuais trejeitos ou imagens de marca, de esperados jogos de câmera) e encontra, meticulosamente, o melhor movimento, a melhor perspectiva e a melhor influência para contar a sua história. Mas quando é que assim não foi? As suas maiores imagens de marca são a qualidade, a sobriedade e a consistência. Silêncio é, pois, mais um Scorsese em plena forma e mestria. E isto é dizer tanto, sobre um dos maiores cineastas vivos.

domingo, 16 de fevereiro de 2014

A INVENÇÃO DE HUGO (2011)

PONTUAÇÃO: EXCELENTE
★★★★★
Título Original: Hugo
Realização: Martin Scorsese
Principais Actores: Asa Butterfield, Ben Kingsley, Chloë Grace Moretz, Sacha Baron Cohen, Emily Mortimer, Christopher Lee, Ray Winstone, Jude Law, Helen McCrory, Michael Stuhlbarg, Richard Griffiths, Frances de la Tour, Angus Barnett, Kevin Eldon, Ben Addis, Emil Lager, Robert Gill

Crítica:

A MAGIA DO CINEMA

 If you've ever wondered where your dreams come from...
 you look around... this is where they're made.

A Invenção de Hugo tem a luz do entardecer, a mesma da fase crepuscular em que se encontra - o aqui mais genial do que nunca - Martin Scorsese. Custa-nos a crer que, num futuro não muito distante, não haverá mais o próximo do cineasta, a estrear nas salas. É por isso inequivocamente simbólico que, antes do seu derradeiro adeus, erga tamanha homenagem aos primórdios e aos pioneiros da sétima arte, que tanto o inspiraram - tributo maior ao inventivo poder criativo de Georges Méliès -, num fabuloso e sublime conto capaz de inspirar também e tão convictamente as presentes e futuras gerações, que darão continuidade ao seu legado. Hugo é, pois, a metáfora do seu contributo para perpetuar esta arte que é de todos. Um profundo trabalho de engenho e arte, de pura paixão, quase enciclopédico. Uma fascinante lição de cinema. Um filme extremamente prazeroso de se assistir, sobre o prazer de ver e degustar filmes, sobre o culto da cinefilia e a celebração do próprio cinema, como num jogo de espelhos; o melhor a fazê-lo, desde o saudoso Cinema Paraíso, de Tornatore. Não é infantil ou para crianças; sê-lo-á somente, porventura, na melhor das aceções: afinal, gostar de cinema é mantermos viva a criança que há em nós, não perdendo a capacidade de imaginar, de sonhar, de nos outrarmos e de, assim, partirmos à aventura. E é sobre a mágica e maravilhosa aventura do cinema, este Hugo

A nostálgica Paris dos anos 30, de Scorsese, tem o mesmo encanto romântico que teve em Moulin Rouge ou em Amélie, qual postal ilustrado, embora noutra época, noutro tempo. A cidade das luzes e da Torre Eiffel é excecionalmente recriada, digitalmente. A sua estação de comboios tem a monumentalidade de uma catedral, qual Notre Dame, a sua torre do relógio a de uma torre de sinos. Afinal, também as badaladas marcaram o tempo, outrora. Entre o azul e o dourado, perfeitamente iluminada, a fotografia de Robert Richardson transcende-nos em beleza e esplendor; a cada enquadramento, a cada frame. A sofisticação dos efeitos digitais (com o veterano Robert Legato no comando pleno do CGI) confunde-se facilmente com a magnificência dos cenários (mais uma vez, Dante Ferretti e Francesca Lo Schiavo). A profundidade de campo e a imersão do espetador na atmosfera e no mundo do filme são, graças à fenomenal - e pelas mãos de Scorsese absolutamente surpreendente - utilização do 3D, deveras impressionantes. Quase sentimos a neve, a poeira, os fumos e os cheiros. Os sons e os seus demais efeitos são igualmente tremendos.

Logo na abertura, a câmera segue e persegue o pequeno Hugo pelos labirintos da estação, abundante em mecanismos, em planos-sequência tremendamente eficazes, reveladores, não obstante truncados. Soa o acordeão parisiense, a vida tem um ritmo imparável já naqueles dias. Chegam e saem comboios, pessoas, a todo a hora, a todo o instante. O filme centra-se num escasso, porém rico, leque de personagens-residentes que ganham corpo e alma graças às portentosas interpretações do elenco. Temos o caricato inspetor Gustave Dasté (Sacha Baron Cohen), de sorriso raro e forçado e sem aparente coração, que coxeia a armação metálica da sua perna e a sua autoridade por toda a estação, sempre acompanhado pelo seu acutilante dobermann. Sempre que o aparelho encrava, o eco mais constrangedor. A música de Howard Shore reforça especialmente o seu carácter cómico. Só quando cai de amores pela simpática florista lá do sítio acaba por revelar alguma da sua humanidade escondida. Quem lhe escapa a maior parte das vezes é o nosso protagonista, com o qual desenvolvemos uma empatia imediata: Hugo (adorável e promissor Asa Butterfield, de incríveis e espantosos olhos azúis). É como um órfão (os contornos dickensianos da narrativa, aliás, são por demais evidentes): os flashbacks dão-nos conta dos tempos felizes partilhados com o pai falecido (Jude Law), relojoeiro, antes da adoção pelo bêbedo e ausente tio Claude (mais tarde encontrado morto no rio), que o trouxe para a estação e lhe ensinou tudo sobre os relógios tão mecanicamente complexos do local. 

You'll be my apprentice (...) I'll teach you how to take care of them clocks. You've finished with school! There'll be no time for that when you're in them walls (...) Time is everything. Everything. 
Tio Claude

Há um mistério por desvendar: Hugo herdou do pai um enigmático autómato por consertar, com forma humana, que acredita guardar uma mensagem do seu progenitor. Se conseguir o arranjo (nesta altura ainda ser consertavam coisas, hoje deitamos tudo fora) e as peças que lhe faltam, nomeadamente uma chave em forma de coração algures em parte incógnita, talvez consiga descodificá-lo. I thought if I could fix it... then I wouldn't be so alone. É aí que entra outra das personagens centrais da história: Georges (comovente Ben Kingsley), o velho dono da loja de brinquedos da estação, também ilusionista, a quem o miúdo ousa roubar peças e ferramentas para seu proveito. Todavia, é logo apanhado em flagrante. O velho confisca-lhe o bloco de notas, com esboços e instruções sobre o autómato e, ao vislumbrá-lo, abisma-se, claramente emocionado. Ghosts, afirma. Did you draw these pictures? Did you draw these pictures? Where did you steal this? Adensa-se o suspense. Hugo segue o comerciante até casa, visando recuperar o que é seu, mas sem sucesso. Contudo, conhece-lhe a jovem afilhada, de nome Isabelle (Chloë Grace Moretz), um pouco mais alta do que ele, que se tornará sua amiga e inseparável parceira de investigação.

Maybe that's why a broken machine always makes me a little sad, because it isn't able to do what it was meant to do... Maybe it's the same with people. If you lose your purpose... it's like you're broken.
Hugo Cabret

This might be an adventure, and I've never had one before - outside of books, at least. Curioso que Isabelle leia tantos livros e nunca tenha assistido a um filme (o Papá George nunca a deixou ousar, sequer) e que Hugo não os costume ler mas guarde as melhores recordações dessas visões passadas, incutidas pelo pai, anos atrás. Uma das primeiras aventuras dos dois amigos é entrar clandestinamente num cinema e assistir à empolgante escalada de Harold Loyd, prédio acima, no icónico O Homem Mosca, de 1923; o que se traduz numa deliciosa homenagem e piscadela de olho ao filme que inspirará, no último ato, a subida de Hugo à torre do relógio e a sua suspensão - de suster a respiração - no ponteiro do grande relógio. Estava destinado que Hugo encontrasse a chave do autómato, pendurada num fio ao pescoço de Isabelle, e que a máquina esboçasse, qual Sonny no filme de Proyas, um novo enigma: desta feita, um satélite a aterrar na lua, com a assinatura de George Méliès. Golpe de sorte e do destino, novamente: não é Méliès senão o padrinho de Isabelle, dono da loja de brinquedos. Uma gaveta cheia de desenhos e segredos esvoaçantes espera-os, ainda. Méliès foi, afinal, autor de mais de quinhentos filmes! Descobrirão como a chave em forma de coração pode dar vida e alma não só ao autómato, mas a alguém real e a precisar de conserto também há muito tempo.

I'd imagine the whole world was one big machine. Machines never come with any extra parts, you know. They always come with the exact amount they need. So I figured, if the entire world was one big machine, I couldn't be an extra part. I had to be here for some reason. And that means you have to be here for some reason, too.
Hugo Cabret

Há mais filmes dentro do filme, mise-en-abyme, não só o delírio visual e fantástico de Viagem à Lua (1902). Dimensiona-se a mitologia, em múltiplos posters afixados pelos sets ou na integração de breves trechos de alguns incontornáveis: Saída dos Operários da Fábrica Lumière (1895) e A Chegada do Comboio À Estação Ciotat (1896) dos irmãos Lumière, O Grande Assalto ao Comboio (1903) de Edwin S. Porter, Intolerância (1916) de D. W. Grifith ou O Gabinete do Dr. Caligari (1919), de Robert Wiene, entre muitos outros. O cameo de Scorsese faz-se à la A Caixa Mágica (1951), a chegada do comboio à estação faz-se à la A Fera Humana (1938) - o descarrilamento, no sonho dentro do sonho, é a evocação ao trágico acontecimento que a Montparnasse presenciou em 1985 -, a perseguição final pela espiral das escadas faz-se à la A Mulher Que Viveu Duas Vezes (1958). A Invenção de Hugo é um poço de inesgotáveis, inteligentes e honrosas referências.

Happy endings only happen in the movies, diz às tantas Méliès. Felizmente, estamos num filme, livres para ficcionar o melhor dos finais. Decifrar o segredo do autómato pode não lhe ter trazido, a Hugo, o pai de volta, mas trouxe-lhe uma nova família. Historicamente Méliès terá morrido pouco depois dos acontecimentos do filme, mas ainda assim uma família. A busca de Hugo pela verdade desencadeou a redescoberta de Méliès pelo crítico Tabard (Michael Stuhlbarg) - em certa medida alter-ego de Scorsese - e o seu reconhecimento em vida. Motivou a recuperação de mais de oitenta dos filmes do cineasta, um espólio considerável que se julgava perdido para sempre. Possibilitou o reconforto do coração de Méliès, o reencontro consigo próprio, certamente o achado mais valioso. Nem a esmerada dedicação da mulher Jeane (sentimental Helen McCrory), sua musa e atriz em tantos dos seus filmes, lhe conseguiu compensar, ao longo de tantos anos de retiro e anonimato, o desgosto de ter perdido a sua obra; Méliès chegou a destruir os seus cenários, a queimar as suas películas e outras tantas foram derretidas em químicos para a confeção de calçado, em tempos de guerra. 

John Logan (Gladiador, O Aviador ou Sweeney Todd) é o argumentista por detrás da excelente adaptação do livro de Brian Selznick. A narrativa prima pela fluidez, consistência e economia (não há um único momento a mais ou a menos). Acompanhada por uma das melhores bandas sonoras de que há memória, é deslumbrante, inesperada, excitante, enternecedora, ritmada... tudo nas doses certas, com a mesma eficácia e precisão com que um relógio nos dá as horas. Thelma Schoonmaker, sabemo-lo, é das mais brilhantes relojoeiras que o cinema já conheceu - é mestre da montagem como ninguém. Com uma produção destas e profissionais deste elevadíssimo nível - uma extraordinária equipa que colabora com o realizador há anos e anos - não admira que Martin Scorsese nos arrebate com um dos seus melhores filmes.

A Invenção de Hugo é, pois, uma imprescindível obra-prima.

sábado, 25 de janeiro de 2014

ALICE JÁ NÃO MORA AQUI (1974)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
Título Original: Alice Doesn't Live Here Anymore
Realização: Martin Scorsese
Principais Actores: Ellen Burstyn, Kris Kristofferson, Alfred Lutter, Diane Ladd, Mia Bendixsen, Valerie Curtin, Billy Green Bush

Crítica:

ALICE NO PAÍS DELA PRÓPRIA

Tommy: Life is short.
Alice:
Yeah, well, so are you.

Os homens são umas bestas, pobre Alice. Imediatamente antes de Taxi Driver, de 76 - tantos anos antes do feminismo de Thelma e Louise, de Ridley Scott - já a mulher andava no seu carro, de cidade em cidade, rumo à descoberta dela própria ou, pelo menos, do seu caminho para a felicidade através da liberdade/libertação. Muito nova, Alice deixou o emprego e o sonho de ser cantora para casar com Donald (Billy Green Bush), um camionista violento e dominador que se revelou tudo menos o marido ideal. Submissa, condenou a sua individualidade aos dedicados papéis de esposa e de dona de casa. Nascido Tommy (Alfred Lutter), o verdadeiro homem da sua vida, extremou-se enquanto mãe e para lá do desejável ou não se tornasse o miúdo num fala-barato pouco-educado, sempre com a resposta na ponta da língua, para tudo e todos. Felizmente, morre-lhe o marido, de um dia para o outro e, de um dia para o outro, a vida de Alice enche-se de possibilidades. Alice é Ellen Burstyn, dos pés às cabeça, num papel memorável e verdadeiramente extraordinário.

O sonho de voltar às cantorias afigura-se então como a única saída profissional, capaz de os sustentar aos dois, mãe e filho. Alice faz-se à estrada, planeando voltar à Monterey da sua infância e juventude, onde trabalhou sem a dependência de um homem, onde se lembra ter sido alguém por si própria. Para isso é preciso ganhar dinheiro, trabalhar aqui e ali, mas são repetidas as portas que se fecham. O escape da viúva Alice e as suas dificuldades espelham as dificuldades e os desejos das mulheres da sua geração. Eis que conhece o charmoso Ben de Harvey Keitel, pelo qual se interessa, mas o bonitão revela-se mais um bruto pedaço de existência, capaz de apontar a faca a qualquer discussão (e tem outra mulher, ou outras). Os homens são umas bestas, pobre Alice, mas não sabe viver sem eles. Alice precisa de um homem a seu lado, para que se sinta norteada ou protegida, como desabafará mais tarde à obscena Flo de Diane Ladd, na casa de banho azul de um restaurante onde servem à mesa, naquela que será provavelmente a sequência mais cómica do filme (se bem que o bom humor é coisa que pontua o todo). O caos instala-se no serviço de mesa, enquanto as duas empregadas fazem um intervalo porque lhes apetece. Será nesse restaurante que conhecerá um barbudo sereno e com muito bom ar (Kris Kristofferson), dono de um rancho e tocador de guitarra, que lhe acelerá os batimentos do coração. Um homem capaz de ser o pai de que Tommy precisa, que lhe diga não, que lhe dê um tabefe no momento mais oportuno, que o forme para o respeito e para as adversidades da vida; educação que, é claro, Alice não está a conseguir (mantém com o filho uma relação de iguais, sem especial autoridade, como se o miúdo fosse um adulto e não precisasse de estruturação. Alice não tem consciência da sua falha, ser mãe e pai não é fácil e esforça-se para que não falte nada ao pequeno). Engraçado encontrar Jodie Foster em criança, tão maria-rapaz, a desencaminhar Tommy para a rebeldia e para os princípios da delinquência.

Que género tem Alice Já Não Mora Aqui? É drama, melodrama, comédia e paródia, chega a ser road movie. Scorsese, sempre muito inspirado e dinâmico no movimento da câmera (a liberdade dos vários travellings fala por si), às vezes trémulo, toca vários registos. O argumento de Robert Getchell permite-o. A imagem é propositadamente imperfeita, há quase um tom experimental na filmagem e nos enquadramentos, próprios de um cineasta que, qual Alice, também procura o seu caminho. É um filme muito sui generis, que emana alguma espécie magnetismo. É um filme a recordar, sem esforço.

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

NOVA IORQUE FORA DE HORAS (1985)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
Título Original: After Hours
Realização: Martin Scorsese
Principais Actores: Griffin Dunne, Rosanna Arquette, Verna Bloom, Tommy Chong, Linda Fiorentino, Teri Garr, John Heard, Cheech Marin, Catherine O'Hara, Dick Miller, Will Patton, Robert Plunket, Bronson Pinchot, Rocco Sisto, Larry Block, Victor Argo, Murray Moston

Crítica:

UMA NOITE DE PESADELO

I want to live.

O Grito
de Munch volta a Scorsese e, com ele, a memória de Taxi Driver. Volta a cidade e a noite e a cidade na noite. Volta o purgatório, a alma perdida, condenada pela rotina do dia-a-dia, dramatizada e denunciada logo nos primeiros minutos pela ária de Bach.

Terminado mais um dia de trabalho, o desejado escape começa... o protagonista deixar-se-á viver livremente, ao sabor das circunstâncias... aos poucos, crescerão o suspense, a tensão e o mistério. O bizarria dos acontecimentos, cada vez mais insólita e desconcertante, far-nos-á desconfiar da veracidade da experiência. Como que num labirinto interminável de ruas soturnas ou semi-iluminadas, aprisionantes e asfixiantes, ora desertas ora repletas de perseguidores, montar-se-á o pesadelo. Um furo na lógica, dissimulado, marca a passagem do drama - sem jamais abandonar a sátira - à derradeira comédia; e como é brilhante, Scorsese, na comédia. Mestre da câmera, aliado à determinante fotografia de Michael Ballhaus e à elevada eficácia narrativa da montagem de Thelma Schoonmaker, flui um dos mais imprevisíveis e inesquecíveis argumentos com que nos podemos cruzar.

After Hours é absolutamente magnetizante.


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Nota especial para o poster, acima apresentado, ajustadíssimo e representativo quanto baste da essência do filme.

sábado, 17 de agosto de 2013

SHUTTER ISLAND (2010)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
Título Original: Shutter Island
Realização: Martin Scorsese
Principais Actores: Leonardo DiCaprio, Mark Ruffalo, Ben Kingsley, Max von Sydow, Michelle Williams, Emily Mortimer, Patricia Clarkson, Jackie Earle Haley, Ted Levine, John Carroll Lynch, Elias Koteas, Robin Bartlett, Christopher Denham, Nellie Sciutto, Joseph Sikora

Crítica:

A ILHA MISTERIOSA

You'll never leave this island.

Dissertar - em cinema - sobre a loucura, faz-me invocar, instantaneamente, aquele clássico magistral de 75, protagonizado pelo genial Jack Nicholson, Voando Sobre Um Ninho de Cucos. Naquele hospício imoral, delineava-se uma linha bastante ténue entre a saúde e a demência mentais. Ser louco poderia significar coisas distintas, consoante o juiz, e a facilidade com que se sentenciava a loucura de alguém apresentava-se-nos como algo de verdadeiramente assustador. Pois bem, este inquietante objecto fílmico de Martin Scorsese segue a mesma premissa; transportando-a, porém, para um ambiente kafkiano, muito mais tenebroso e sinistro, e servindo-se do suspense como principal condutor da narrativa.

O argumento de Laeta Kalogridis, a partir do romance homónimo de Dennis Lehane, equilibra-se, labriríntico e intrincado, sobre a ambiguidade: terá reais fundamentos a investigação do U.S. marshal Teddy Daniels, sobre a conspiração secreta que submete os pacientes do remoto hospital a inovadoras, dolorosas e desumanas experiências científicas, ou será ele próprio um louco paranóico, como tantos outros dos edifícios A, B e C, vivendo num mundo inventado à sua medida? O condão maior tanto do argumento como da realização é o de confundir habilmente o espectador, dificultando-lhe o acesso à verdade e colocando-o na pele do protagonista, dividido entre a sua razão e a razão dos outros.

Os sonantes acordes da banda sonora (Mahler, Ligeti, Ingram Marshall, Penderecki, entre tantos outros) potenciam, de imediato, a atmosfera de terror, assim como o esplendor enigmático da fotografia (Robert Richardson). Os flashbacks, sejam eles sonhos, alucinações ou recordações, alimentam o mistério, adensam a complexidade da história nas suas múltiplas possibilidades. Às tantas, todavia, só dois caminhos se nos restam possíveis e a imprevisibilidade desvanece-se. A conclusão do enredo não é a mais surpreendente e original, mas o filme revela-se sólida e arrojadamente construído e muito bem escrito.

A interpretação de Leonardo DiCaprio é absolutamente magnetizante. O extraordinário talento do actor envolve-nos do princípio ao fim, em perfeita sintonia com as portentosas prestações de Ben Kingsley, Patricia Clarckson, Jackie Earle Haley, Max von Sydow ou Michelle Williams. Dante Ferretti e Francesca Lo Schiavo garantem a qualidade irretocável da direcção artística, Sandy Powell assina o figurino e Thelma Schoonmaker trabalha a montagem do filme, conferindo-lhe uma fluidez assinalável.

Shutter Island afirma-se, pois, como um exercício tecnicamente sofisticado, ao qual se lhe alia uma arte de filmar virtuosa e que transpira maturidade. Um pedaço de cinema brilhante e, no fim de contas, extremamente prazeroso de se assistir.

Which would be worse, to live as a monster,
or to die as a good man?

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

A ÚLTIMA TENTAÇÃO DE CRISTO (1988)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
Título Original: The Last Temptation of Christ
Realização: Martin Scorsese
Principais Actores: Willem Dafoe, Harvey Keitel, Paul Greco, Steve Shill, Verna Bloom, Barbara Hershey, Roberts Blossom, Barry Miller, Gary Basaraba, Irvin Kershner, Victor Argo, Michael Been, Paul Herman, John Lurie, Leo Burmester

Crítica:

O CRISTO PROIBIDO

I am the saint of blasphemy.

Depois de dezenas de representações de Cristo no cinema, todas mais ou menos consensuais (se não tivermos em conta, sobretudo, a versão superstar), eis que nos deparamos com aquela que será, porventura, uma das mais chocantes, ousadas e irreverentes. A partir do romance Nikos Kazantzakis, livremente baseado nas segradas escrituras, A Última Tentação de Cristo propõe-nos um retrato polémico e controverso, onde Jesus, mais do que o messias divinizado que os textos eternizaram, nos surge finalmente como um homem - um homem agoniado pelos seus conflitos interiores, duvidando da sua fé e da sua missão, sentindo o medo, o ódio e a culpa e desejando o pecado da carne como qualquer outro homem. Um homem dotado de livre arbítrio que, em última instância, se eternizou por vontade própria.


Father, will you listen to me? Are you still there? Will you listen to a selfish, unfaithful son? I fought you when you called, I resisted! I thought of no more. I didn't want to be your son! Can you forgive me?

A representação, pouco ortodoxa, atentará facilmente contra os mais devotos, mas é somente mais uma representação (que responde, claro está, a uma necessidade contemporânea de humanizar e desmistificar a figura histórica de Cristo). A questão é pertinente: se lembrarmos a alucinação de Cristo às portas da morte (que por si só justifica o título da obra), recordar-nos-emos daquela emblemática cena em que Jesus reencontra o cego-alvo-de-milagre a espalhar a palavra e a retratar o Filho de Deus, sendo que o próprio Filho de Deus não se revê nas suas palavras. Até que ponto não terão romanceado, os evangelhos, a vida e a palavra de Cristo, atendendo aos mais variados propósitos?



I'm a liar. A hypocrite. I'm afraid of everything. I never tell the truth. I don't have the courage. When I see a woman, I blush and look away. But inside I have lust. For God, I smother the lust, and that satisfies my pride. But my pride destroys Magdalene. I never steal or fight, or kill... not because I don't want to but because I'm afraid. I want to rebel against everything, everybody... against God!... but I'm afraid. If you look inside me you see fear, that's all. Fear is my mother, my father, my God.

O argumento Paul Schrader suscita um questionamento contínuo e uma reflexão profunda sobre a natureza das crenças instaladas, particularmente sobre as religiões cristãs. O twist final eleva, num cúmulo criativo, toda esta mensagem do filme. Enfim, grande exercício dramatúrgico, magistralmente filmado por Scorsese. Willem Dafoe compõe um Cristo memorável, em toda a complexidade que o papel exigia.
Peter Gabriel experimenta-nos as emoções, pela inspiração da música. A produção artística, dos cenários ao guarda-roupa, confere autenticidade à viagem no tempo e a fotografia de Michael Ballhaus perpetua a aridez do deserto na solidão da alma.


Mais um exemplo da versatilidade e da qualidade do cinema de Scorsese.

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

O CABO DO MEDO (1991)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
★★★★
Título Original: Cape Fear
Realização: Martin Scorsese
Principais Actores: Robert De Niro, Nick Nolte, Jessica Lange, Juliette Lewis, Joe Don Baker, Robert Mitchum, Gregory Peck, Martin Balsam, Illeana Douglas, Fred Dalton Thompson

Crítica:

O PESADELO INFERNAL

Every man... every man has to go
through hell to reach paradise.

O Cabo do Medo é como que Scorsese a brincar a Hitchcock. A sua câmera marca uma presença soberana na condução narrativa - cada um dos seus movimentos tem um papel activo e determinante na construção do suspense, que se intensifica num crescendo sufocante e irreversível à medida que caminhamos para o desfecho brutal. E que exímio exercício de construção e de suspense! Tensão, medo, claustrofobia, todas estas sensações nas doses exactas, nos momentos certos. Qual montagem, sempre ágil, precisa e acutilante, a técnica magnetiza eficazmente as atenções do espectador, manipulando o ritmo. Elmer Bernestein recupera a banda sonora de Bernard Herrmann e potencia uma experiência deveras arrepiante.

Ainda que seja um filme formalmente atípico na carreira do cineasta, encontramos neste remake o mesmo olhar frio e cerebral de sempre, sobre a violência e sobre o mundo do crime; temas recorrentes na filmografia de Scorsese, como sabemos. E encontramos, pois claro, o também recorrente Robert De Niro, numa performance extraordinária, verdadeiramente assombrosa. Provavelmente, uma das suas melhores interpretações de sempre. De Niro é Max Cady, um imprevisível, doentio e repugnante fantasma do passado, um psicopata de sorriso irónico e ameaçador, que procura a vingança junto do seu antigo advogado Sam Bowden (Nick Nolte) e da sua respectiva família (Jessica Lange, Juliette Lewis). Recém-libertado da prisão, passa a perseguir os seus alvos sem cessar, apertando-lhes cada vez mais o cerco. Sam espera, desespera e lança-se em estratagemas menos ortodoxos na tentativa de se livrar do louco, ainda que em vão. Max é extremamente engenhoso, meticuloso e inteligente e ultrapassará todos os limites numa caça sem tréguas.

I ain't no white trash piece of shit. I'm better than you all! I can out-learn you. I can out-read you. I can out-think you. And I can out-philosophize you. And I'm gonna outlast you. You think a couple whacks to my guts is gonna get me down? It's gonna take a hell of a lot more than that, Counselor, to prove you're better than me!
Max Cady

Perante a assustadora vivência, a utilidade do código: seguir o dever e a ética profissional ou a lei moral? O conflito assola a reflexão e a fraqueza da justiça dos Homens é posta em evidência.

Maybe 2000 years ago, we'd have stoned him to death.
I can't operate outside the law. The law is my business.
Sam Bowden

Daí o confronto final ter uma simbologia especial. Perante a ameaça da violência e na luta pela sobrevivência, todas as leis caem por terra. A justiça primitiva é a única possível e a semente do crime pende igualmente para ambos os lados da balança. Todos os homens podem ser culpados e agentes de violência, tenham razões para isso. Desse prisma, as diferenças entre Max e Sam tendem, às tantas, a dissipar-se. As circunstâncias da vida encarregar-se-ão finalmente de os encaminhar para a redenção ou não.

Max Cady: I'm Virgil and I'm guidin' you through the gates of Hell. We are now in the Ninth Circle, the Circle of Traitors. Traitors to country! Traitors to fellow man! Traitors to GOD! You, sir, are charged with betrayin' the principles of all three! Quote for me the American Bar Association's Rules of Professional Conduct, Canon Seven.
Sam Bowden: "A lawyer should represent his client... "
Max Cady: "Should ZEALOUSLY represent his client within the bounds of the law." I find you guilty, counselor! Guilty of betrayin' your fellow man! Guilty of betrayin' your country and abrogatin' your oath! Guilty of judgin' me and sellin' me out! With the power vested in me by the kingdom of God, I sentence you to the Ninth Circle of Hell! Now you will learn about loss! Loss of freedom! Loss of humanity! Now you and I will truly be the same...

Enfim, magistral. Psicologicamente estonteante.

sexta-feira, 8 de julho de 2011

NEW YORK, NEW YORK (1977)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
Título Original: New York, New York
Realização: Martin Scorsese
Principais Actores: Liza Minnelli, Robert De Niro, Lionel Stander, Barry Primus, Mary Kay Place, Georgie Auld, George Memmoli, Dick Miller, Murray Moston, Lenny Gaines, Clarence Clemons, Kathi McGinnis

Crítica:


If I can make it there
I'll make it anywhere
...


AMAR EM NOVA IORQUE

It's up to you
New York, New York!

Entre a vida e o artifício, New York, New York, de Martin Scorsese, é puro espectáculo, puro requinte. É um elogio ao amor sobre a guerra, à cidade que nunca dorme e uma homenagem maior aos musicais de estúdio que, outrora, consagraram Hollywood. Essa aura especial é, aliás, perfeitamente recriada. A obra concretiza - através da tempestuosa relação de Jimmy e Francine Evans - uma autêntica e contínua antologia de inspiradíssimos diálogos e cenas, tantos deles improvisados, absolutamente memoráveis. Scorsese, sempre dotado de elevada sensibilidade estética, conduz a trama com apreço pelos fait-divers e perde-se neles; perde-se no sentido demora-se, maravilhado e encantado. E nós perdemo-nos com ele.
 
O filme é tanto mais do que eles, mas é igualmente compreensível dizer que Roberto DeNiro e Liza Minelli são o filme. Transbordando talento e dedicação, a química entre os dois transcende facilmente a tão pouca convencionalidade do romance.
Jimmy, um saxofonista egoísta e possessivo, machista e conflituoso quanto baste. Francine, uma graciosa cantora, que se deixar seduzir pela lata do fanfarrão. Têm em comum a ambição e a música. Amam-se, mas são incompatíveis - isso percebe-se logo desde o início. A espaços, lembramos Minnie and Moskowitz, de Cassavetes, e a sua improvável e atribulada relação. No final, a sós, cada um encontra o sucesso profissional e os sonhos de ambos tornam-se realidade. É incrível como apenas separados, à distância, conseguem triunfar. Os opostos atraem-se, mas destroem-se mutuamente. Nem um filho os consegue unir.


O tema New York, New York - que o filme (e mais tarde Frank Sinatra) eternizou - cresce ao ritmo da sua relação, dos créditos iniciais ao grande desfecho. Minneli interpreta vorazmente outros tantos temas poderosos ou essencialmente espirituosos: There Goes the Ball Game, The Man I Love, mas sobretudo But the World Goes 'Round. A excelência da música é comum aos mais variados departamentos técnicos: László Kovács, à frente da direcção de fotografia, capta a atmosfera da noite nova-iorquina e dos bares onde flui o jazz e o blues, fundindo habilmente as cores, os brilhos e as luzes. A direcção de figurinos (Theadora Van Runkle) e a artística (Boris Leven, Harry Kemm, Robert De Veste e Ruby R. Levitt) esmeram-se claramente no mesmo sentido, em cada decór, dos interiores aos exteriores fabricados e aos esplendorosos palcos da Broadway; gloriosa, a recuperada sequência Happy Endings, onde Minneli e figurantes cintilam vermelhos no mais excêntrico guarda-roupa.


Um filme em tudo magistral, negligenciado pelo público e pela crítica aquando da estreia, mas merecidamente distinguido entre os melhores, à medida que o tempo lhe faz justiça.


sábado, 18 de setembro de 2010

POR UM FIO (1999)

PONTUAÇÃO: BOM
Título Original: Bringing Out the Dead
Realização: Martin Scorsese
Principais Actores: Nicolas Cage, Patricia Arquette, John Goodman, Ving Rhames, Tom Sizemore

Crítica:

NOVA IORQUE FORA DE HORAS

I'd always had nightmares,
but now the ghosts didn't wait for me to sleep.

Em Por um Fio - presentes estão as reminiscências de Taxi Driver - o atormentado é Frank Pierce (Nicolas Cage, num grande papel), um paramédico do serviço de urgência de Nova Iorque, que deambula pela cidade, à noite, pronto a prestar socorro a qualquer momento.

Saving someone's life is like falling in love. The best drug in the world. For days, sometimes weeks afterwards, you walk the streets, making infinite whatever you see. Once, for a few weeks, I couldn't feel the earth - everything I touched became lighter. Horns played in my shoes. Flowers fell from my pockets. You wonder if you've become immortal, as if you've saved your own life as well. God has passed through you. Why deny it, that for a moment there - why deny that for a moment there, God was you?

As chamadas sucedem-se e a sua âmbulância cruza um autêntico inferno de condenados: miseráveis, drogados, prostitutas... Às tantas, a grande questão para ele é precisamente: para quê salvá-los, se ninguém os cura e se eternamente continuarão a ser o lixo da cidade? Há compaixão para com esses perdidos, mas, ao mesmo tempo, todos eles enchem as alas hospitalares, noite após noite, todos eles estão mortos e não há esperança de salvação. Não seria mais útil para a sociedade salvar apenas aqueles interessados na vida?

A contradição da profissão que desempenha começa a angustiar Frank, seriamente. A falta de dormir e de se distanciar desta atmosfera louca e sinistra impõe-se. Tenta despedir-se e afastar-se, mas simultaneamente sente misericórdia para com as personagens noctívagas, repetentes e reincidentes. O cansaço torna-se tão intenso que Frank sucumbe ao ritmo frenético das urgências, iluminado pelas luzes e pelas cores da cidade (fotografia de Robert Richardson), e começa a alucinar, assombrado pelas vidas que perdeu, e pelas vozes daquelas que lhe imploram por partir.

O filme é negro, satírico, e o humor que lhe verte da veia é cáustico, corrosivo (argumento de Paul Schrader, a partir do romance de Joe Connelly). O filme, de resto, encontra-se bem montado e bem realizado, virtuoso nos movimentos de câmera e na captação de todo o ambiente daquelas ruas. O restante elenco tem prestações convincentes; destaco Patricia Arquette, John Goodman e Tom Sizemore. O filme é bom, mas é claramente um filme menor de Martin Scorsese, tendo em conta os tantos títulos magistrais e/ou geniais que a sua carreira nos trouxe. Porém, é um feito que - sem dúvida - muitos outros realizadores gostariam de igualar.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

KUNDUN (1997)

PONTUAÇÃO: EXCELENTE
★★★★★
Título Original: Kundun
Realização: Martin Scorsese
Principais Actores: Tenzin Thuthob Tsarong, Gyurme Tethong, Tulku Jamyang Kunga Tenzin, Tenzin Yeshi Paichang, Tsewang Migyur Khangsar, Tencho Gyalpo, Sonam Phuntsok, Gyatso Lukhang, Tenzin Trinley, Jigme Tsarong, Robert Lin

Crítica:

A RODA DO TEMPO
E O GRANDE SILÊNCIO

I am a reflection, like the moon, on water.
When you see me, and I try to be a good man, see yourself.


Sob o espectro da eternidade, ao longo do qual a natureza renasce e reincarna, ciclicamente, os budistas acreditam no nirvana, um estado sublime de pureza e de libertação, no qual as almas superam a existência, os sentidos e o material e atingem a paz absoluta no imaterial. Só a meditação e a introspecção, no grande silêncio e na serenidade deles próprios, lhes permitirá essa iluminação. Kundun não é senão um épico visionário e magistral, dotado de uma sensibilidade extraordinária, que nos conduz pela transcendência dessa espiritualidade.

O estilizado argumento de Melissa Mathison conta-nos a história de Tenzin Giatso, a criança que, com apenas dois anos e meio, foi encontrada e escolhida para liderar os deveres religiosos e políticos do seu país, o Tibete, e que desde então se apresentou ao mundo como o sucedâneo de uma adorada e inspiradora linhagem: a linhagem do Dalai Lama.

I will liberate those not liberated. I will release those not released. I will relieve those unrelieved. And set living beings in nirvana.
Dalai Lama

Tenzin Giatso cresce entre os monges, no Palácio de Potala, desde os tempos em que foi encontrado em criança e nos quais não teve oportunidade, efectivamente, para ser criança (I am only a boy); ressoam as reminiscências de O Último Imperador, de Bertolucci. Tenzin torna-se um estudioso e um pensador erudito, fascinado por sapatos, cinema e por todas as invenções do ocidente às quais tem acesso, e um representante máximo da não-violência. Dalai Lama doesn't believe in war. Quando a ameaça comunista da China de Mao Tse-Tung reclama o Tibete como parte integrante do seu território e impõe a guerra, a missão de zelar pela espititualidade e pela paz de um mundo em sangue revela-se tremendamente dificultada. O império chinês intensifica a opressão, o conflito invade as suas fronteiras, alastrando-se na sua moral e consciência.

Religion is poison. It undermines the race and it retards the progress of the people. Tibet has been poisoned by religion.
Mao Tse-Tung

Tibet has never been part of China. We are different races. We are different cultures. We need change, we know that. But we could do it alone. We were just about to do it alone. (...) If we agree that we are part of China, nothing else will matter. Not trade, not defense. We will be lost.
Dalai Lama

Como lutar com um inimigo quando a nossa religião tem como arma apenas e só o silêncio e a meditação? A menos que deles resulte a acção essencial, o entendimento entre os diferentes povos não será possível. Às tantas, só o exílio lhe é possível, em Dharamsala, na Índia. A profundidade da história, essa, sentimo-a a cada instante.

Kundun atinge níveis de uma perfeição técnica aos quais raríssimas obras se poderão igualar. A fotografia de Roger Deakins, por exemplo, é de uma beleza não só impressionante e desarmante como de cortar a respiração, verdadeiramente. É como poesia pintada a ouro. Por vezes, ecoa Kurosawa na composição do plano. A banda sonora de Philip Glass é absolutamente magnífica e lança-nos um feitiço inesquecível. Como uma melopeia, plena de harmonia e en
volvência, une-se com o genial trabalho de montagem de Thelma Schoonmaker na criação de uma cadência hipnótica, que nos inebria durante toda a experiência e que faz com que a estrutura episódica do argumento flua com virtuosa densidade poética. Poesia, poesia, poesia. O guarda-roupa e todos os cenários (Dante Ferretti) são de um detalhe, exuberância e requinte notáveis - daí o filme reclamar uma autenticidade poucas vezes conseguida - e a câmera de Scorsese, por fim, num movimento contínuo e inspirado, atinge momentos de uma subtileza, maturidade e simbolismo assinaláveis. Note-se, a respeito do simbolismo, toda a carga semântica que a construção e destruição daquela colorida mandala, já no final, potencia.

É neste Kundun, um dos filmes menos citados do mestre Martin Scorsese, curiosamente, que encontro a plenitude da excelência e o reflexo da genialidade. Creio que será porventura numa obra como esta que Scorsese concretiza a expiação da violência que tão frequentemente assombra os seus filmes. Pessoalmente, considero Kundun um dos seus melhores filmes. Puro deleite cinematográfico, do melhor cinema que pode existir.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

GANGS DE NOVA IORQUE (2002)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
Título Original: Gangs of New York
Realização: Martin Scorsese
Principais Actores: Leonardo DiCaprio, Daniel Day-Lewis, Cameron Diaz, Liam Neeson, Jim Broadbent, John C. Reilly, Henry Thomas, Brendan Gleeson, Alec McCowen, David Hemmings, Cara Seymour, Gary Lewis, Tim Pigott-Smith, Barbara Bouchet

Crítica:

ERA UMA VEZ A AMÉRICA


No matter what they did to build this city up again... for the rest of time... it would be like no one even knew we was ever here.

Em si e por si, Gangs de Nova Iorque constitui um autêntico colosso, com uma abertura e um desfecho verdadeiramente memoráveis e geniais e onde a personalidade colectiva de uma identidade por definir tende a assumir, ao longo de todo o filme, o protagonismo; ainda muito mais do que a poderosa e brilhante interpretação de Daniel Day-Lewis. E é uma América emergente, gritante e em permanente fermentação, esta que Martin Scorsese nos apresenta com toda a sua mestria.

Tecnicamente, a obra é irrepreensível: tanto na fotografia de Michael Baullhaus, como nos cenários e decoração de Dante Ferretti e Francesca Lo Schiavo ou como no guarda-roupa de Sandy Powell. A montagem é absolutamente soberba e, aqui e ali, manifestamente incisiva: Thelma Schoonmaker é a responsável. Os desempenhos dos actores secundários confirmam, também, as excelentes escolhas de casting. Destaque final para a magnífica canção dos U2, que encerra o filme: The Hands That Built America; o culminar perfeito para a banda sonora de Howard Shore.

Eis, em tom operático e triunfante, uma visão cheia de detalhe, ambição e perfeccionismo. Uma obra monumental e magnificente. E, sem sombra para dúvida, mais um clássico instantâneo de Scorsese.

domingo, 8 de agosto de 2010

TOURO ENRAIVECIDO (1980)

PONTUAÇÃO: EXCELENTE
★★★★★
Título Original: Raging Bull
Realização: Martin Scorsese
Principais Actores: Robert De Niro, Cathy Moriarty, Joe Pesci, Frank Vincent, Nicholas Colasanto, Theresa Saldana, Mario Gallo, Frank Adonis, Joseph Bono, Frank Topham, Lori Anne Flax, Charles Scorsese, Don Dunphy, Bill Hanrahan, Rita Bennett

Crítica:

O RINGUE DA VIDA

If you win, you win. If you lose, you still win.

Touro Enraivecido terá, porventura, a melhor cena de abertura de todos os tempos. Um ringue enche o ecrã; nele, um só homem: Jake LaMotta, saltando e socando o vazio em slow motion. Que nem um bailado, o tema Cavalleria Rusticana, de Pietro Mascagni, eleva o momento à perfeição. A beleza é tal que nos transcende, em absoluto... e enraíza-se na memória.

O argumento da obra de Scorsese desenvolve-se, depois, dentro e fora dos ringues. Dentro, nos sucessivos combates que marcam a carreira do pugilista de pesos-médios; combates, aliás, constantemente identificados e datados; datando, por sua vez, também a acção. Fora, na vida pessoal de Jake LaMotta, num primeiro e num segundo casamento, nas relações amorosas e familiares. Ambas as realidades se regem pela testosterona; e nesse retrato Scorsese é bem claro: dos italianos, LaMotta não herdou apenas o sangue. Herdou toda uma tradição cultural que minimiza e inferioriza o papel da mulher, reduzindo a femme fatale a objecto sexual e a responsável pelas lides domésticas. É um culto machista, de glorificação do homem sobre todas as coisas, alimentado pela honra e pelo orgulho. Não admira, pois, que as mulheres sejam tratadas com violência - violência que o lutador não consegue canalizar estritamente para os combates profissionais; os quais, aliás, põe acima de qualquer relação. LaMotta é, como adianta o título, como um touro enraivecido. É perseguido pelos nervos e perseguidor dos cornos - que nunca existirão. O ciúme doentio e o devaneio da traição enlouquecê-lo-ão, destruindo os seus pilares fundamentais: o casamento, a relação com o irmão e o boxe. Convertido em playboy desrespeitoso, mal amanhado e sozinho, Jake LaMotta há-de confrontar-se a si próprio; e, nesse momento, há-de ver, há-de ver-se como nunca, que nem a parábola bíblica do cego.

Misto de violência, sensualidade e erotismo, Touro Enraivecido é a arte de filmar no seu esplendor máximo. A cada cena, a cadência única e inspirada de Scorsese, a magnífica cinematografia de Michael Chapman ou o extraordinário trabalho de montagem de Thelma Schoonmaker elevam-se em uníssono harmonioso na concepção de arte pura. A mise-en-scène é assaz cuidada e relevante tanto para o enquadramento social como para fins artísticos. A salientar, ainda, determinadas opções estéticas como a original manipulação do som em algumas cenas de combate ou a alternância entre filmagem e fotografia, entre a cor e o preto-e-branco para acelerar e sintetizar o tempo diegético... Por fim, as prestações do elenco: grandes desempenhos de Cathy Moriarty e de Joe Pescy. Robert DeNiro, na sombra do génio, é a tour de force de todo o filme; transfigura-se a si próprio, genuíno, intenso e inesquecível. Que performance magnífica.

Da primeira à última cena, eis, pois, um triunfo sem precedentes. Um dos melhores filmes do mestre, capaz de deixar qualquer um completamente... K.O.!

quinta-feira, 15 de abril de 2010

TUDO BONS RAPAZES (1990)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
Título Original: Goodfellas
Realização: Martin Scorsese
Principais Actores: Robert De Niro, Ray Liotta, Joe Pesci, Lorraine Bracco, Paul Sorvino, Frank Sivero, Tony Darrow, Mike Starr

Crítica:

A RECOMPENSA DO CRIME

As far back as I can remember,
I always wanted to be a gangster.

Tudo Bons Rapazes é mais uma dessas magistrais concretizações scorsesianas, onde a arte atinge um estado sublime e irrepreensível. A viagem é ao mundo do crime, à máfia nova-iorquina dos anos 50, 60 e 70, ao fascínio e à decadência atroz desse boémio, brutal e imoral universo. Tal como nesse cru, violento e imprevisível meio, a narrativa avança, pára e retrocede sem regras pré-estabelecidas. A sua forma varia consoante a melopeia encantatória ou a alucinação frenética da cocaína.

Baseado em factos verídicos e a partir do seu próprio romance, Nicholas Pileggi desfere o argumento com uma frontalidade e virtuosidade ímpares. Num entretenimento sempre cativante, pouco sentimental, violento e com um fio de humor sarcástico e provocador, temos um elenco de luxo (Robert De Niro, Ray Liotta e um fenomenal Joe Pesci) em papéis memoráveis. Ray Liotta é Henry Hill: desde pequeno que sonha ingressar na elite dos anéis de ouro e da vida fácil. Com os amigos certos, entra num caminho sem retorno onde vale tudo para fazer dinheiro. A amizade existe, mas à base de interesses. A traição é um prato indispensável, que se serve frio. Outras vezes, serve-se por impulso, outras por compulsão. A narração é feita a duas vozes, mas na sua maior parte surge na voz do protagonista, que se auto-analisa por meio dela, num non-sense inovador. O argumento dá também voz à mulher de Henry e por meio dela temos acesso ao ponto de vista feminino. Apercebemo-nos da violência do casamento e da pertinência do seu valor. Valor que, como tantos outros, tendem a tornar-se normais, ainda que eticamente reprováveis. No fim de contas, porém, compensará o crime? O filme dá resposta. Seja de faca em punho, de arma em riste ou com fatal ironia.

A assegurar a rítmica e fluída linguagem que todo o filme propõe temos - absolutamente indissociável - o nome de Thelma Schoonmaker. O seu talento para - filme após filme - cortar e montar, se renovar e superar impõe-se como um extraordinário exemplo de criatividade. As canções têm também um papel determinante. Afinal, são à volta de 40 canções, as que suportam a narrativa, com diferentes sonoridades. Tudo Bons Rapazes é, por isso também, uma obra tão marcadamente musical. A câmera, por sua vez, filma inspiradíssima, com uma precisão e visão estética notáveis. Em última instância, uma obra como Tudo Bons Rapazes revelar-se-á - sempre - como um corajoso e magnetizante exercício de cinema.


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CINEROAD ©2020 de Roberto Simões