De
Metropolis (Fritz Lang, 1927) houve, durante décadas, segmentos perdidos no tempo. Julgava-se que para sempre. Felizmente, em 2008 e na Argentina, foram encontrados os 30 minutos da bem-aventurada metragem, até então em falta, e que a
restored version de 2010 já inclui, perfazendo agora um total de 145 minutos. Aquilo que o tempo nos legou é um tesouro absoluto. Uma extraordinária obra-prima.
Se a vida imita ou não a arte, para mim não há dúvidas. Apenas evidências. E se a arte se imita a si própria, continuamente, também não tenho dúvidas. É rara a obra de ficção científica, posterior a
Metropolis, que não convoque directa ou indirectamente o seu prodigioso e criativo imaginário.
Visionário, Lang edifica, por entre cenários grandiosos e prodigiosos esboços futuristas, uma cidade verdadeiramente gloriosa, economicamente afortunada, repleta de arranha-céus (de
design vanguardista) e de tráfego intenso (seja ele automóvel, ferroviário ou aéreo). A cidade é comandada por Joh Fredersen (Alfred Abel), um autocrata dominador, destituído de valores humanos e que concentra, na sua pessoa apenas, todo o poder económico e político da cidade. À superfície de um submundo de maquinaria esclavagista, escondido nas profundezas da terra, prosperam os ricos, entre luxos e tecnologias modernas, com uma vida idílica e plena de lazer. Têm auditórios, bibliotecas, teatros e estádios... Divertem-se, faustosamente trajados, por entre jardins magnificentes -
die Ewigen Gärten -, onde cintilam cristalinas fontes, abunda a vegetação e desfilam majestosos pavões, graciosas garças.
Aber...
Tief unter der Erde lag die Stadt der Arbeiten. Escondido no subsolo, quebra-se o segredo de uma sociedade perfeita que, afinal, não existe. Enquanto os ricos vivem os prazeres e a felicidade, num futuro de sonho, todo um universo de operários oprimidos trabalha quantas horas um dia tem, no mais real dos pesadelos. Imersos em fumos e condenados à ditadura das máquinas, sincronizados e automatizados aos ritmos febris da tecnologia, são escravos de um sistema monstruoso. Metáfora melhor do capitalismo?
Freder (Gustav Frölich, numa interpretação magistral), filho de Joh Fredersen, é o legítimo herdeiro desse projecto quase divino. Vive na ilusão e na ingenuidade dessa Utopia, sem preocupações maiores, até ao dia em que Maria (Brigitte Helm, numa dupla prestação memorável) surge inadvertidamente nos Grandes Jardins, rodeada pelos filhos dos operários. A troca de olhares entre os dois, Freder e Maria, é não só intensa (há amor à primeira vista) como inquietante. Freder apercebe-se, de imediato, que aquela jovem e encantadora mulher e todas aquelas crianças não pertencem ao seu mundo... Há ali qualquer coisa que não faz sentido.
Seht! - diz Maria às crianças. -
Das sind Eure Brüder! Quando a jovem torna com os pequenos ao interior das enormes portadas, Freder sente-se tentado a desvendar aquele mistério e segue-a. É então que se confronta com a dura e inacreditável realidade das profundezas: as máquinas aparecem-lhe como faraónicas esfinges, devoradoras de homens e de humanidade. Toda uma classe é subjugada e sacrificada em prol de uma dita sociedade desenvolvida e civilizada, que vive às suas custas.
Desesperadamente, Freder procura o pai e as devidas explicações, no cimo de uma nova Torre de Babel, palácio maior do multimilionário. Alerta-o de que há homens a morrerem lá em baixo, na sequência de tremendos acidentes laborais... como se o Sr. Fredersen, seu pai, fosse um perfeito inocente em toda a história... Não há mais como esconder a verdade: antevendo que o filho se tornará um incómodo, o Sr. Fredersen coloca espiões no seu encalço. Entretanto, Grot (Heinrich George), guardião da máquina-coração de toda aquela indústria, entrega ao patrão enigmáticos e suspeitos mapas que encontrara na posse dos operários. Irado por todos os incidentes que se hão repentinamente sucedido, o Sr. Fredersen culpabiliza o conselheiro Josaphat e despede-o. Freder, sentindo-se culpado pelo despedimento do pobre homem e sabendo agora que um qualquer despedimento por parte do senhor seu pai significa uma vida de submissão total ao calor do trabalho, promete contratá-lo em seu nome. Primeiro, todavia, sente que tem de descer novamente aos infernos, encontrar lindíssima Maria e tentar compreender toda aquela existência de agonia e terror. Para isso, troca de vida com um magro e infeliz operário de um relógio mecânico e assim se enturma entre os miseráveis.
Numa casa velha da cidade, praticamente esquecida, o inventor C. A. Rotwang (Rudolf Klein-Rogge) recebe a visita do Sr. Fredersen. O inventor acaba de lhe mostrar o Homem do Futuro, o Homem-Máquina que tão-genialmente concebera, como que numa tentativa de dar vida à mulher amada que falecera, quando o magnata lhe mostra os mapas e lhe ordena que os descodifique. Rotwang diz-lhe que os mapas dizem respeito às milenares catacumbas, que abaixo do nível das indústrias se encobrem, mesmo antes de o guiar até aos confins da terra. É lá que, de uma galeria superior, assistem a uma reunião secreta, liderada por Maria, que motiva os trabalhadores, entre os quais Freder, para a fé e para a esperança da liberdade; ideias bem perigosas e capazes de desencadear a revolta contra o sistema. Maria conta-lhes, nomeadamente, a lenda da Torre de Babel -
Gross ist die Welt und ihr Schöpfer und gross ist der Mensch - onde as pessoas, apesar de falarem a mesma língua, não se entendiam e onde os senhores, ansiosos por atingir o céu, se serviam da força dos escravos, cruelmente. Há mesmo um filme dentro do filme, distintamente emoldurado, que recria a fábula. Aliás, o filme está, todo ele, povoado de referências bíblicas, sendo esta uma das principais e mais poderosas, até pelo jogo de espelhos e de metáforas evidente.
Freder depreende facilmente, a partir das palavras da oradora, que desempenhará um papel determinante na luta pela libertação dos escravos. Ele será o intermediário entre dois mundos, qual coração entre a cabeça e as mãos. Entre o pensador, seu pai, e a mão-de-obra, os trabalhadores. No fim da reunião, Freder e Maria ficam sós. Há amor entre eles, trocam beijos apaixonados. Combinam encontrar-se na catedral, à superfície. Mas a acção maléfica do Sr. Fredersen e do inventor jamais permitirá o encontro. Maria é capturada e clonada pelo cientista, por forma a dar vida ao robot - o Homem-Máquina; ou melhor, a Mulher-Máquina. A transformação concretiza-se visualmente impressionante, por meio de efeitos especiais espantosos. Através do robot, Rotwang incitará os operários à rebelião, contrariando as ordens do patrão de Metropolis, pondo em marcha o seu próprio plano, impondo a sua própria autoridade e revelando as suas mais doentias paixões. Afinal, manipulando a ciência e a tecnologia, ele sim, mais do que ninguém, tem o mundo nas mãos!
Freder cai em delírio e sonha uma Maria prostituta, dançante e provocadora de homens. A montagem revela-se genial, com a exposição múltipla a construir imagens oníricas belíssimas. Todo o trabalho de fotografia é verdadeiramente assombroso. A sobreposição de planos, por exemplo, possibilita alucinantes imagens surreais. A realidade, contudo, não era muito diferente do sonho. Quando acorda, Freder depara-se com uma nova Maria, uma outra Maria, a subverter a moral e os ideais dos homens, iniciando a insurreição:
Tod den Maschinen! Os operários galgam as grades e todas as barreiras, liderados pela
robot. Com a invasão da máquina principal, a central eléctrica explode em curto circuito. A cidade, outrora iluminada, apaga-se.
Escapando ao aprisionamento do inventor, a verdadeira Maria corre para as indústrias e depara-se com a catástrofe: uma avassaladora inundação, provocada pelos estragos da explosão, põe em perigo as crianças. Maria ajuda a resgatá-las, salvando-as da morte, mas no subsolo os pais dos pequenos desesperam com a possibilidade da tragédia. Grot confronta-os: afinal, enfeitiçados pelos planos maquiavélicos da bruxa, a
robot, destruiram as máquinas sabendo que a cidade não resistiria sem elas, pondo em perigo não só as suas vidas como as vidas dos seus próprios filhos. Apercebendo-se do seu erro fatal, a multidão insurge-se em direcção à superfície, ansiosa por vingar-se da bruxa. Mas ao chegar à superfície, quem encontram é a verdadeira Maria. Não sabendo do engodo, perseguem-na, e Maria foge, tentando sobreviver ao ódio dos desgraçados. Felizmente, a perseguição cruza-se com o boémio desfile da Mulher-Máquina e a terrível invenção arde na fogueira (curiosa a inclusão de evocações medievais na visão futurista da obra). Freder depara-se com o cenário e nem quer acreditar, desgostoso, que perdeu o seu amor. Maria, contudo, encontrada por Rotwang à porta da catedral, desaparece pelo interior do edifício, subindo até às alturas. Suspensa no pêndulo do grande sino, atrai a atenção da turba. Freder vê-a então, viva mas em perigo, a correr por entre as gárgulas do telhado, e corre para salvá-la.
O Sr. Fredersen chega ao local e nem quer acreditar que tem a vida do filho por um fio. Os rebentos dos trabalhadores estão a salvo, mas o seu ainda não - ainda luta, sem cessar, contra o cientista louco. Para o Sr. Fredersen, o feitiço virou-se, por fim... e, agora, poderá pagar um preço demasiado alto pela ambição cega do seu projecto chamado Metropolis. A Torre desmorona-se. Faltou-lhe coração, desde sempre. Sem coração não há progresso, verdadeiro progresso.
Mittler zwischen Hirn und Haenden... muss das Herz sein.
Eis, imponente e monumental, uma derradeiras maravilhas do expressionismo alemão, uma das maiores obras-primas da História do Cinema. Um marco fundamental e completamente obrigatório.
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Nota especial para a composição musical que acompanha a obra. O restauro de 2002 da Fundação Murnau - a versão a que primeiramente assisti - recria a banda sonora original, composta por Gottfried Huppertz para a lendária estreia de 1927. É interpretada pela Rundsfunksinfonieorchester Saabrücken. Magnífica.