sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

EXODUS - DEUSES E REIS (2014)

PONTUAÇÃO: RAZOÁVEL
★★★ 
Título Original: Exodus - Gods and Kings
Realização: Ridley Scott
Principais Actores: Christian Bale, Joel Edgerton, John Turturro, Ben Kingsley, Aaron Paul, María Valverde, Sigourney Weaver, Golshifteh Farahani, Isaac Andrews, Dar Salim, Ben Mendelsohn, Ghassan Massoud, Indira Varma, Ewen Bremner, Andrew Tarbet

Crítica:

ATÉ QUE O MAR OS SEPARE 

 Follow me and you will be free.

Nada há de errado em rivalizar com Cecil B. DeMille. A derrota está, à partida, assegurada. A superação talvez. O tempo e as circunstâncias fizeram de DeMille um rei do género mas, sejamos francos, não um deus. E, afinal, Ridley Scott é o mestre por detrás de Gladiador ou Reino dos Céus. Tudo seria possível. Sabemos que a versão final de Exodus, antes do corte que definiu a versão de 150 minutos estreada nos cinemas, tinha aproximadamente 240 minutos. Lembra o caso insólito de Reino dos Céus, estreado com 144 minutos, a que se seguiu a versão do realizador com 190 minutos - e a diferença entre um filme e outro foi abismal. A edição de Exodus em blu-ray adianta 15 minutos de cenas eliminadas, que claramente não melhorariam muito o resultado final. Scott falou na eventualidade de uma versão estendida do filme, mas, até à data, não viu a luz do dia. Se essa nova montagem somaria ou não cenas fundamentais, capazes de regenerar e fortalecer a narrativa, fica por descobrir. Para já, em termos de duração, Exodus perde para os 220 minutos d'Os Dez Mandamentos - o que nada diz, obviamente, a respeito da qualidade da obra.

Todavia, perderá em todo o terreno. O problema é que Exodus - tal como nos chegou, na sua versão de 150 minutos - é um filme de falhas e excessos, o que resulta num desequilíbrio tremendo e tudo menos favorável. Se, por um lado, nada há a apontar à sofisticação técnica da produção - design de produção de Arthur Max e guarda-roupa de Janty Yates (parceiros habituais de Scott e dos melhores da indústria nos seus respectivos departamentos), assombrosa fotografia de Dariusz Wolski (outro que tal) e impressionantes efeitos digitais - temos depois um argumento que sabemos retalhado pela montagem e uma realização desinspirada, que cai no erro - crasso - de repetir fórmulas facilmente detectáveis e já usadas nos épicos anteriores. Soa a mais do mesmo. Sabem a parte em que Ramsés chega à cama do filho, que tão pacificamente dorme, e lhe diz: you sleep well because you know that you're loved. Pois bem, em Gladiador há uma mesmíssima cena em que Commodus (Joaquin Phoenix) chega à cama do filho e lhe diz: he sleeps so well because he is loved. Estão a perceber onde quero chegar? Já Robin Hood sofria do mesmo mal. Não queremos ver o mesmo filme várias vezes, mudando apenas o tempo e o espaço histórico. Nós queremos ver filmes diferente, singulares; o que me leva a pensar no que terá levado Scott a concretizar este filme. Sabemos da sua predilecção por fazer um filme de determinado tipo para provar a si próprio que consegue, para fazer a sua versão. Será isso? Queria fazer a sua versão d'Os Dez Mandamentos? Insisto: rivalizar com DeMille? O que é que Exodus tem para contar que já não saibamos, que já não tenhamos visto? Qual é a sua proposta artística? Em 1998, a Dreamworks produziu aquela que para mim é, à data, a melhor versão da história de Moisés: O Príncipe do Egipto e Scott nem dessa chegou aos calcanhares. E já não vou falar de imprecisões históricas como hebreus a construir pirâmides (quando estas foram edificadas muito antes), mortes por enforcamento em tempos de crucificação ou incêndios tão explosivos como que provocados por pólvora. Aí estou de acordo com Scott, ele não faz documentários e se fôssemos por esse critério rejeitaríamos e desprezaríamos uma significativa parte da História do cinema.

Ao encetar o argumento, o filme foge à entrega do bebé às águas do Nilo. No seu lugar, aposta numa épica batalha, visualmente apoteótica, mas sem qualquer carga emocional, uma vez que a história ainda não nos forneceu background suficiente para percebermos as motivações do confronto e das personagens, para além do facto de a batalha, claramente, não ter grandes consequências narrativas. Percebemos qualquer coisa da relação daqueles dois irmãos, mas nada que não venhamos a constatar depois. A batalha é um pretexto para exibir recursos e para dizer que se trata de um épico com uma batalha, não fossem dizer que nem uma batalha tinha. O mais grave é que o que se segue depois não confere tridimensionalidade às personagens. Os eventos sucedem-se e não nos envolvemos com elas, não torcemos por elas, e desligamo-nos do que estamos a assistir - por mais bonito que seja e por mais potencial que tenha. Sobram planos aéreos e, na maioria deles, a cidade parece tão imensa que nos custa a crer que fosse assim naquele tempo. E, de repente, Scott alheia-se da história e foca-se no romance - mais uma vez, porque parece que era necessário que o filme tivesse um pedaço de romance -, perdendo orientação e, sobretudo, economia narrativa. No elenco, nenhum actor brilha. Nem Bale, nem Edgerton, nem Kingsley... os restantes desfilam-se, marcam presença e às vezes quase não se nota que lá estão. Sabemo-los grandes actores, mas a culpa não é claramente deles. A ideia de representar Deus como uma criança, admito, não desgostei. A interpretação de Isaac Andrews chega a ser das melhores do filme.

Exodus ganha interesse quando já é demasiado tarde. Vêm os vorazes crocodilos e tornam o Nilo num rio de sangue e a água impotável, morrem os peixes que atraem os insectos e estes as rãs, apodrecem as colheitas e o ar, fétido, fica irrespirável. Propagam-se as doenças, instala-se o caos e amotinam-se, nas ruas, os mortos. A sequência das pragas é francamente boa e impressiona. Os efeitos jamais comprometem. A última meia hora então, desde que o povo abandona o Egipto até às margens do Mar Vermelho, está finalmente ao nível expectado. Aqui todos os elementos do filme colidem e se transcendem num pedaço de arte superior. A banda sonora, que por vezes pareceu visitar lugares comuns, sublima agora a proeza dos efeitos digitais, aliando-se à fotografia para pintar autênticos quadros em movimento. Diria que o final de Exodus consta entre as sequências mais audazes e visualmente estimulantes da carreira de Scott. Pena que o filme não a acompanhe.

Fica mais um retrato da salvação dos hebreus. Se o filme tem ou não salvação não sabemos, temo que não - mas já fui surpreendido. Se tiver e caso Scott procure redenção, é esperarmos pela versão alongada. O realizador acaba por dedicar o filme ao irmão falecido e percebe-se que homenageou a relação entre irmãos ao longo de todo filme. Pena que não num filme melhor e mais digno.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

O RENASCIDO (2015)

PONTUAÇÃO: EXCELENTE
★★★★★ 
Título Original: The Revenant
Realização: Alejandro Gonzalez Iñárritu
Principais Actores: Leonardo DiCaprio, Tom Hardy, Domhnall Gleeson, Will Poulter, Forrest Goodluck, Arthur RedCloud, Duane Howard, Melaw Nakehk'o, Grace Dove, Paul Anderson, Kristoffer Joner, Joshua Burge, Fabrice Adde, Christopher Rosamond, Robert Moloney, Lukas Haas

Crítica:

A ÉPICA SOBREVIVÊNCIA
OU A VINGANÇA DE UM ESPÍRITO SELVAGEM


 Nous sommes tous sauvages.

Por mais filmes e anos que passem, o cinema procurará sempre identificar-se com o espectador e fazê-lo sentir emoções, despertando pensamentos e possibilitando experiências. Esta é a sua verdadeira essência e a da arte e do cinema enquanto expressão artística. A partilha faz-se entre o artista e o receptor por meio do objecto artístico, fílmico neste caso. E se falamos de arte e do seu entendimento, compreenderemos toda uma dimensão sensorial - invisível, impalpável - que é alimento do espírito, que o estremece e o mantém vivo; o que não raras vezes esquecemos na nossa existência mundana. A discussão do que é ou não arte jamais estancaria, no entanto parece-me peremptório defini-la como tal: algo que alimenta o espírito. Como identificar, então, que estamos perante um objecto artístico? Quando a respiração de um personagem se confunde com a cadência da acção, percebemos que um filme está impregnado de alma. Quando as imagens que vemos, representadas, nos fazem contrair os músculos e sentir, tão fisicamente, a sua angústia e dor, sabemo-lo brutal. Quando a sua música transborda, nos penetra por todos os poros da pele e nos ressoa no íntimo, dizemo-lo visceral. E quando a beleza da natureza captada nos diminui e nos reposiciona perante a pureza original, realmente importante, rendemo-nos à transcendência. No seu diálogo com o espectador, O Renascido revela-se um filme impregnado de alma, absolutamente brutal, visceral e transcendente. Um imersivo e poético pedaço de arte, que tão profundamente nos devasta como excelsamente nos purifica. Em primeira ou última instância, a verdade de cada um não nunca será a verdade de todos e a experiência de assistir a um filme será sempre algo inevitavelmente pessoal e subjectivo. Não obstante, considero uma loucura e um absurdo ignorar um filme como este. Cessarei a avaliação emocional, mais abstracta e passional - mas nunca menos importante - e dissertarei abaixo sobre a interpretação, as influências e os tantos méritos do filme.

Confluem, claramente, as influências, assumidas, de Malick e Tarkovsky. De Malick a contemplação e a divinização da natureza, por meio da assombrosa e genial fotografia de Emmanuel Lubezki, comum em Malick e a Iñárritu. Notem-se as reminiscências d'O Novo Mundo ou d'A Árvore da Vida, a título de exemplo, no esplendor dos elementos naturais captados, sempre a luz natural, na singularidade dos enquadramentos. Lá está o sol malickiano, raiado no seu affair com a câmera, as árvores e as folhas e as nuvens e o céu. A natureza comunica também pela sinfonia de sons: o vento que sopra, a água que escorre, o fogo que arde e as fagulhas que ascendem na noite, os animais que cantam no seu coro diversificado. Está lá o voiceover sussurrante, a dimensão interior e onírica e a imagética surrealista, que Malick tão bem explorou numa linguagem própria e, pelos vistos, canónica. Assim flui uma meditação sobre o Bem e o Mal, a extracção dos recursos e o carácter, sempre soberano, da criação. Contudo, enquanto em Malick a natureza é digna de adoração e redenção, sinónimo de pureza e júbilo, em O Renascido é digna de respeito e reverência, pois tem o poder de criar mas simultaneamente o poder de destruir. A água pode dar de beber e murmurar de encontro à vida, como no plano de abertura, como pode ferir e ferozmente gritar, como a dada cena em que Hugh Glass se vê levado pelas quedas-de-água, fustigado pela força da corrente, podendo ou não levá-lo à morte. Em Iñárritu, portanto, a natureza é tanto uma dádiva abençoada como um obstáculo severo, uma entidade que tanto dá como tira, num permanente duelo de forças antagónicas que decidirão a sobrevivência do protagonista. Iñárritu serve-se do lirismo de Malick e mergulha-o na crueza do realismo, um realismo obsessivo e assumido por uma câmera, qual deus, omnipresente e omnipotente. Há planos demorados, sem cortes, em que somos completamente transportados para o cerne da acção ou para o coração das trevas. A respiração embacia as lentes, que também se molham de água ou salpicam de sangue. E há tomadas de 360º, então, que nos tiram o fôlego e que nos alheiam totalmente da experiência de assistir ao filme. Não há tela ou ecrã, personagens e espectadores partilham o mesmo espaço, tal é o nível de imersão. Nós estamos lá, naquele ambiente inóspito, gelado e rigoroso, regidos por instintos primitivos de predador e presa - ou comemos ou somos comidos. Nesse aspecto, John Fitzgerald (brilhante interpretação de Tom Hardy) tinha toda a razão: se, perdidos na natureza, estivermos esfomeados e virmos um esquilo, encontrámos deus, encontrámos a religião - ele será a nossa salvação.

Também o eco de Tarkovsky se esbate e perpetua n'O Renascido, em alguma da sua imagética simbólica e mística e em alguns dos seus planos. São declarados piscares-de-olhos: o pássaro que se solta das vestes e peito da indígena mulher de Glass, em sinal de libertação e ascensão do espírito, como os pássaros que voam da imagem da Nossa Senhora em Nostalgia. A velha índia de farnel ao colo entre os destroços da tribo como o velho de galo ao colo entre as ruínas da guerra de A Infância de Ivan. A igreja a céu aberto e os frescos como os de Andrei Rubliov ou a levitação da mulher como em O Espelho. São puras homenagens e dedicatórias, de mestre para mestre - até para imitar é preciso arte - a arte é imitação - e quem imita melhor é artista maior. A imitação e a superação são a grande e inevitável angústia da influência, já o dizia Harold Bloom, na obra com o mesmo nome. Só quem as ousa poderá elevar-se, procurando encontrar, no caminho, um lugar próprio e único.

Inárritu não estagna. De Babel a Birdman e agora a'O Renascido, a sua obra reinventa-se, aprimora-se, arrisca e flui por novos afluentes, novas direcções. Agora chega ao western, reformulando-o. Quase nos esquecemos que é um western, na verdade, pela abordagem, mas é: pela época, pelo espaço, pelo contexto - aqui temos, uma vez mais, o homem branco versus índios, na desmedida sede de fortuna. Dá-se o confronto entre a pólvora e as flechas, entre duas formas tão diferentes ver o mundo e de se relacionar com ele. Quem são os maus? Os tropas que dizimam aldeias inteiras, a mando de superiores políticos? Os caçadores de peles que disparam contra os cavalgantes peles-vermelhas em defesa das suas cargas e vidas? Os índios Pawnee que vêem as suas terras invadidas, a sua fauna assolada? Os índios Arikara, prontos a arrancar um escalpe, a quem familiares foram mortos e sequestrados? Os franceses, que mantêm a cativa a nativa Powaqa, para seu bel-proveito? A ursa (esse incrível e monstruoso feito digital, pleno de realismo), que, protegendo as suas crias, tão violentamente ataca Glass, desferindo-lhe golpe atrás de golpe, ferida atrás de ferida, rasgando-lhe a carne, quebrando-lhe o osso e sangrando-lhe a alma? Fitzgerald, esse canalha amoral e desprezível, racista e ignorante, capaz de matar ou enterrar alguém vivo em nome do dinheiro e para salvar a sua pele antes que o inverno o martirize? Glass, quase morto, que empreende uma épica luta pela sobrevivência em nome da vingança do filho assassinado? Se todos eles forem os maus, quem são os bons? A aposta falhará claramente se se avançar com inclinações maniqueístas. Todas as personagens, individuais ou colectivas, têm as suas motivações e, perante as duras circunstâncias, todas são humanas - com toda a ambiguidade que isso significa. Todas, de alguma forma, sobrevivem umas às outras e todas sobrevivem às extremas condições da paisagem. Daí a importância da respiração neste filme. As long as you can still grab a breath, you fight. E enquanto cada um lutar, viverá. You breathe... keep breathing. Acredito seriamente que Glass teria morrido se não lhe tivessem morto o filho. A vingança será a faísca que lhe reacenderá a vida, alimentando-lhe o espírito e conferindo-lhe uma força inesperada. Quando Glass se recolhe nu e na posição fetal no ventre do cavalo, procurando abrigo, e de lá desperta, percebemos o símbolo. Glass renasceu do impossível para, enfrentando todas as contrariedades, fazer o possível. Pela memória do filho. Isto é profundamente comovedor... O seu caminho é uma viagem espiritual, acompanhando-o a natureza enquanto entidade transfiguradora. Mas também de aprendizagem e sabedoria - e aí a personagem de Hikuc (Arthur RedCloud), nativo xamã que às tantas encontra entre a carcaça de um bisonte, tem um papel determinante. Também ele um solitário a quem a família foi assassinada, é ele que às tantas profere a frase do filme: a vingança está nas mãos do criador. O grande ensinamento ecoará no final da obra, quando Glass se vir a braços, machado e faca com o grande vilão - a cena será, toda ela, de uma encenação implacável -, manchando de vermelho e ódio a brancura da neve pura, numa sangrenta porradaria que lhe exige o ritual selvagem, necessário para a catarse.

Vamos falar de Leonardo DiCaprio? Poucos actores terão o privilégio de construir uma carreira assente em personagens tão marcantes, filme após filme, como DiCaprio, é certo. Não vale a pena destacar papéis, todos são dignos de nota e todos são um sucesso, absolutamente extraordinários, assim como os filmes e os realizadores que os permitiram, desde Gangues de Nova Iorque. Um bom e influente agente? Indiscutivelmente. Mas sejamos francos: que talento, que carisma. Em O Renascido, DiCaprio tem o seu papel com menos falas, mas com a sua interpretação mais física, mais intensa e mais profunda. Nos seus olhos e expressões espelha-se um sofrimento inimaginável - e esse sofrimento, por mais imersos que estejamos no filme e nunca por desmérito do actor, é impossível de o sentirmos na sua plenitude; a não ser, acredito, que já tenhamos passado por uma situação equiparável.

Iñárritu sabe como potenciar uma obra-prima. Sabe que o todo é a soma das partes e que, se todas as partes brilharem, o todo será mais reluzente. A equipa de produção dividiu-se entre o Canadá e a Argentina, ao sabor das condições atmosféricas, nem sempre favoráveis. Os técnicos e artistas passaram por dificuldades que jamais sentiriam na comodidade de um estúdio ou em frente a um computador, desenvolvendo paisagens e horizontes artificiais a perder de vista. Ganhou-se em verdade, e essa verdade respira-se a cada frame. Hollywood também caminha na verdade. Do design de produção de Jack Fisk à restante direcção artística, do guarda-roupa de Jacqueline West à excelente caracterização, todos se superam ao mais alto nível. As desoladoras, arrepiantes e fantasmagóricas composições musicais de Carsten Nicolai e Ryuichi Sakamoto, que tão bem acompanham a demanda de Glass, emocionam-nos no flagelo, assim como uma calorosa fogueira numa noite de inverno. O elenco tem, deste modo, todo a dedicação e primor envolventes para sublimar o projecto, entregando-se a prestações ímpares: ainda Domhnall Gleeson, Will Poulter e Duane Howard. Somando as partes, Iñárritu supera-se em inspiração, maravilhando-nos, arrebatando-nos. Se o mundo alguma vez acabar assim que terminar de assistir a'O Renascido, morrerei pleno. É por filmes como este que o cinema vale a pena. Trata-se, seguramente, de uma das mais incontornáveis obras-primas deste início de século.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

ZODIAC (2007)

PONTUAÇÃO: BOM 
★★★ 
Título Original: Zodiac
Realização: David Fincher
Principais Actores: Jake Gyllenhaal, Mark Ruffalo, Anthony Edwards, Robert Downey Jr., Brian Cox, John Carroll Lynch, Chloë Sevigny, Ed Setrakian, John Terry, Elias Koteas, Dermot Mulroney, Donal Logue, Philip Baker Hall

Versão do Realizador

Crítica:

ENTRE AS PISTAS DE UM MONSTRO

I need to know who he is. I... I need to stand there,
I need to look him in the eye and I need to know that it's him.

Zodiac não é seguramente um filme esquecível para todos os que o tenham assistido até ao final. Como em Se7en - Sete Pecados Mortais, crimes em série desencadeiam uma aguerrida investigação policial na tentativa de descobrir a identidade do assassino, o seu paradeiro e depois, em nome da justiça, o seu desfecho. Todavia, à imagem e semelhança de David Fincher, Zodiac chega-nos como um retrato obsessivamente realista e perfeccionista - meticuloso e detalhista - de uma história real. Assim sendo, dado que na altura do lançamento do filme o mediático e enigmático caso continuava por resolver, Zodiac jamais nos apresentará senão uma trama inconclusiva ou inconcluída. Não nos depararemos com o mau morto ou atrás das grades, antes nos depararemos com uma investigação igualmente obsessiva e, apesar disso, completamente gorada e frustrada perante os resultados (in)alcançados.

Por opção do argumentista (James Vanderbilt), só nos são mostrados os crimes que se conseguiram praticamente provados como tendo sido praticados pelo mesmo homem e os quais deixaram sobreviventes ou testemunhas. A perspectiva que nos é dada a conhecer é mesmo essa, a das testemunhas. Califórnia, finais dos anos 60, princípios dos anos 70. Dois casos de jovens casais, atacados ora aos tiros no negrume da noite ora à facada em plena luz do dia. Um caso insólito de uma falsa e intimidante ajuda a um pneu, na estrada. E um golpe fatal num táxi, em plena cidade. Zodiac, como se subscrevia, enviava depois cartas à polícia e aos jornais, assumindo os crimes praticados, assumindo outros tantos provavelmente não praticados e brincando e baralhando os investigadores com criptogramas e ameaças, lançando a confusão por puro prazer. O filme é sobre os bastidores da investigação, nas redacções dos jornais ou nas esquadras locais - e é claramente sobre o percurso da investigação, não sobre a sua resolução: um empolgante embora tortuoso caminho de estudo, entrevistas, dúvidas e muitas horas sem dormir. As provas - difíceis de reunir entre tantos falsos depoimentos e contradições - deverão apontar o suspeito e não o contrário, por mais favoritismo que determinado indivíduo ou teoria mereça.

Com o passar do tempo, sejam meses ou anos, Zodiac silencia-se e, do lado de quem investiga, vence o cansaço e impõe-se o desânimo. O jornalista Paul Avery (brilhante Robert Downey Jr., embora num curto papel) deixa-se consumir pelo álcool e demite-se do San Francisco Chronicle, abandonando o caso e, de certo modo, a vida. O inspector William Armstrong (Anthony Edwards), visivelmente saturado, confessa abandonar o caso e mudar de departamento. Até o inspector David Toschi (Mark Ruffalo), apesar da viciante dedicação de outros tempos, acaba, às tantas, por arquivar o caso na sua cabeça e rumar em frente na sua vida profissional. Só o cartoonista do San Francisco Chronicle, Robert Graysmith, tomado por um fascínio quase infantil e caricato e desde o início do caso entretido a quebrar as cifras do assassino, mantém viva a esperança e o desejo - e sobretudo a curiosidade - em reunir as peças e em montar o puzzle, eliminando as falsas pistas e descodificando, finalmente, a identidade do monstro. David Fincher transforma essa curiosidade de Graysmith na curiosidade do espectador e é ela que suporta 162 minutos de um denso e intrincado quebra-cabeças. E fá-lo magistralmente, impecável e implacavelmente, ou não fosse Fincher o mestre dos quebra-cabeças, autor do dito Se7en, de O Jogo ou de Clube de Combate.

Desde o momento em que a obra abre que nos apercebemos da importância do visual para o storytelling. Os efeitos especiais são discretos mas cruciais para a recriação da cidade e da época. Aliados à fotografia de Harris Savides e à sua inconfundível paleta de cores, ajudam na criação do imaginário e a impôr Zodiac como um filme predominantemente atmosférico, tocando não raras vezes o noir. Aquele take inicial em que o carro passeia pelo bairro sobre carris, apresentando o bairro em plena noite do 4 de Julho é absolutamente memorável: somos lentamente introduzidos à história, ao palco em que os acontecimentos terão lugar e ao seu contexto histórico-social. E há um time lapse notável, com a edificação da Transamerica Pyramid, marcando a passagem do tempo. Não sendo um filme onde a acção pujante nos faça saltar e vibrar a todo o instante, Zodiac faz-se valer de uma construção do suspense em tudo admirável e irrepreensível, onde cada investida do psicopata (na primeira parte do filme) nos aprisiona e nos deixa numa tensão silenciosa mas crescente. Nos actos seguintes, já sem a acção do assassino, o suspense continua e o filme torna-se, curiosamente, tanto ou mais perturbante e... asfixiante, sobretudo em sequências como a entrevista ao suspeito Arthur Leigh Allen no seu local de trabalho, a rusga ao seu abrigo entregue aos esquilos, a visita de Graysmith à cave do projeccionista ou, simplesmente, a cada telefonema ofegante e tenebroso.

Enquanto filme, Zodiac é uma assombrosa reprodução, datando e localizando constantemente a acção, e, nessa medida, quase um documentário, sobriamente bem filmado. Enquanto filme, também e no entanto, não abre espaço para um maior trabalho de actores e talvez beneficiasse com uma dedada de economia narrativa, que lhe encurtasse o tempo e não o demorasse tanto nos confusos meandros da investigação. Não é, por isso e certamente, um filme para todos nem um filme para todos os dias, mas não tinha que sê-lo. A sua ambição fá-lo um projecto arriscado, complexo e inteiramente singular. Assisti-lo até ao fim resultará numa experiência por demais compensatória - trata-se de um must see obrigatório no género.

sábado, 18 de fevereiro de 2017

NOÉ (2014)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM 
★★★★ 
Título Original: Noah
Realização: Darren Aronofsky
Principais Actores: Russell Crowe, Jennifer Connelly, Douglas Booth, Logan Lerman, Emma Watson, Anthony Hopkins, Ray Winstone, Frank Langella, Nick Nolte, Leo McHugh Carroll, Mark Margolis, Kevin Durand, Marton Csokas

Crítica:

O GRANDE DILÚVIO

The waters of the heavens will meet the waters of the earth.
(...) We build an ark.

Está na hora de ser justo para com Noé, arrojada e visionária criação de Darren Aronofsky. É tempo de rever, reavaliar e, certamente, reconsiderar. Sejamos objectivos: Noé não é um filme bíblico, é um filme fantástico, por mais que a Bíblia possa ou não ser uma fantasia. O episódio das antigas escrituras é a fonte de inspiração - e é só. Noé desenvolve uma mitologia e imaginário próprios e bastante singulares. Ao arrumarmos Noé na prateleira e se o género for o critério, jamais se fará acompanhar d'Os Dez Mandamentos de Cecil B. DeMille. Noé estará ao lado d'O Senhor dos Anéis, de Peter Jackson. E ter consciência deste facto é preponderante para que possamos assistir ao filme livres de um preconceito capaz de nos turvar a visão e de nos afundar por completo o prazer de experienciá-lo e o poder de, devidamente, apreciá-lo. Foi um erro crasso e tremendo, assisti-lo em permanente comparação com a história conhecida e procurando as eventuais correspondências com o texto original. Ocupei-me, portanto, com uma discussão desnecessária (que jamais me permitiu desfrutar do filme em si) e, sobretudo, perfeitamente inoportuna. Por isto, Noé faz parte de uma fileira de filmes que me desiludiram e aos quais voltei, maravilhando-me com a redescoberta.

Em 2014, Hollywood virou-se para a Bíblia. Ridley Scott com o seu épico gorado sobre a figura de Moisés Exodus - Deuses e Reis, protagonizado por Christian Bale, e Aronofsky com o controverso e incompreendido Noé, protagonizado por Russell Crowe. Ambos com sofisticadíssimos efeitos visuais, ambos visualmente deslumbrantes e ambos tão duramente criticados do ponto de vista narrativo. Foquemo-nos em Noé: o erro não foi tanto o de partir de material religioso, imediatamente polémico. O erro - comercialmente compreensível, dado o gigantesco orçamento - foi ser vendido como um filme bíblico, o que atrai muito público correndo o risco, quase obrigatório, de defraudar expectativas. Ora bem, Aronofsky é ateu. Estão a perceber bem onde quero chegar? É claro que Noé não colide crassamente com os versículos do Antigo Testamento, mas, no seu oceano de liberdades criativas, reinterpreta-os, arquitectando uma obra gnóstica e de entendimento universal - sobre todas as religiões e sobre nenhuma em particular. Funde, habil e inteligentemente, criacionismo com evolucionismo: Noé tem um dos mais audazes time-lapses da História, numa brilhante sequência que vai do Big Bang à divisão celular e à plausível evolução das espécies - provavelmente, mais plausível do que nunca - até que chega à criação do Homem e a obra se enche de símbolos e misticismo cabalístico, cuja interpretação resolve a mensagem encriptada. A narrativa tem prólogo, três actos e uma coda. Ao longo desta sua jornada, Noé é um filme fantástico, às vezes de inspiração surrealista, e um filme catástrofe, apocalíptico, com uma forte preocupação ecológica por trás (Noé e a família são vegetarianos). É um filme de acção e um drama familiar, com nuances de romance e de tragédia. Tem, portanto, uma natureza bastante abrangente e totalizante e jamais se perde na sua ambição. Camuflado entre a aparência de blockbuster, temos a marca inconfundível de um autor genial, intransigente e de pulso firme, que sabe o que quer, como quer e que não prescinde do seu conceito - como fez em The Fountain; embora, neste caso último, evidentemente, com menos dinheiro. Aqui, serve-se do milionário investimento de um grande estúdio para bancar hordas de animais digitais - primeiro as aves, depois os répteis e os insectos e por fim os mamíferos terrestres - que, de outra forma, não seriam possíveis.

A comparação com The Fountain não é, de todo, despropositada. Diria que os dois filmes fazem parte da mesma dimensão criativa dentro do universo de Aronofsky, dialogando entre si, partilhando inúmeras referências - e não só porque ambos têm personagens principais obsessivamente empenhadas na sua missão de salvação. Aronofsky é, aliás, dos cineastas que melhor explora a obsessão em toda a sua complexidade, desde as motivações às suas inevitáveis consequências. Veja-se o caso de Requiem for a Dream ou de Cisne Negro. Em Noé, Russell Crowe interpreta os sinais divinos, os sonhos e as profecias e, munido de uma fé indestrutível, avança com o plano de construção da arca. A magia germina a cada punhado de terra. A fé da família nele e no plano do Criador (que nunca é referido como Deus) é igualmente inabalável. Às tantas, todavia, Crowe começa a parecer-se cada vez mais com o seu arqui-rival Tubal-cain (aguerrida interpretação de Ray Winstone), na medida em que não olha a meios para atingir os seus fins. Sem jamais questionar os desígnios do Criador, barrando a entrada aos milhares que, lá fora e em pleno dilúvio, clamam por ajuda e salvação, Noé ver-se-á ainda confrontado com a necessidade de sacrifício da própria família, por forma a travar a descendência e a continuação do Homem. O plano é claro:

The Creator has judged us. Mankind must end. Shem and Ila, you will bury your mother and I. Ham, you will bury them. Japheth will lay you to rest. You, Japheth, you will be the last man. And in time you, too, will return to the dust. Creation will be left alone, safe and beautiful.

O fundamentalismo da sua fé levá-lo-á à loucura e poderá torná-lo um sanguinário, cada vez mais à imagem e semelhança do seu Criador. Ou cumpre a sua missão até ao fim ou será odiado por todos os que ama, até ao fim dos seus dias. É o que lhe diz a mulher Naameh (comovedor desempenho de Jennifer Connelly, que volta a formar casal com Crowe depois da sua química inegável em Uma Mente Brilhante). A transfiguração do actor é assustadora, conduzindo a sua dor e a narrativa a um inesperado e intenso terceiro acto. O elenco, completado com notáveis prestações de Emma Watson, Anthony Hopkins, Logan Lerman e Douglas Booth, edifica uma crescente carga dramática, que tenderá a emocionar-nos na sua complexidade. Frank Langella e Nick Nolte emprestam as suas sonantes vozes aos Vigilantes, os gigantes de pedra outrora Anjos Caídos, que ajudam na construção da megalómana arca e que lutarão contra os malditos que nem Ents às portas de Isengard.

Tornemos à comparação com The Fountain e às suas interligações: ambas as obras partem do Genesis para criar o seu imaginário, partilhando a imagem da árvore sagrada do Jardim do Éden, seja ela a Árvore da Vida ou a Árvore do Conhecimento. Uma é o ponto de chegada, a outra o ponto de partida. A árvore não é igual nos dois filmes, mas o poder da imagem e a estética assemelha-se. Assim como se assemelha a branca flor, que brota do solo por magia, símbolo do eterno recomeço. The end of everything. (...) The beginning of everything. O musgo é o alimento tanto do descendente de Adão como do Último Homem de Hugh Jackman, que viaja no espaço e numa dimensão metafísica. Noé partilha com The Fountain algum do seu esplendor visual, também, nos efeitos especiais relacionados com o cosmos e em planos em que as silhuetas das personagens - negras - se destacam dos seus fundos maravilhosos. No caso do filme de 2006 temos um plano em que Jackman se alonga e medita sobre um fundo de constelações e no caso de Noé temos marido e mulher sobre o crepúsculo. A beleza do frame é inebriante, entre outros tantos frames que nos esmagam com o seu poder visual. Matthew Libatique é o prodigioso artista por detrás da fotografia dos dois filmes, adaptando triunfalmente, nos dois casos, novelas gráficas e storyboards. Mas também a música desempenha um papel semelhante em ambas as criações - e também aqui não se mexeu na equipa. Clint Mansell é o compositor e, para além de a sonoridade de Noé invocar, muitas vezes, a memória dessa transcendente experiência que é The Fountain, também neste caso a repetição e a persistência da repetição das mesmas frases musicais ao longo das cenas espelha a obsessão do protagonista e da sua missão, marcando um ritmo pulsante e que gradualmente se intensifica. Noé é, por tudo isto, um arrebatador espetáculo de som e imagem, filmado e orquestrado por um realizador que se movimenta como um deus. Tal como em The Fountain, também aqui temos impressionantes planos verticais - god's eye view -, confrontos à chuva perante a presença da vegetação e uma ágil montagem (Andrew Weisblum) ao serviço das diferentes mas sempre económicas e empolgantes cadências narrativas.

Uma das mais controversas observações que tenho a apresentar prende-se com intencionais anacronismos colocados no filme e, assim sendo, com a eventual atemporalidade da acção. Depreender-se-ia, à partida, que Noé desenvolvesse a sua fantasia num passado histórico. Contudo, não só os amplos planos da primeira parte deixam antever uma civilização outrora industrializada como, a dado momento, um dos time-lapses mostra silhuetas de combatentes de diversas épocas, entre os quais guerreiros pré-históricos, gregos, egípcios, romanos, árabes, vikings, índios e europeus medievais, do tempo dos descobrimentos ou da Revolução Francesa, soldados das guerras mundiais... Todos os figurinos e armas são datáveis, do pau à espada e à espingarda. Um mero devaneio meta-ficcional, na tentativa de abranger a totalidade do tempo, do passado ao futuro? Ou a dupla possibilidade desta história apocalíptica tanto se passar lá atrás como amanhã ou num tempo sem tempo? Na minha opinião, tudo isso. Já desde The Fountain que sabemos que Aronofsky procura atingir, neste seu tipo de cinema, a plenitude. É essa sua obsessão. A dada entrevista* o cineasta avançou: I'm Godless. And so I've had to make my God, and my God is narrative filmmaking, which is ultimately what my God becomes, which is what my mantra becomes, is the theme. Basta assistirmos a um destes seus filmes para compreendermos a amplitude e o significado das suas palavras. Qual Noé, Aronofsky transporta a pele da serpente e, na sua carga esotérica, a herança de um cinema por demais iluminado.

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(*) Entrevista a Ruby Rich aqui.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

BONNIE E CLYDE (1967)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM 
★★★★ 
Título Original: Bonnie and Clyde
Realização: Arthur Penn
Principais Actores: Warren Beatty, Faye Dunaway, Michael J. Pollard, Gene Hackman, Estelle Parsons, Denver Pyle, Dub Taylor, Evans Evans, Gene Wilder 

Crítica:

This here's Miss Bonnie Parker. I'm Clyde Barrow. 

ESTRADA PARA PERDIÇÃO

We rob banks.

Quando Warren Beatty abordou François Truffaut, na tentativa de convencê-lo a realizar Bonnie e Clyde, consta que o francês terá sugerido que, ainda que a história estivesse contada ao estilo da nouvelle vague, por se tratar de uma história americana deveria ser contada por um realizador americano. Beatty reteve a ideia e apresentou o guião do filme aos mais conceituados nomes da altura, entre os quais George Stevens e William Wyler. Todos o recusaram, inclusivé Arthur Penn, que mais tarde viria a reconsiderar. E quando o mítico Roger Ebert assistiu ao filme pela primeira vez, trabalhava profissionalmente como crítico há coisa de seis meses. O Chicago Sun-Times publicou a sua crítica a 25 de Setembro de 1967. Bonnie e Clyde foi o primeiro filme ao qual atribuiu nota máxima. A respeito, apostou: years from now it is quite possible that Bonnie and Clyde will be seen as the definitive film of the 1960s. Cinquenta anos depois, vista a obra um par de vezes e admirando-a profundamente, compreendo o que ele quis dizer. Bonnie e Clyde constitui, para o cinema americano, um dos seus mais irreverentes, audazes e revolucionários pedaços. O filme que ninguém queria fazer tornou-se um clássico incontornável, pleno de modernidade. Se ainda não assistiu, salte a crítica e não perca mais tempo.

Entre no 4-Cyllinder Ford Coupe - perdão: no stolen 4-Cyllinder Ford Coupe -, bata a porta com força e pé a fundo no acelerador. Ouvem-se já guitarras e outras cordas, dedilhadas a alta velocidade, e não tardarão guinadas dos volantes, pneus gritantes e uma chuvada de tiros e vidros estilhaçados. É assim que nos sentimos cada vez que assistimos a esta enérgica, alucinante e divertida obra, estou certo? Pensar que chegaram a decliná-la por transformar em heróis dois marginais criminosos, ladrões e assassinos, que à partida nada teriam de simpáticos e que não seriam, muito provavelmente, capazes de criar empatia com os espectadores. Pois bem, Bonnie e Clyde foi um enorme êxito de bilheteira e ainda hoje conquista cinéfilos de todo o mundo. Porquê?

Diria, em primeiro lugar, que a dupla de protagonistas Warren Beatty (Clyde) e Faye Dunaway (Bonnie) tem uma relação com a câmera de puro magnetismo. São tão belos, charmosos e sensuais que nos apaixonamos imediatamente por eles. Até eu partia com eles a assaltar bancos, cativado por aquele olhar, por aquele sorriso. Desde o primeiro instante, é posto à prova o nosso moralismo e a nossa ética como espectadores e como seres humanos. Afinal, que pessoas somos nós que pagamos para ver um biopic - livre, mas que ainda assim trata de figuras reais da História recente - sobre foras-da-lei, que espalham a violência e o sangue por onde passam, e ainda assim engraçamos com eles, torcendo por eles? Somos como que enfeitiçados pelo seu carisma! Às tantas, quais protagonistas, não queremos saber de nada disso e deixamo-nos levar pelo entusiasmo do momento, pela excitação da acção proibida, pela adrenalina de pecar e de fugir, podendo ou não ser apanhado. Que juvenil loucura, irresponsabilidade e imaturidade. Que esquisita, excêntrica e egoísta forma de vida. Bonnie e Clyde não fazem senão ceder ao desejo, saborear o risco e desafiar a autoridade. É certo que, em plena Grande Depressão e em tempo da Lei Seca, o ataque ao sistema, o rombo na fortuna dos mais ricos e poderosos e a libertinagem das suas investidas foi confundido com coragem pela generalidade do povo - então condenado à miséria, numa altura em que o aparecimento dos novos pobres crescia exponencialmente - e entendido, quase, como um sinal de revolução. Este entendimento emocional e impulsivo justificou o mediatismo do casal, ainda para mais impulsionado pela romantização das suas figuras, unidas no crime contra tudo e contra todos. O casal alimentava a sua própria lenda viva, consciente da morte certa, arranjando forma de publicar as suas fotos e poemas (escritos pela própria Bonnie) na imprensa. E é claro, ver uma mulher a ganhar protagonismo, ainda para mais naquelas andanças, era muito à frente para a época.

Some day, they'll go down together
They'll bury them side by side
To a few, it'll be grief
To the law, a relief
But it's death for Bonnie and Clyde.

O fascínio por praticar o errado é perfeitamente retratado pelo bochechudo C. W. de Michael J. Pollard. Vejamos como reage à proposta dos bandidos no posto de gasolina onde trabalha: o rosto maroto desenha-se-lhe na hora, genuinamente, como se escapar à sua realidade fosse tudo o que mais quisesse e embarcar na aventura não fosse senão a mais irresistível das tentações. Agora trio, o bando cresce no estrelato à medida que os assaltos se sucedem. A fama cresce ainda, retrata Penn, pela comicidade das suas investidas: ao contrário de algumas redes de crime organizado da altura (como as de Al Capone, John Dillinger ou Baby Face Nelson, imortalizadas pelos filmes de gangsters que desde então proliferaram), o grupo de Bonnie e Clyde movia-se ao sabor do instinto e do improviso - diria mesmo com muito pouco profissionalismo - levando às situações mais perigosas mas sobremaneira bizarras ou insólitas. No filme, naturalmente, resultam em cenas muitíssimo divertidas - a cena do roubo do automóvel de Eugene é disso por demais icónica. São sequências vibrantes e maioritariamente plenas de ritmo, com uma montagem absolutamente fora-de-série (Dede Allen) e uma invulgar e surpreendente violência gráfica (a sua influência em filmes como A Quadrilha Selvagem ou O Padrinho é evidente e determinante). As proezas de câmera são diversificadas (os zooms, a alternância no foco, o slow motion, etc.), funcionando a obra, quase, como uma antologia de técnica e de estilo. Note-se o prodigioso trabalho de fotografia (Burnett Guffey) e a sua excelência visual: os diffusion filters usados na sequência do piquenique familiar (e a sua aura nostálgica, quase onírica) ou os enquadramentos que tão bem valorizam a cenografia ou extraem a cor e o esplendor natural do Texas (em paradoxo com a brutalidade das richas que se desenham na paisagem).

Mais do que a violência (nunca gratuita, pois o final condena severa e inequivocamente todo o comportamento rebelde manifestado ao longo do filme), Penn enfatiza a juventude e os seus ideais românticos, alienados da realidade e as consequências trágicas a que um caminho desses, uma vez percorrido, pode levar. O argumento e a realização não se coíbem, no entanto, de satirizar um sistema social hipócrita e tanto ou mais criminoso, na forma em que muitas vezes parece ludibriar as pessoas que deveria servir ou na forma como condena o crime mas simultaneamente o cultiva. A atitude desleal do pai de C.W. no acto final, por exemplo, é por demais reveladora. Tanto mais hipócrita se pensarmos, em contraste, na indestrutível lealdade entre os elementos do gangue ou na honestidade e verdade com que Bonnie e Clyde acreditam que estão no seu direito quando exigem o que não lhes pertence, como se praticassem o bem. A comparação entre Clyde e Jesse James é, neste prisma, totalmente plausível. Trata-se de uma dicotomia moralmente ambivalente e no fio da navalha, nos limites da ética. E o terrível desfecho da dupla, selado pela traição e pela morte chacina, é disso um símbolo maior, profundamente irónico.

You've heard the story of Jesse James
Of how he lived and died 
If you're still in need 
Of something to read 
Here's the story of Bonnie and Clyde.

O restante elenco compõe um todo de altíssimo talento e magníficas interpretações: Gene Hackman (Buck Barrow, irmão e parceiro ideal de Clyde) e Estelle Parsons (a irritante, ensurdecedora e hilariante mulher de Buck).

Apesar da intriga e da acção que tanto elogio, o que mais me toca é a história de amor entre Bonnie e Clyde. A poderosíssima química entre aquelas duas personagens, que desde a memorável cena de abertura evolui para uma relação tão interdependente, de respeito, de consideração e de admiração. As tantas afinidades e a forma como se completam e depois a frustração que enfrentam - dada a impotência sexual de Clyde - e a forma como a ultrapassam, amando-se, estando lá um para o outro. Quando a dado momento Bonnie se deixa invadir pela tristeza e saudade da mãe e abandona o grupo por entre douradas searas, Clyde encontra-a e, abismado pela ideia de perdê-la, abraça-a: please, honey, don't ever leave me without saying nothing. Tais palavras em tamanho momento têm uma carga tão forte. É por momentos destes que Bonnie e Clyde jamais se resume a um mero policial, comédia ou filme de gangsters. É tudo isso e tanto mais. Daí enamorar gerações desde a sua estreia. É por filmes como este que, definitivamente, nos apaixonamos pelo cinema.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

PROMETHEUS (2012)

PONTUAÇÃO: BOM 
★★★★ 
Título Original: Prometheus
Realização: Ridley Scott
Principais Actores: Noomi Rapace, Michael Fassbender, Charlize Theron, Guy Pearce, Logan Marshall-Green, Idris Alba, Patrick Wilson, Robin Atkin Downes, Sean Harris, Rafe Spall, Emun Elliott, Benedict Wong, Kate Dickie, Ian Whyte 

Crítica:

A ORIGEM DE ALIEN

Big things have small beginnings.

Prometheus é a metáfora e a invocação do mito grego - significa: desafiar os deuses. É o nome dado à nave especial que, entre estrelas e galáxias, explora os mistérios do espaço cósmico, procurando respostas sobre a criação na Terra e sobre as origens da humanidade. E é também a promessa cumprida de Ridley Scott no regresso ao universo da ficção científica - género que, aliás, ajudou a cimentar -, tantos anos depois de Alien ou de Blade RunnerPrometheus é mesmo a prequela - nunca totalmente assumida - da saga Alien: tem um ponto de partida distinto, é certo, mas os desenvolvimentos da acção acabarão por justificar os acontecimentos decorridos na franquia e o nascimento do célebre monstro. Inclusivé, a nível narrativo, Prometheus e Alien partilham o mesmo ADN e alavancam toda uma mitologia própria.

Tanto mais do que em Alien, a carga filosófica é soberana em Prometheus: quem foi o nosso deus criador e porque nos abandonou? O filme avança a tese alienígena. Diferentes culturas da antiguidade, separadas pela distância, partilharam, misteriosamente, as mesmas referências, esculpidas na pedra. Os mesmos símbolos, a mesma indicação, o mesmo chamamento. Feitas as descobertas e identificado o seu significado, uma equipa de cientistas - convocada e financiada pela Weyland Corporation - parte para o infinito. Estamos no ano de 2093. David (brilhante desempenho de Michael Fassbender) é um replicante, enigmático mordomo da nave enquanto todos os outros tripulantes hibernam, há anos, mergulhados nas cápsulas de hipersono. O seu penteado replica, ao pormenor, o de Peter O'Toole em Lawrence da Arábia - filme que assiste durante a viagem e que citará mais tarde, pelo que depreendemos que o admire e que o tenha visto mais vezes: there is nothing in the desert and no man needs nothing. Mas não só a filmes assiste o robot humanóide: encontramo-lo, curioso, a invadir os sonhos e a privacidade dos colegas, graças à tecnologia de que a nave dispõe. Assiste nomeadamente ao sonho de Elizabeth Shaw (Noomi Rapace), em que esta recebe do pai um colar com a cruz cristã. Quando a equipa é acordada, nas imediações do seu destino, passamos a conhecer a diretora da missão a bordo, a loira, deslumbrante embora absolutamente gélida Meredith Vickers (Charlize Theron), o bem-disposto capitão Janek (Idris Elba) e mais uma mão-cheia de camaradas que não tardarão a ser eliminados um a um, ao sabor do suspense e do aterrador desconhecido. Num holograma incrivelmente real é desfeita a confidencialidade da missão pelo próprio Peter Wayland (Guy Pearce, carregado de próteses e maquilagem como ancião fundador da empresa) e, finda a projecção, aterram finalmente no planeta sombrio, aparentemente estéril e irrespirável, onde se acredita que habitem os denominados Engenheiros, os nossos criadores.

Charlie (Logan Marshall-Green), namorado de Elizabeth: What we hoped to achieve was to meet our makers. To get answers. Why they even made us in the first place.
David: Why do you think your people made me?
Charlie: We made you because we could.
David: Can you imagine how disappointing it would be for you to hear the same thing from your creator?
Charlie: I guess it's good you can't be disappointed.

Entre ruínas e artefactos, acabarão por encontrar uma tripulação de cadáveres alienígenas, brutalmente extintos pelos seus próprios planos criativos e os indícios de que estes se preparavam para voltar à Terra, com fim a exterminar a sua criação. Quem disse que o nosso deus era bom e gostava de nós? Quem disse que se tratava de um mágico e não de um geneticista? Lá se vai o criacionismo conforme Elizabeth o entende, pensamos, ao que ela se apressa por contrapor: and who made them? A cruz que traz ao pescoço simboliza não só o criador do Homem como o seu próprio criador, dado que foi o próprio pai que lha deu. Não admira, por isso, que o colar lhe seja precioso, independentemente das revelações que se avizinhem no horizonte.

Podemos fazer por extrair mais teor filosófico do filme, mas, às tantas, na análise, deveremos focar-nos, parece-me, mais no que o filme efectivamente nos dá e não no que poderia dar-nos. É certo que o filme muito sugere e propõe, todavia jamais aprofunda por aí além as suas questões. Prometheus não é, definitivamente e apesar do seu interesse, um ensaio. A partir de dado momento, David continuará a desvendar segredos e a pôr o seu plano secreto em marcha, motivado sabe-se lá por que desígnios, e tenderemos a não confiar nele. Todavia, somos claramente reposicionados na narrativa - e o que mais importa agora é o silencioso despertar que a exploração humana provocou, inadvertidamente, na atmosfera das ruínas visitadas e a esguia, viscosa e emergente criatura que daí resultou e que, não tardará, começará a sufocar, sangrar e matar, ganhando alento, força e formas. É o acordar de um pesadelo adormecido. De set em set (magnífico design de produção do já lendário Arthur Max), alastra uma vertiginosa luta pela sobrevivência e contra o tempo, que dizimará, sem misericórdia, qualquer vertebrado arquejante. Como em Alien. Acelera-se o suspense e precipita-se a acção e a montagem de Pietro Scalia. A atmosfera densifica-se e agudiza-se radicalmente. A composição musical de Marc Streitenfeld, outrora épica e sonante que nem as criações de Vangelis, dá agora lugar a uma sonoridade obscura e arrepiante. Alia-se a fotografia e a iluminação de Dariusz Wolski, que primeiramente nos maravilhara e enchera de mistério, tanto na grande escala dos exteriores como na clausura dos interiores. Cada imagem espelha agora o medo e o pavor das personagens - e o dos espectadores. Até ao final, a sofisticação dos efeitos especiais será mais gritante do que nunca, conferindo credibilidade - e fascínio - à proposta. E até ao final, também, ficará a ambiguidade implícita relativamente à natureza andróide da personagem de Theron (dúvida não inédita e fórmula a que o cineasta, claramente, não resistiu. Não faz mal, nós gostamos destas coisas).

Alien: Covenant fará a ponte necessária entre Prometheus e a saga original. Duvido que sejam respondidas todas as questões - e que interesse teria se não ficasse uma réstia de mistério? É do mistério que estes filmes viveram, vivem e certamente viverão. Como na grande parte dos filmes de Scott, Prometheus resulta numa experiência prazerosa, visualmente impecável, e à qual não cansa voltar. Não concretiza, no entanto, todo o seu potencial - falta, no mínimo, mais espaço para os actores e para as suas personagens (que provavelmente a realização não permitiu) e cenas propriamente memoráveis, em que se alie o inspirado trabalho de câmera com a encenação; traduzir-se-ia isto numa maior maturação da narrativa e do objecto fílmico em si - equilíbrio em que Scott, infelizmente, falha mais vezes do que gostaria e do que os seus projectos certamente mereciam.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

12 ANOS ESCRAVO (2013)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM 
★★★★★ 
Título Original: 12 Years a Slave
Realização: Steve McQueen
Principais Actores: Chiwetel Ejiofor, Michael Fassbender, Benedict Cumberbatch, Paul Dano, Paul Giamatti, Lupita Nyong'o, Sarah Paulson, Brad Pitt, Alfre Woodard, Dwight Henry, Dickie Gravois, Bryan Batt, Ashley Dyke, Kelsey Scott, Scoot McNairy

Crítica:

NO TEMPO DA VERGONHA

I don't want to survive. I want to live.

12 Anos Escravo é daqueles filmes históricos, profundamente sérios e frontais, que, procurando retratar com verdade as atrocidades do passado, nos envergonham enquanto seres humanos e nos pesam numa consciência colectiva que jamais poderá cair no esquecimento. É a denominada história verídica, a transposição para o cinema da autobiografia de Solomon Northup, o cidadão negro letrado e livre na Nova Iorque de 1841, que se vê inadvertidamente enganado e raptado e tragicamente entregue à escravatura que ainda vigorava no sul do país, separado da mulher, dos filhos, da carreira de músico e de qualquer noção de liberdade. Mais tarde escreverá o livro que dará nome ao filme, relatando, de forma pormenorizada e sem floreados, o violento e absurdo desvio que a sua vida, às tantas, tomou, marcando-lhe para sempre o corpo e a alma. Até lá, 12 Anos Escravo é a história de um homem comercializado como gado, tratado que nem uma besta e humilhado simplesmente por ter uma cor dita amaldiçoada, de uma etnia igual mas monstruosamente inferiorizada desde o tempo das descobertas. Como se tivesse culpa de ter nascido. Tiram-lhe tudo, até o nome - passará a chamar-se Pratt. Tentará a todo o custo manter a lucidez e a esperteza, a fé e a esperança e aguardar pela hora certa para fugir, escapar ou escrever, na invisibilidade, a carta aos amigos que lhe poderão trazer a salvação - e a vida de volta.

I will not fall into despair! I will keep myself hardy until freedom is opportune!

A todo o instante, a fotografia de Sean Bobbitt extrai da natureza e da paisagem bucólica a maior beleza. Ainda que falte o sol, encoberto pelas nuvens. Sopra um ligeiro vento, mas nunca suficiente para abolir velhos costumes. A maravilha está no rio, nas árvores, nas folhas... até nas lagartas e na praga que, a dado momento, afecta a plantação de algodão. O cenário é idílico em contraste gritante com as chicotadas que silvam, vergam e dilaceram, com as cordas que soerguem, apertam e sufocam, com os gemidos que dos tormentos a medo se soltam, seja no silêncio da noite ou entre o ensurdecedor canto das cigarras, em pleno dia. Em cada estrada um caminhante traiçoeiro, em cada quinta um reles capataz ou um feroz senhor, sempre pronto a destilar o ódio e a desferir o golpe. Ford (Benedict Cumberbatch), apesar de dono de escravos, revela uma humanidade singular, mas Tibeats (Paul Dano), seu braço-direito, é de uma repulsa incompreensível para com Solomon e os restantes negros. Quando o violinista (visceral interpretação de Chiwetel Ejiofor) o enfrenta e, fora de si, o agride... espera-o a forca. A cena é, à semelhança de outras, um long take. Bem sabemos da predilecção de Steve McQueen pelas tomadas mais demoradas - lembramos a dureza de Fome. Dessa simplicidade e honestidade - não há truques de montagem, a câmera está parada e limita-se a observar - advém uma carga emocional brutal e uma sensação de realismo e autenticidade inegável. Essa cena é tanto ou mais perturbante quando notamos que os outros, à volta do castigado suspenso no nó, aparentam fazer a sua vida normalmente, pactuantes no medo e na necessidade impreterível de sobrevivência.

Survival is not about certain death, it is about keeping your head down. 

Salvo da forca mas não ileso e sem consequências, Solomon vê-se transferido para a herdade de Edwin Epps (assustadora, a entrega de Michael Fassbender). É recebido com palavras da Bíblia, mas é como se tivesse chegado ao Inferno. Epps é um alcoólatra tirano, em tudo incurável e doentio, um espírito fraco embora de uma força boçal, dominado pela ignorância, pela fragilidade e pelos ciúmes da mulher. É incompreensivelmente (para ele) obcecado pelos encantos carnais de Patsey (Lupita Nyong'o, num papel tão penoso quanto arrebatador), o que desencadeará nalguns dos instantes mais irascíveis, sofridos e chocantes de toda a obra. Para Solomon, o futuro desvanece-se então de dia para dia, como um sol que perde calor. Quando, assolado pela desilusão, destrói em pedaços o violino que o patrão Ford lhe dera em tempos, percebemos que a sua esperança está por um fio. A sua honra e a sua dignidade, há muito que as perdeu. Encontrará alguma luz ou benfeitor no seu poço sem fundo? Haverão lágrimas, ainda, capazes de lhe encher os olhos de felicidade? Tornará a sentir um beijo ou um abraço? Ficam as respostas para quem assiste ao filme e ao seu terno final.

McQueen, num exercício de proximidade tremendo - a câmera está a maior parte do tempo sobre os actores, em planos fechados e intimistas, alternando muitas vezes o focar e o desfocar - potencia as excepcionais performances do elenco, a que se juntam nomes como Brad Pitt (ele também produtor) e Paul Giamatti. Hans Zimmer assina a banda sonora minimalista, pontuando o filme com a sua envolvência, convocando à reflexão - esse mérito maior, todavia, provém sobretudo do trabalho dos actores, dos seus olhares brilhantes e plenos de verdade na história que contam, na História que representam. Que o presente e o futuro ponham fim à injustiça. Tantos anos após a abolição da escravatura, as feridas ainda se sentem na pele: na desigualdade, na descriminação, no racismo. Fica a vergonha e a arte - mas que fiquem, como alerta.

Laws change (...) Universal truths are constant. It is a fact, a plain and simple fact, that what is true and right is true and right for all. White and black alike.


domingo, 12 de fevereiro de 2017

BIRDMAN OU A INESPERADA VIRTUDE DA IGNORÂNCIA (2014)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM 
★★★★★ 
Título Original: Birdman or (The Unexpected Virtue of Ignorance)
Realização: Alejandro Gonzalez Iñárritu
Principais Actores: Michael Keaton, Emma Stone, Naomi Watts, Edward Norton, Zach Galifianakis, Andrea Riseborough, Amy Ryan, Lindsay Duncan, Jeremy Shamos, Natalie Gold, Merritt Wever 

Crítica:

O METEORITO E AS ALFORRECAS

A thing is a thing, not what is said of that thing.

Mas - permitam-me começar com a adversativa - como é que raio ou meteorito fizeram este inacreditável filme? Prodígio técnico absoluto - na câmera, na encenação e na representação -, assistir a Birdman será sempre um deslumbramento. O rigor e o formalismo jamais se esgotam em si mesmos, antes acentuam o realismo e a sensação de que assistimos a uma grande peça de teatro, com uma peça de teatro lá dentro. Sufoca-nos, a nós e às personagens, a claustrofobia daqueles corredores intermináveis, dos camarins minúsculos e da iluminação soturna e sempre artificial do backstage. Sufoca-nos, tão-mormente, aqueles geniais e engenhosos planos-sequência que se unem e fluem como um só. Não admira, pois, que quando a câmera acompanha as personagens ao topo do edifício ou numa saída à rua - alia-se geralmente a sinfonia - nós e o filme inspiremos e expiremos profundamente, numa prazerosa lufada de oxigénio. Nós e o filme, nós e as personagens - sempre: os travellings perseguitórios tornam-nos íntimos e cúmplices e, quais personagens, deambulamos pelo set, vivendo as suas angústias.

Michael Keaton, Naomi Watts e Edward Norton arrasam em atuações excepcionais. São actores a fazer de actores e o filme é, em parte, sobre o que significa ser actor. A busca, sempre crescente, do sucesso e do reconhecimento - ou da alimentação do ego. A procura da representação da verdade na ficção perante o risco de, sem perceber, se representar a vida, tornando-a uma trágica mentira. Note-se o caso de Mike (Norton) para quem o palco é o único sítio onde consegue ser autêntico e ter, com facilidade, uma erecção, sendo capaz de pôr toda a peça em risco em nome da verdade e das sensações genuínas. Note-se o caso de Lesley (Watts) que sempre sonhou ser actriz da Broadway e que, tornando-se finalmente quem sempre quis ser, se esbate com as inseguranças de menina. Note-se Riggan (Keaton, o protagonista) que investe tudo o que tem e o que é na derradeira tentativa de regresso aos êxitos e de não cair no esquecimento (relação metadiagética com a situação real do próprio actor), numa era em que se atropelam as sequelas de super-heróis (a sátira é clara) e a memória da trilogia Birdman, onde estrelou, se apaga a cada dia. Riggan é o meteorito com que a obra abre, a estrela-cadente que, plena de frustração e de incapacidade em superar-se e em renovar-se, conhecerá a morte no impacto que se aproxima. A imagem é belíssima. Conseguirá ele reerguer-se e tornar ao firmamento, ausente que está dos fenómenos virais da sua atualidade como o facebook, o youtube ou o twitter? Abismado que está pelas dúvidas existenciais, pela honra ferida e pela crítica feroz? Riggan está sozinho entre um elenco de egos. E ninguém parece disposto a dar-lhe a mão. This stage has belonged to a lot of great actors, but you are not one of them - diz-lhe Mike, a dado momento, confrontando-o - You nobody piece of shit! (...) My massive hard-on got 50,000 views on YouTube. A cat playing with a dildo gets more than that. O seu alter ego, com quem tantas vezes dialoga na solidão e que não é senão a voz do seu Birdman de outros tempos, tão depressa o endeusa como o desmoraliza: without me, all that's left is you... a sad, selfish, mediocre actor... grasping at the last vestiges of his career. A crítica Tabhita Dickson devasta-o: you're no actor, you're a celebrity. Let's be clear on that. E até a melancólica filha Sam (brilhante Emma Stone) o chama à razão: you're doing this because you're scared to death, like the rest of us, that you don't matter. And you know what? You're right. You don't. It's not important. You're not important. Get used to it. Quais alforrecas, todos se lhe colam e queimam o corpo e a alma. Não admira, portanto, que o desencanto triunfe e que o suicídio seja encarado como a única solução - e salvação. Terá um ego tão inflamado, mesmo na desilusão, coragem para tamanho feito?

Com Birdman, Alejandro G. Iñárritu lembra-nos por que é, afinal, um dos mais ambiciosos e mais estudados cineastas deste início de século - lembremos, a título de exemplo, Babelesse seu extraordinário filme-mosaico, cuja urgência é gritante e a excelência completamente irrevogável. E quando utilizo o adjectivo estudado (não me justificarei quanto ao ambicioso, porque acho que a obra fala por si), utilizo-o na sua dupla acepção: não apenas no sentido em que o estudam, mas sobretudo no sentido em que Iñárritu estudou e conhece o legado que a sua arte e os seus mestres lhe deixaram. Só se pode procurar ser original e inovador, num mundo onde já tudo foi inventado, se estudarmos o melhor possível a nossa arte, os clássicos e o que já foi feito. Até imitar não é para todos e saber imitar bem uma obra de arte. O mesmo é válido para qualquer cinéfilo ou crítico: a nossa apreciação de filmes como este só beneficiará se tivermos assistido ao A Corda de Hitchcock ou se soubermos mais sobre as experiências e as propostas que têm sido feitas com os planos-sequência ao longo dos tempos. O estudo é importante. Da mesma forma é estúpido criticar Iñárritu só porque é audaz ou reúne esta ou aquela influência. Chamam-lhe, alguns, arrogância. À leviandade desses alguns, chamaria, por cortesia, inesperada virtude da ignorância. Por mais que se rodeie de alforrecas, se há coisa que Iñárritu não é é seguramente um meteorito; excepto na força. O seu trajecto é claramente inverso e ascendente. O cineasta arquitecta e concretiza aqui mais um desafiante e brioso exercício de estilo, distante de clichés, matematicamente preciso e assaz meticuloso e sem grandes truques de montagem, que se transcende em criatividade e emoções, sempre atento às fragilidades da condição humana. Não tenhamos dúvidas: Birdman é o fascinante resultado de ensaios, ensaios e mais ensaios, muita dedicação, paixão e entrega à arte e, claro, de uma boa dose de loucura. O assustador trabalho de Emmanuel Lubezki revela-se, em tudo e por tudo, absolutamente épico.

Por isto, estamos perante um imperioso triunfo - um filme para a vida.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

A BRUXA (2015)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM 
★★★★★ 
Título Original: The VVitch: A New-Englad Folktale
Realização: Robert Eggers
Principais Actores: Anya Taylor-Joy, Ralph Ineson, Kate Dickie, Harvey Scrimshaw, Ellie Grainger, Lucas Dawson, Bathsheba Garnett, Wahab Chaudhry, Julian Richings, Sarah Stephens  

Crítica:

When I sleep, my spirit slips away from my body...

UM CONTO SATÂNICO

... and dances naked with The Devil.

Algumas extraordinárias e insólitas composições musicais, quando perfeitamente aliadas às mais enigmáticas motion pictures, têm o dom e o poder de tocar o divino. É o caso, por exemplo, dos coros atonais de Ligeti, que imortalizaram o aparecimento do monólito aos primeiros Homens, na obra-prima de Kubrick 2001: Odisseia no Espaço. É o caso, também, da ensurdecedora confusão de cordas e percussões - proposta por Jonny Greenwood - para marcar a explosão do poço de petróleo na numa das mais emblemáticas cenas de Haverá Sangue, de P. T. Anderson. Num caso como no outro, a música impõe - ao filme e ao espectador - estranheza, incómodo e até algum mal-estar. Neste arrepiante A Bruxa, Mark Coven, o compositor, parece ter aprendido com os melhores. Neles bebeu, claramente, inspiração. Caleb's Seduction, por exemplo, imita o Requiem de Ligeti e todos os seus efeitos perturbantes e repulsivos, conduzindo o silêncio do suspense aos mais periclitantes picos da adrenalina e do terror. Na realização, o estreante Robert Eggers nunca atinge, é certo, a dimensão visionária de qualquer um dos realizadores atrás mencionados. Não obstante, concretiza um sólido e por demais virtuoso trabalho de contenção, potenciando o terror psicológico como poucos e causando, certamente, alguns suores frios. A Bruxa poderá nunca atingir o divino, mas jamais terá sido esse o objectivo. A Bruxa é obra do diabo!

Este será sempre um filme de autor: Eggers assina também o argumento. E se há palavra que o caracteriza, tanto na arte de escrever como na arte de filmar, é economia. Poucas vezes estaremos perante um filme tão económico - não há um diálogo a mais, uma palavra a menos, não há uma cena a mais ou um shot a menos. Tudo, nesta belíssima obra, se reduz ao essencial. Cada imagem ou cada som tem a sua carga significante. Mas A Bruxa é também um filme de significados ocultos, de símbolos atrás de símbolos cuja interpretação - e muitas vezes ambiguidade - enriquecerá o sentido da história, permitindo decifrá-la.

New England, na obscura década de 30 do século XVII. O âmago da história é uma família de sete elementos - imigrante, pobre e profundamente religiosa e supersticiosa - cuja devota e doentia existência se resume tão-somente à Bíblia, como se respirassem o evangelho de manhã à noite e o seu pão na mesa fosse a palavra sagrada e a sua literal interpretação. Expulsos pela própria Igreja da comunidade e plantação onde viviam - tal era a sua cega e fervorosa paixão pelos testamentos de Deus, considerada uma tremenda ameaça e tudo menos bem-vinda - encontram, nos terrenos bravios na orla de uma densa e misteriosa floresta, o local ideal para o recomeço. Totalmente isolados do mundo - a aldeia mais próxima fica a largas horas de viagem - têm-se a si próprios, aos seus medos e anseios e a um conhecimento por demais limitado para extrair da terra a abundância necessária a uma vivência cómoda e estável. Temos William, o pai (Ralph Ineson, dotado de um impressionante tom gutural), de todos o mais puritano e que a toda a hora lembra as parábolas e as figuras bíblicas, que deverão guiar as ações dos filhos e livrá-los do pecado. Temos Katherine, a mãe (Kate Dickie), que não tardará a ceder à dúvida e à histeria. E depois temos 5 filhos: o mais novo, Samuel, é um bebé inofensivo. Seguem-se dois gémeos, Mercy e Jonas (Ellie Grainger e Lucas Dawson), duas diabruras mal-comportadas e indomáveis. Mercy é plena de ironia no nome - se há coisa que não terá por ninguém será precisamente misericórdia, quando muito não seja pelos seus repetidos gritos estridentes. Temos Caleb (Harvey Scrimshaw), por demais curioso e fascinado com os relatos bíblicos do pai e por fim, mas não menos importante - pelo contrário -, temos Thomasin (Anya Taylor-Joy, promissora revelação), a filha mais velha, sobre a qual a câmera abre e encerra o filme. De olhar intenso e intrincado, a jovem servirá de bode expiatório para justificar tudo o que de inexplicável e hediondo vier a acontecer - e que será muito.

Sempre presente, a floresta como pano de fundo - a observar, a escutar... Virgem e intocada, é vítima das piores suspeitas e da mais supersticiosa ignorância, como se da fonte de todo o Mal se tratasse, onde retorcidas forças se dispõem para atacar sem motivo aparente, a qualquer instante. Por isso, está decidido que a devem evitar. A floresta desempenha n'A Bruxa, portanto, papel semelhante ao que desempenhara n'A Vila, de Shyamalan, em que atravessá-la significava transgredir as fronteiras do medo rumo ao temido desconhecido.

Tornemos a Thomasin, que desde logo assume o protagonismo. Certa vez, enquanto brinca com Samuel perante a floresta, o bebé desaparece-lhe como por magia. Vêem-se ervas secas a mexer-se, na direcção do arvoredo. Samuel é raptado e não se sabe por quem, desencadeando a acção. A mãe apressar-se-á a culpá-la - antes disso, porém, acompanharemos, na escuridão da noite, uma bruxa into the woods e de bebé ao colo, pronta para mutilá-lo e, num acto de canibalismo, prová-lo. Qual lobo mau no conto popular infantil do Capuchinho Vermelho, ávido de criancinhas inocentes. Mais tarde, quando Caleb e Thomasin, quais Hansel e Gretel, se aventuram pelo bosque, noite adentro, na tentativa de aliviar a escassez e de encontrar caça e recursos que impeçam os pais de a vender na aldeia - por já ter formas maduras - Caleb encontra uma lebre de olhar suspicaz e perde-se da irmã. Acaba por encontrar o grutesco lar da bruxa que logo avança para ele, voluptuosa e sedutora, o beija e experimenta, corrompendo-lhe o corpo e a alma, num acto de - aos olhos de hoje - pura pedofilia. Thomasin regressa então a casa, tendo, sem querer, entregue à morte mais um dos irmãos que tanto amava. E será a Thomasin que Caleb lhe aparecerá, no mais chuvoso e nocturno breu, nu e possesso, como que envenenado pela bruxa cuja existência, aos olhos de todos, nunca foi comprovada. Até da boca lhe tira o pai uma maçã - clara alusão ao conto da Branca de Neve. A cena que se segue é das mais impressionantes de todo o filme: o momento em que a família, desesperada com a maldição, dá entre si as mãos à volta do leito de Caleb, rezando e implorando pelo exorcismo e pela cura. É como se Deus e o Diabo medissem forças. É a cena nuclear, em que se confrontam uns aos outros na tentativa de entender a maldição e a experiência sobrenatural que se lhes impõe, implacavelmente. Nela acreditam mas, simultaneamente, não querem acreditar. É a altura em que se percebe, claramente, de que lado estão os gémeos, que se recusam a rezar perante as bizarrias e bruxedos que Caleb, no acesso de loucura, tão fortemente profere: A cat. A crow. A raven. A great black dog. A wolf. She desires of my blood. She sends em upon me! They feed upon her teats, her nether parts! She sends em upon me. Sufocam-nos as cordas de Coven e os gémeos repetem, incessantemente, contorcendo-se no chão: She desires of my blood! She desires of my blood! Quando as cordas se calam e se silencia a força derrotada, as culpas recaem novamente sobre Thomasin. Como se fosse ela a bruxa, a infiel, a pactuante com a Besta. Nós, espectadores, pela forma como Eggers joga o seu xadrez, sabemo-la injustiçada. E é precisamente por jogar, desde o início, de forma pouco clara e pouco explicativa que se instala a dúvida. Coloca-nos o realizador, ao fim e ao cabo, no lugar e sob o prisma de qualquer elemento daquela família, prostrado e incapacitado face à violência da inevitabilidade e da fatalidade. A problemática da origem do Mal relacionada com as crianças lembra-nos, a espaços, o ensaio de Haneke, o magistral O Laço Branco.

Quando, anteriormente, à beira do riacho e perante a floresta, Thomasin ouve Mercy falar de uma bruxa da floresta e a assusta dizendo I am that very witch. When I sleep my spirit slips away from my body and dances naked with The Devil. That's how I signed his book. (...) He bade me bring him an unbaptized babe, so I stole Sam, and I gave him to my master. And Ill make any man or thing else vanish I like. Aye. And Ill vanish thee too if thou displeaseth me... acreditamos que apenas brinca com a fedelha. How I crave to sink my teeth into thy pink flesh. If ever thou tellst thy mother of this, I will witch thee and thy mother! And Jonas too! No entanto, não tardará a perceber que tudo o que disser perante a floresta tenderá a ser entendido como uma proposta aceite pelo Diabo, invocado e cultuado pelas bruxas e corpóreo na forma do Black Phillip, o negro bode - símbolo pagão e satânico - que a família alimenta e ignora. O mesmo que os gémeos afirmaram segredar-lhes e que tão alto cantaram aos céus: Black Phillip, Black Phillip, King of sky and land! O mesmo que o pai se recusa a acreditar que seja o Diabo, quando mais tarde encerra os restantes filhos no estábulo, a tábuas e pregos, na companhia do malvado animal e das cabras, como que os castigando ou protegendo. Como se o lobo não destruísse casas de madeira (referência a'Os Três Porquinhos). If that old billy be The Devil - lança o pai, na presença da floresta - I would have danced with him myself. Proposta que o Baphomet se prontifica a aceitar. E não tardará muito a marrar mortalmente contra ele e contra as pilhas de lenha que William tão bem cortou ao longo do filme (Thomasin chega a dizer-lhe, a dado momento: Thou canst do nothing save cut wood!). Os gémeos desaparecem na hora da bruxa, pela ainda escura madrugada, quando esta visita o estábulo, sedenta não de leite mas de sangue de cabra. À mesma hora em que Katherin se levanta da cama e tem uma visão improvável: Caleb aparece-lhe de Samuel ao colo, como que regressados do Inferno, e o bebé dá lugar a um corvo, que lhe debica o seio, na profusão dos símbolos. A imagem é macabra e transtorna-nos. O Mal manifesta-se, pois, numa pluralidade de formas. Revela-se, portanto, um pacto secreto e por demais perverso entre os agentes do Mal, servas bruxas e reles Diabo, que se concretiza numa divertida - e para nós e para as personagens absolutamente aterradora - brincadeira de sangue e morte. O jogo da eliminação continua, caindo os peões uns atrás dos outros, sem qualquer clemência.

O conflito do feminino - foi notória desde o início a especial dificuldade de relacionamento entre a mãe e as filhas e as filhas entre si - conhece um duelo sem precedentes. Estamos no último acto e a mãe sai à rua, completamente desvairada e fora de si, cobrando à filha mais velha - que já lhe competia nas formas - a tragédia que se abatera sobre a família. You have made a covenant with death! You bewitched thy brother, proud slut! Did you not think I saw thy sluttish looks to him, bewitching his eye as any whore? And thy father next! You took them from me! (...) Witch! É caso para dizer: santa ignorância, pensamos. E desfere-se o golpe final, quebrando a inocência, provando o sangue. Estava principiado o ritual. O plano é de afastamento médio e a fotografia (Jarin Blaschke), sempre com luz natural, cores esmorecidas e abrilhantada pela incrível recriação histórica do guarda-roupa (Linda Muir), lembra Veermer ou outros mestres da idade de ouro da pintura holandesa; como nos lembrou noutros instantes, nomeadamente quando os pais olham para Caleb na sepultura, envoltos no frio da paisagem e na companhia da casa, fumegante. O plano, dizia, é incrível e abre lentamente à medida que Thomasin se levanta, enquadrando o pai, ali também caído ao lado, e o restante cenário de destruição. Quando entra em casa, a jovem cobre-se com um manto, senta-se e apoia a cabeça na mesa. O silêncio é imperioso. Fade out. E o filme poderia acabar ali, deixando em aberto o porquê de Thomasin ser a única sobrevivente de tudo aquilo.

Não obstante, há uma coda, a fechar o conto. E o bode ainda está vivo, claro está. Cumprir-se-á o ritual no abraço da floresta, a floresta que ouviu Thomasin, ainda que em vão, e que aceitou a sua proposta. O chifrudo rirá por último, vitorioso sobre qualquer reza ou súplica. Há coisas, dizem os supersticiosos, com as quais não devemos brincar e muito menos pronunciar. Ora bem, A Bruxa é um filme supersticioso, com personagens supersticiosas num tempo em que, longe do esclarecimento científico, a superstição dominava. Não tardaria a começar um dos períodos mais intensos da caça às bruxas nos Estados Unidos, que ficou marcado nomeadamente pelo icónico episódio das Bruxas de Salém, no final do século.

I will guide thy hand...

Por tudo isto, que exímio contador de histórias se revela Robert Eggers - que inclusivé consultou relatos históricos das autoridades de então para recriar as expressões e as falas das personagens, tão focado que estava no episteme e no escape a revisionismos. O subtítulo da obra aponta precisamente para esta natureza real e folclórica do conto. A viagem no tempo parece-nos, por isso, cabalmente plausível. É de filmes destes, superiores, que o género precisa para se vitalizar. Bem, parece-me que está de boa saúde. A Bruxa é um autêntico clássico instantâneo - e nem vou arriscar a dizer o contrário, não vá o Diabo tecê-las!


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CINEROAD ©2020 de Roberto Simões