sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

EASY RIDER (1969)


PONTUAÇÃO: MUITO BOM

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

IMORTAIS (2011)

PONTUAÇÃO: RAZOÁVEL
Título Original: Immortals
Realização: Tarsem Singh
Principais Actores: Henry Cavill, Mickey Rourke, Stephen Dorff, Freida Pinto, Luke Evans, John Hurt, Joseph Morgan, Isabel Lucas

Crítica:


OS DEUSES E OS HOMENS

Fight! For immortality!


Para os admiradores maiores da mitologia clássica, Imortais soar-lhes-ia, logo à partida, como uma proposta irresistível e absolutamente irrecusável. Não morre, afinal, a esperança de encontrar no cinema uma adaptação à altura do nosso fascínio pela cultura grega. O trailer, contudo – e sejamos francos - já nos fazia temer um produto com pouco mais interesse do que o meramente comercial, apesar da promessa de prodígio visual. Na verdade, aquilo que temos em Imortais é um épico gorado, tremendamente eloquente na sua retórica inócua, profundamente ridículo para os puristas que esperariam o impossível da reconstituição histórica, com base num mito amplamente cultuado através dos séculos, mas aqui um tanto ou quanto desvirtuado em prol de um filme para adolescentes, assente no maniqueísmo das suas personagens e no facilitismo dos seus processos narrativos. Imortais é, sobre todas as coisas, espectáculo. Espectáculo que se quer rentável. Os deuses da indústria pouco se interessam, ao que parece, com a memória dos Homens.

Depois da obra-prima visual que é The Fall – Um Sonho Encantado, num circuito mais independente, Tarsem abraça finalmente o cinema de massas. Já em 2000 havia dado que falar com o seu filme de estreia, protagonizado por Jennifer Lopez, A Cela, onde cruzou, pela primeira vez, o thriller policial centrado num bizarro psicopata – muito ao género de Silêncio dos Inocentes e de Sete Pecados Mortais – com o seu universo perfeccionista, fantasioso e surreal, onde o esplendor visual atinge o mais elevado requinte. Imortais dá continuidade a essa estética, entregando-se finalmente às infinitas potencialidades do digital. Neste campo, Imortais é deslumbrante. Quem nos dera experienciar pessoalmente aquelas visões do Olimpo. O detalhado e assombroso trabalho de guarda-roupa, por fim, completa o raro vislumbre que o filme constitui e, por isso, merece todo o reconhecimento. Emanuel Levy diz que Tarsem Singh is a gifted, eccentric visual artist but he is certainly not a storyteller (Cf. http://www.emanuellevy.com/review/immortals/). Conclusão compreensível, se só tivermos visto este seu titânico filme.

Dos mesmos produtores de 300, o filme partilha várias características que aproximam ambos os filmes: a proeminência dos efeitos digitais na construção dos cenários e no acabamento da fotografia (contribuindo para uma maior similitude com os jogos de computador), a exploração da violência e da brutalidade como recurso estilístico, em sequências de acção plenas de sangue e testosterona, as impressionantes (e muitas vezes excelentes, inclusive) coreografias de lutas (onde o slow motion se impõe como um verdadeiro trunfo), a pouca profundidade e desenvoltura das personagens e a fraca articulação dos episódios, tendo como compensação um excesso de movimentos de câmara, a utilização abusiva dos efeitos sonoros (um pouco como nos filmes de terror, aos quais recorrem para prender desesperadamente o espectador) ou uma operática banda sonora (nada de novo, somente a cópia da cópia, da etc., do original). Henry Cavill e Freida Pinto, emanando sensualidade e erotismo, são, independentemente das suas qualidades como actores, criaturas por demais abençoadas pelos deuses, tão belos e perfeitinhos em cada uma das curvas dos seus corpos. Particularmente na cena do discurso para a multidão (lugar-comum incontornável, no qual Teseu (Cavill) incita os soldados para a guerra) é notável a inconsistência na construção da personagem: até ali jamais demonstrara possuir o dom da palavra e de, um momento para o outro, assume-se como um herói fluente. Somente Mickey Rourke, Stephen Dorff e Joseph Morgan (escusado será referir John Hurt) nos lembram, de tempos a tempos embora aprisionados nas limitações dos seus papéis, que existem actores nesta produção; sabem, daqueles que representam. Em ambos os filmes, o físico dos protagonistas é cuidado e determinante; todavia, com um look actual em demasia para um filme que, por mais fantástico que seja, almeja a viagem no tempo, de regresso a tempos idos. . Ecoam ainda as influências de megalomanias recentes, como Tróia, Alexandre, o Grande ou Confronto de Titãs, que Tarsem luta por superar em escala e grandeza. Para isso, nada como expandir exércitos e paisagens e edificar mais uns metros de muro.

Não partilhando de especial entusiasmo pelo 3D, há que salientar a notória evolução da tecnologia, cada vez mais funcional, alcançando o seu propósito original, muito embora a sua utilidade se resuma a isso: possibilitar que o espectador entre no mundo do filme, tela adentro.

No seu todo, eis uma embalagem por demais sugestiva e atractiva para o público jovem, que encontra nestes escapes lúdicos as mais memoráveis (ainda que por pouco tempo) experiências cinematográficas. Para o público que dispensa entretenimento espalhafatoso e que está mais habituado a obras sublimes – entre os quais também existem jovens, outros jovens - o filme tornar-se-á num bocejo tão encantador quanto entediante. A concretização de uma epopeia em filme, baseada na mitologia clássica, fica para outro dia. Quanto a Tarsem, esperemos que ganhe a credibilidade suficiente junto dos grandes estúdios (que sabemos ser fundamental, em Hollywood) para voltar às grandes obras de arte, daquelas verdadeiramente imortais; talento e visão não lhe faltam e isso já deixou mais do que comprovado. Não sei é se será para já. Que é como quem diz, com Mirror, Mirror… O trailer já circula por aí – e sejamos francos – não nos incentiva por aí além.


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Originalmente publicada na edição 28 da revista Take.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

ANTICRISTO (2009)

PONTUAÇÃO: EXCELENTE
★★★★
Título Original: Antichrist
Realização: Lars von Trier
Principais Actores: Willem Dafoe, Charlotte Gainsbourg

Crítica:

A RAPOSA, O CORVO E O VEADO


Nature is Satan's church.


O momento em que a mestria ascende à mais pura genialidade: um prólogo imaculado, a preto e branco, apresenta-nos Ele, Ela e Nic, o filho de ambos, condenado pelos misteriosos desígnios do sobrenatural. Ouve-se Lascia ch'io pianga, de Händel. A perfeição da fotografia e da arte de filmar sublima a tragédia, enquanto o slow motion nos enebria e arrepia. Que abertura lírica e transcendente - e, ao mesmo tempo, estranhamente apaziguadora e reconfortante. Espera-nos, contudo, o choque, o nojo e a provocação... Capítulos de Luto, Dor e Desespero e um profundo e repugnante mergulho na essência e nas origens do Mal, muito para além das fronteiras do terror psicológico. Magnífico trabalho de Lars von Trier.

I. Luto.
A morte do filho assume-se como algo absolutamente traumatizante. A queda fatal, enquanto fornicavam, assombra e consome-Lhes o pensamento, os sonhos e a existência. O sentimento de culpa existe e provém das raízes da alma. Especialmente a Ela que, após desmaiar no funeral da criança e acordar um mês depois numa cama de hospital, encontra uma assustadora e abominável depressão, cujas possibilidades de catarse são mínimas.

Ele é psiquiatra e decide, contra a ética, tratar o luto da mulher e do casal. What the mind can conceive and believe it can achieve. Primeiro, há que tentar tranquilizar-Lhe a tão intensa ansiedade: A main part of anxiety is physical: dizzy spells, dry mouth, distorted hearing, trembling, heavy breathing, fast pulse, nausea... (...) Do the breathing. Hold... Exhale. A sensibilidade na captação das imagens torna-se extrema e a câmera, bruxuleante. Intensificam-se a subtileza da montagem (Anders Refn, Åsa Mossberg), a virtuosa arte entre o focar e o desfocar e o esplendor sombrio e enigmático da fotografia (Anthony Dod Mantle). Depois, o processo terapêutico avança para o desbravar dos medos:

Ela: Do you love me?
Ele: Yes, I do.
Ela: Then help me.
Ele: It's what I'm doing. Exposure - that's the only thing that really works. Everything else is... just talk. You have to have the courage to stay in the situation that frightens you. And then you'll learn that fear isn't dangerous. Let's make a list of things you're afraid of. At the top, you put the situation you fear the most. (...) Maybe it would be easier for you to tell me where you're afraid? Where would you feel most exposed? What would be the worst place? An apartment? The street? A store? The park? Visiting someone, maybe. The woods. The woods?
Ela: The woods, yes.
Ele: It's funny because you were the one that always wanted to go to the woods. What scares you about the woods? What frightens you... there?
Ela: Everything.
Ele: Tell me what you think is supposed to happen in the woods. Eh? Is it any woods in particular?
Ela: Eden.

Fecham-se os olhos, cai-se em hipnose. Insinua-se um slow-motion cândido e tremendo. I'm at the bridge. It's evening. Almost no birds can be heard. The water is running without a sound. Darkness comes out anytime here. I walk into it. A atmosfera adensa-se. Um calafrio atravessa-nos a espinha. Lie down on the green - sugere-lhe o marido. - Lie down on the grass. (...) Lie down on the plants. (...) I want you... to melt into the green. Don't fight it. Just - turn - green.

No sono, Ela confunde-se com o arredor da cabana, a cabana do Éden onde passara o Verão com o filho, supostamente a preparar a Sua tese. Ela estudara a bruxaria e a misoginia que ao longo dos séculos irradicara da face da Terra milhares e milhares de mulheres, nomeadamente após a publicação do Malleus maleficarum.

Por mais que se tenha afastado da mulher e do filho, em tempos idos, Ele não consegue compreender o porquê de tanto medo em relação à Natureza daquele bosque negro... E isso instiga-o a continuar a expiação. Deslocam-se, pois, ao Éden.

II. Dor.
Reina o caos. Não prolifera mais o cosmos, no Jardim do Éden. Crescem o suspense, a agonia daquela mulher e os seus descontrolados impulsos sexuais. As mais improváveis situações começam a acontecer na hostilidade daquele meio. As bolotas, por exemplo, começam a cair sobre o telhado, que nem uma forte e amaldiçoada chuvada:

Oak trees grow to be hundreds of years old - conta-lhe Ela. - They only have to produce one single tree every hundred years in order to propagate. May sound benign to you, but it was a big thing for me to realize that when I was out here with Nic. The acorns fell on the roof then, too... kept falling, and falling, and dying, and dying. And I understood that... everything that used to be beautiful about Eden, was perhaps hideous. Now I could hear what I couldn't hear before. The cry of all the things that are to die.

Mais tarde, Ele encontra as fotografias do Verão passado, partilhado a sós entre mãe e filho, abre a carta da autópsia que Ela desconhece existir e... as dúvidas insurgem-se. O luto, a dor e o mistério envolvente intensificam a ruína do casamento e da relação dos dois.

III. Desespero.
Ele encontra, no sótão, o material de pesquisa da tese da mulher e apercebe-se do subtexto sobrenatural dos acontecimentos... da ligação histórica e profana entre Satanás e as mulheres... das manifestações sexuais... Começa a ter sonhos estranhos. Fala-Lhe, à mulher, desses devaneios oníricos, mas Ela apela-Lhe, ironicamente, à lucidez e ao cepticismo deontológico que nunca partilhou: dreams are of no interest to modern psychology. Freud is dead.


Ele: I am nature, all the things you call nature - tenta.
Ela: If human nature is evil, then that goes as well... for the nature of... Of the women? Female nature? The nature of all the sisters.

Ela tenta a fornicação, mas Ele resiste. Ela está possuída pelo Mal: foge da cabana, embrenha-se na neblina e na escuridão da floresta e, tendo as raízes de uma árvore antiga como altar, pressiona os genitais na mais compulsiva masturbação. Ele encontra-A e possui-A. A força do feminino reclama o Gynocide e os maquiavélicos planos de Satanás. O fotograma que a fantasia proporciona, no seguimento do acto sexual, não é senão um dos mais memoráveis e deslumbrantes de toda a obra. Viscerais e assombrosos desempenhos de Willem Dafoe e de Charlotte Gainsbourg, no abismo e fascínio do enredo.

Regressados à cabana, Ela encontra o resultado da autópsia. Nic falecera com uma deformação nos pés e Ele confronta-A com o facto. As fotografias que encontrara, nomeadamente, ostentavam os pés do miúdo com os sapatos trocados. Relembrando o prólogo, encontraremos na memória a imagem dos sapatos do menino, premeditadamente trocados. Face à Verdade, a mulher é tomada pela violência e desfere-a sobre o marido: uma violência atroz, sádica e masoquista, plena de uma essência narcísica, despudoradamente explícita, fria e cruel. Completamente possuída, a mulher jamais dará oportunidade ao remorso.

IV. Os Três Pedintes.


Ele: Did you want to kill me?
Ela: Not yet. The three beggars aren't here yet. (...) When the three beggars arrive, someone must die.

Terá sido provocada, a morte do pequeno Nic, por mera negligência? Ilumina-se o complexo argumento e as dúvidas dissipam-se. Um revelador flashback dá-nos a resposta; a nós e a Ela. Há muito que o Mal germinara no coração daquela mulher, afinal. Com a auto-mutilação, é desencadeado o insuportável e doloroso clímax. Os gritos pungentes servem o chamamento d'Os Três Pedintes. There is no such constellation, profere Ele, mas o cepticismo é tardio. Resolvem-se as simbologias e a morte chega, implacável.

Fique o Éden livre de todo o Mal. E, com ele, todas as almas para sempre perdidas.

Epílogo: preto e branco, Lascia ch'io pianga, fecho circular.

Anticristo é, por tudo isto, uma das mais inquietantes, perturbantes e destroçantes experiências cinematográficas deste virar de década. Uma absoluta obra-prima.

BARRY LYNDON (1975)


PONTUAÇÃO: MUITO BOM
Título Original: Barry Lyndon
Realização: Stanley Kubrick
Principais Actores: Ryan O'Neal, Marisa Berenson, Patrick MaGee, Diana Koerner, Hardy Kruger, Leon Vitali

Crítica:

ASCENÇÃO E QUEDA
DE UM IRLANDÊS FIDALGO

Fate had determined that he should leave none of his race behind him,
and that he should finish his life poor, lonely and childless.

Barry Lyndon é um verdadeiro e magistral compêndio artístico: de literatura, pintura e música. Herdou dos romances do século XIX o típico narrador omnisciente, irónico e manipulador, capaz de destruir o suspense da diegese pela antecipação deliberada de informação crucial. As personagens, remetidas para um segundo plano de análise e para um estado passivo, são-nos apresentadas lentamente, ao ritmo sereno e pausado do storytelling. Mais parecem figuras genialmente desenhadas e pintadas, enquadradas em paisagens e ambientes belíssimos, vivas em frescos barrocos (algures entre Velázquez e Vermeer, Fragonard e Ruysdael, Gainsborough ou La Tour). Every frame is a fresco of sadness*. Assim sendo, o carácter activo da história reside não na diegese em si, mas nos processos e mecanismos narrativos através dos quais ela é contada: seja pela narração como pelo movimento da câmera - o nosso próprio olhar. É por isso que a falta de profundidade na maioria das performances dos actores não nos soa a defeito. O protagonismo é partilhado pelas classes sociais em exposição, qual galeria de arte. A técnica de zooming, por exemplo, arrebata-nos, exaustivamente, com quadros absolutamente maravilhosos; tantos deles iluminados a luz natural, graças às inovadoras lentes, especialmente concebidas para o efeito. Enalteça-se, a propósito, o prodigioso talento e a preciosa sensibilidade visual de John Alcott. A cuidada direcção artística e o notável trabalho de figurinos possibilitam-nos e garentem-nos, igualmente, uma autêntica e assaz verossímil viagem no tempo. A banda sonora, de extraordinárias assinaturas, intensifica-nos, por fim, a experiência: Bach, Mozart, Schubert, Vivaldi ou Handel.

Quanto à narrativa em si, o filme organiza-se em duas partes:

I. By What Means Redmond Barry Acquired the Style and Title of Barry Lyndon.
De irlandês burguês a jogador erótico, de orgulhoso e ciumento em fuga a caricato soldado, de mentiroso impostor a mulherengo preguiçoso, ou de falso parceiro da batota a aristocrata casado com a fortuna alheia, Redmond Barry não é senão um errante impulsivo e sem escrúpulos, que vagueia pela vida ao sabor da sorte e do desejo individual, mas sempre motivado pelo instinto trepador.

II. Containing an Account of the Misfortunes and Disasters Which Befell Barry Lyndon.
Abate-se sobre Barry a tragédia ou a justiça divina. Será confrontado com as suas origens. Das aparências, da vida luxuosa, fútil e fastidiosa e do ser libertino ao ser solitário, pobre e sem descendência será uma queda vertiginosa, cruel e sem salvação.

Acima de tudo, o clássico de Kubrick é um excelente, metódico e elegante exercício de forma, uma espécie de relato histórico ou crónica de pormenor microscópico, acerca dos costumes pastoris, militares e aristocráticos do quotidiano setecentista europeu. Ao mesmo tempo que trata essa época e vários lugares em concreto, a história de Barry Lyndon condensa em si todos os elementos das míticas tragédias gregas, nunca se aprisionando à realidade histórica invocada e declarando-se, pois, não só universal como intemporal. Também por isso esta magnífica obra não envelhece.

Um dos melhores filmes históricos de que há memória, do tão versátil quão visionário Stanley Kubrick.


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* Andrew Sarris, The Village Voice, 1976.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

O PIANISTA (2002)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
★★★★
Título Original: The Pianist
Realização: Roman Polanski

Principais Actores: Adrien Brody, Thomas Kretchmann, Frank Finlay, Maureen Lipman, Emilia Fox, Ed Stoppard, Julia Rayner

Crítica:

If you prick us, do we not bleed?
If you tickle us, do we not laugh?

UMA HISTÓRIA DE SOBREVIVÊNCIA



If you poison us, do we not die?
And if you wrong us, shall we not revenge?

As frases com que me inicio são de Shakespeare, The Merchant of Venice (acto III, cena I). Sabe, quem conhece a comédia, que a eloquente passagem se refere às angústias do agiota judeu, a propósito da discriminação que sobre o seu povo recai, há séculos, injusta e desumanamente:

I am a Jew. Hath not a Jew eyes? Hath not a Jew hands, organs, dimensions, senses, affections, passions; fed with the same food, hurt with the same weapons, subject to the same diseases, healed by the same means, warmed and cooled by the same winter and summer as a Christian is?

Quem diria que o anti-semitismo viria ainda a contribuir para um dos mais negros capítulos da História da Humanidade.

As frases com que me iniciei são proferidas por Henryk (Ed Stoppard), num momento que antecede a dolorosa separação da família, quando Wladyslaw Szpilman (Adrien Brody) o interroga sobre o que está a ler. Estamos no ano de 1942. Terminada a declamação, Wladyslaw remata: very appropriate. Estão rodeados por uma multidão de judeus: sedentos, famintos, pálidos, de pele e osso, sujos, doentes e em tremendo estado de choque. Recentemente retirados dos ghettos que os humilharam e desumanizaram por completo, são agora supervisionados pelos soldados da Gestapo: anseiam por paz, mas espera-os o horror dos campos de concentração.

Wladyslaw Szpilman era, até meados de 1939, um reputado pianista. Tocava para a Rádio de Varsóvia e o seu talento era unanimamente reconhecido. You musicians don't make good conspirators. You're too... too musical. Mas as imposições nazis, que a partir de então se fizeram sentir, anularam por completo qualquer reputação, qualquer integridade. Os judeus foram proibidos de entrar em restaurantes, de frequentar os parques, de andar nos passeios... Foram obrigados a ostentar a Estrela de David no braço, foram caluniados, esbofeteados, espancados, roubados, escravizados... o cerco apertou-se até serem reduzidos à mais miserável condição, à mais miserável existência. Em Outubro de 1940, tiveram que abandonar as suas casas e partilhar as divisões do distrito judeu com centenas e centenas de famílias condenadas. Venderam todos os seus bens, esconderam cada nota e, ainda assim, alimentaram-se do ar, tal era a escassez de alimento.

I blame the Americans. (...) American Jews, and there's lots of them, what have they done for us? What do they think they're doing? People here are dying, haven't got a bite to eat. The Jewish bankers over there should be persuading America to declare war on Germany!

... diz o pai do pianista.

Os judeus, impotentes, limitaram-se à extrema situação. A revolta, por mais organizada que fosse, revelar-se-ia sempre ineficaz. A única eficácia talvez fosse apenas a morte com dignidade.

Germans never go into Jewish toilets. They're too clean for them.
Majorek

Roman Polanski, que também em criança testemunhou - na pele e na alma - os horrores do holocausto e das perseguições nazis na Polónia, filma este impressionante drama com uma frieza implacável, com uma tenacidade e com uma mestria incríveis. Há cenas verdadeiramente chocantes, tocantes e derradeiramente excepcionais: a morte do menino pelo buraco do muro, a dança do gozo e humilhação, o comer directamente do chão, o homicídio do paralítico a partir do terceiro andar, a partilha de um só caramelo de 20 zlotes entre todos, as sádicas chacinas em fila, etc. O filme vive muito dos planos estáticos e do poder da encenação, vive do poder destroçante das imagens. A mise en scène é cuidada e minuciosa, perfeitamente iluminada e fotografada (Pawel Edelman). Os valores artísticos por detrás da reconstituição histórica são elevadíssimos (Allan Starski, Nenad Pecur, Wieslawa Chojkowska e Gabriele Wolff). O notável guarda-roupa é da consagrada Anna Sheppard (estilista responsável, entre outros grandes trabalhos, pelo figurino do extraordinário parente A Lista de Schindler). O filme vive também dos silêncios ou das erudição das peças musicais: Beethoven, Bach, entre outros, mas sobretudo Chopin. A banda sonora original é de Wojciech Kilar. Aquele clarinete a solo é tão solitário e desolador quanto a aterradora experiência de Szpilman. A obra vive ainda e sobretudo dos desempenhos dos actores, em especial da assombrosa e transfiguradora performance de Adrien Brody.

Quando o conhecido e influente Yitzchak impede que Szpilman parta com a família no comboio, inicia-se um percurso a sós; que se revelará, porventura, as etapa mais difícil e agoniante de todas. Primeiramente, Szpilman ainda se sujeita ao trabalho na construção civil, sob as ríspidas e repressivas ordens dos soldados alemães.

Know why we beat you? Know why we beat you?
(...) To celebrate New Year's Eve!

... exclama um dos monstros, alcoolizado.

Mas a esperança de escapar nunca se esvaiu, nos momentos de maior lucidez. I want to get out of here, afirma um dia ao colega Majorek, que reencontra na empreitada. It's easy to get out - responde-lhe o recluso - it's how you survive on the other side that's hard. Num outro dia, por sorte, proporciona-se a fuga. Valem-lhe amigos antigos que, ainda que polacos e ameaçados pela propaganda de Hitler, se recusam a ignorá-lo, sem o ajudar. Dão-lhe tecto, alguma comida, algumas condições... esconderijos mais ou menos seguros onde deverá aguardar, no mais profundo isolamento, pelo fim do conflito. Tendo um piano em frente e sem poder tocá-lo, com medo de ser denunciado, imagina a concretização máxima da partitura, imagina Chopin, inspiradamente interpretado. Falta-lhe a música, falta-lhe o alento, falta-lhe a família, falta-lhe praticamente tudo. Passa tanto tempo sem falar que quando as explosões se fazem ouvir nos arredores, cada vez mais perto, apenas consegue balbuciar, assolado pelo pânico.

1944. Quando os tanques lhe invadem a rua, foge uma vez mais, ensurdecido pelas explosões. Aquele plano sobre a avenida em ruínas, depois do muro, é tão... silenciadora... Até ao final da obra, sucedem-se as elipses e os episódios. Szpilman não parece mais o mesmo: em trapos que nem um mendigo, cresceram-lhe o cabelo, a barba e o sentimento de perda. Encontra uma lata de conserva, mas não tem força nem física nem psíquica para pensar numa forma de abri-la. Inesperadamente, vê-se frente a frente com um Capitão do exército alemão (Thomas Krestschmann, portentoso no underacting). O momento é, verdadeiramente, de cortar a respiração.

Play.

Szpilman ainda hesita ao pedido, mas não resiste à possibilidade de finalmente voltar a tocar piano. E o piano ali está ao lado, no meio da sala abandonada, iluminado por um frio feixe de luz. O militar apoia-se no piano e observa-o. E Szpilman toca. Toca com toda a alma e coração, na concretização plena de um momento catártico. Condoídos pelos terríveis acontecimentos que o pianista viveu, e que tão sofregamente presenciámos, somos incapazes de interromper aquela música profundamente sentida... Não há espaço para maniqueísmos - o alemão ajuda-o: dá-lhe comida, um casaco, um abre-latas. Dá-lhe uma última e derradeira esperança. Talvez sobreviva a tempo da chegada dos russos, talvez sobreviva a tempo da libertação. Talvez sobreviva, afinal, para contar a história. Enfim, cenas memoráveis, no culminar de um clássico absoluto e obrigatório.

Grande, grande pedaço de cinema.


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CINEROAD ©2020 de Roberto Simões