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sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

OS OITO ODIADOS (2015)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
Título Original: The Hateful Eight
Realização: Quentin Tarantino
Principais Actores: Samuel L. Jackson, Kurt Russell, Jennifer Jason Leigh, Walton Goggins, Tim Roth, Michael Madsen, Demián Bichir, Bruce Dern, James Parks, Channing Tatum
 
Crítica:

No one said this job was supposed to be easy. 

A BOA CONVERSA

Nobody said it's supposed to be that hard, neither!

É um western. Toda a plateia aguarda por tiros, sangue e mortes. Ainda para mais, bem que temos presente aquele 
desenfreado e barulhento final de Django Libertado. Que a acção comece! Mas... é um western by Quentin Tarantino. Nunca mais acção e menos conversa. Antes a palavra, muitas palavras, a boa conversa fiada - essa quase interminável verborreia de estilo que demora e atrasa a acção, que nos habituámos, paciente e prazerosamente, a saborear - e a adorar. A acção faz-se, então e sobretudo, podemos dizer, pelas palavras - as palavras como armas. Ao seu oitavo filme, Tarantino - o argumentista - não se repete, antes se matura, apurando a construção dos seus diálogos - dos seus monumentais diálogos - e a forma como, através deles, estuda as personagens e as personagens mascaram ou revelam as suas verdadeiras identidades, egos e intenções. A arrojada trama deste magistral Os Oito Odiados, eu diria, é como um ensopado quentinho, servido com todo o gosto - a cada colherada, cena ou capítulo, degustamos cada pormenor intensamente. E como em qualquer boa refeição, há que saboreá-la sem pressas, lentamente. O nevão não cessa e o inverno é rigoroso. Os oito ali se encontram, na retrosaria da Minnie, e não poderão ir a mais lado nenhum. Ninguém é quem diz ser ou, pelo menos, é o que nos aparenta. Ninguém confia em ninguém. Todos estão armados. E... temos tempo - 167 minutos de puro cinema. Céus, em gloriosos 70mm Ultra Pannavision! Sentem-se confortavelmente e disfrutem da refeição. Não tardarão os tiros, o sangue e as mortes. Ou melhor, talvez demorem um pouco, mas vai valer a pena. Pelo sim pelo não, aqueçam também um café. Café? Hum, melhor, esqueçam lá o café. Concentrem-se na comida - que é como quem diz, no filme. Bom filme!

Todos são, de uma forma ou de outra, caçadores de recompensas, carrascos, prisioneiros, xerifes e foras-da-lei. Uns procuram dinheiro, outros liberdade, outros justiça... todos procuram escapar com vida àquele encontro do diabo, àquela ameaçadora partida do destino - ou de outro autor por assumir - que tão friamente se proporciona e se descortina. Sobre o que falam eles? O que teriam oito estranhos para tanto conversar? Bem, alguns talvez não sejam tão estranhos assim, talvez se conheçam de outras paragens, talvez conheçam pessoas próximas, talvez... o mistério crescente acalora-nos o estômago, mas adensa-se nos interiores da estalagem como a tempestade lá fora, sempre omnipresente. Às tantas, o inevitável e sangrento confronto é-nos servido - como a vingança, é um prato que se serve frio. Pelo meio inflamam-se as feridas e memórias da guerra civil (Bruce Dern é o velho e solitário confederado), o racismo e tanto o racismo (sobretudo para com os negros - sempre brilhante Samuel L. Jackson, dotado de um humor assaz corrosivo - e para com os mexicanos - papel que caiu que nem uma luva a Demián Bichir) e o resto é conversa de cowboys e bandidos, que se degladiam pela língua num torneio de esperteza. No final, Tarantino fará a sua justiça: sobreviverão os mais autênticos. Até lá, por mais que eles falem, nunca saberemos em quem confiar. Saberemos coisas sobre eles, verdades e mentiras, todas mais ou menos questionáveis, moralmente falando, mas até ao twist e ao desfecho nada mais conheceremos tão bem como a paranóia em que fomos lançados.

Desempenhos do mais alto nível num elenco de nomes e talentos sonantes, que o argumento tão criativamente potencia: Kurt Russell, Walton Goggins e a prata da casa - Tim Roth, a fazer de Christoph Waltz, e Michael Madsen. Destaque especial - por ser a única mulher entre o bando de homens e por nos oferecer uma performance totalmente fora-de-série - para Jennifer Jason Leigh. A sua Daisy Domergue é uma admirável e apaixonante mais-valia - pelo aspeto físico (nojento e repulsivo), pela graça (grotesca e inusitada) e pelo seu charme (doentio e inegável). O já habitual e irresistível cameo de Tarantino resume-se, desta vez e face ao reduzido cast, à voz, à breve narração na abertura do capítulo quatro e pouco mais adiante.

O prolífico e lendário Ennio Morricone, compositor dos emblemáticos westerns de Leone que Tarantino tanto idolatra como O Bom, O Mau e o Vilão e Aconteceu no Oeste (e de muitos dos mais emblemáticos filmes da História do Cinema tais como As Mil e Uma Noites de Pasolini, 1900 de Bertolucci, Dias do Paraíso de Malick, Os Intocáveis de De Palma ou Cinema Paraíso de Tornatore) assina a composição musical d'Os Oito Odiados, como o mesmo carisma imortal das suas obras de outrora. A Última Diligência para Red Rock é, em tudo, um tema absolutamente distinto e memorável. E na arte de Tarantino, esse nerd da pop culture, há sempre espaço para canções não originais, coladas com especial sentido de ocasião. Nunca Silent Night, por exemplo, tocada ao piano de forma tão amadora e persistente pelo barbudo mexicano, teve tamanho impacto na preparação das emoções, numa cena. A música, que se sobrepõe ao vento e à queda de neve - e até, se necessário, àquela maldita e inesquecível, estrondosa e tão pregada porta - cria tensão, aumenta o suspense e prende-nos aos acontecimentos. Dá gozo ao tempo.

O igualmente lendário Robert Richardson (d'O Aviador ou A Invenção de Hugo do não menos lendário Scorsese) alinha no devaneio nostálgico e desafiante de Tarantino e recupera as lentes das câmeras Ultra Pannavision de 70mm, que conheceram os seus tempos áureos - embora curtos - no final dos anos 50 e na década de 60. Saudemos, a propósito e de caminho, o ilustre e bem-aventurado Ben-Hur (1959), de William Wyler. Pois bem, desde essa época até ao seu ano de lançamento, Os Oito Odiados foi o único filme filmado e exibido no formato. No ano seguinte seguir-se-ia a continuação da saga Star Wars, no seu capítulo VII. E o mérito do revivalismo é todo deste filme, ainda que, na grande parte do seu tempo, não nos maravilhe com as amplas paisagens a céu aberto, antes com os ínfimos detalhes de interiores ou de planos mais aproximados. Os Oito Odiados é, pois, na relativa escala das coisas que nos é proposta, um surpreendente banquete, quando a narrativa ou os cenários, à partida, não pediriam tanta informação por frame. O resultado é deveras espetacular e enriquecedor, sobretudo num grande ecrã. Os nossos olhos sondam cada imagem, na busca incessante de uma pista que ajude a decifrar a trama. Neste sentido, o seu contributo para o efeito da narrativa no espectador é determinante. Para além de, naturalmente, valorizar o trabalho da direcção artística.

A violência gráfica tarda, mas não falta ao compromisso. Rasga, a dado ponto e plena de irreverência, quaisquer formalismos. Afinal, quantos realizadores conhecemos tão zelosos do seu estilo e tão fiéis a si próprios como Tarantino? Mais do que um realizador e realizador-argumentista (o que é decisivo), Tarantino é um autor, um artista. Nós que, tal como ele, alimentamos e vivemos do culto, nem precisamos de assistir a um trailer para querer ver um dos seus filmes. Basta um nome, o seu nome. Tarantino é sinónimo de arte, de excelência, de lenda viva. Tal como Leone, Morricone, Richardson ou Scorsese, ele pertence ao panteão. Os Oito Odiados é, por tudo isto, um proveitoso pedaço de cinema, um western singular e um dos seus melhores filmes. Não admira que o filme termine e apeteça repetir a dose.

Pensar que Tarantino chegou a desistir de concretizá-lo, quando viu o argumento exposto, inadvertidamente, na internet. Estamos perante um clássico instantâneo, senhores! Absolutamente magistral.

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

PULP FICTION (1994)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
★★★★★
Título Original: Pulp Fiction
Realização: Quentin Tarantino
Principais Actores: John Travolta, Samuel L. Jackson, Uma Thurman, Harvey Keitel, Bruce Willis, Tim Roth, Christopher Walken, Ving Rhames, Eric Stoltz, Maria de Medeiros, Quentin Tarantino, Steve Buscemi

Crítica:

GERAÇÃO VIOLÊNCIA

pulp /'pэlp/ n. 1. A soft, moist, shapeless mass of matter.
2. A magazine or book containing lurid subject matter and being characteristically printed on rough, unfinished paper.
in American Heritage Dictionary
New College Edition

What just happened was a fucking miracle! Não, não será essa a minha justificação, qual Jules Winnfield. What is significant is that I felt the touch of God. God got involved. Não, não houve intervenção divina. Mudei - drasticamente - de opinião, e tal se deve, essencialmente (1) à evolução natural da minha apreciação artística e (2) às condições e estado de espírito com que assisti, uma vez mais, à unânime e consagrada obra-prima de Quentin Tarantino. Vou ser frontal: tenho ainda as minhas dúvidas se estamos perante uma obra-prima. De qualquer das formas, deixo o assunto para a subjectividade de opiniões, habilitada e habituada a esse tipo de pertinências. Lá que estamos perante um filme brilhante e magistral, isso estamos - e dou a mão à palmatória.

All right, everybody be cool, this is a robbery! É assim que se interrompe o primeiro longo diálogo de Pulp Fiction. Any of you fucking pricks move, and I'll execute every motherfucking last one of ya! Na verdade, os diálogos - excepcionalmente bem construídos e desenvolvidos - exigem alguma predisposição e, no pior dos casos, alguma paciência. Tarantino adora acção mas adora igualmente atrasá-la, demorando-se nos textos, quebrando o ritmo e criando longos interregnos de conversa fiada e sem muita substância: fala-se de hamburgueres, de massagens nos pés, de piercings, de porcos e de anedotas sobre ketchup, do relógio do pai ou de eloquentes passagens da Bíblia...

The path of the righteous man is beset on all sides by the inequities of the selfish and the tyranny of evil men. Blessed is he who, in the name of charity and good will, shepherds the weak through the valley of the darkness. For he is truly his brother's keeper and the finder of lost children. And I will strike down upon thee with great vengeance and furious anger those who attempt to poison and destroy my brothers. And you will know I am the Lord when I lay my vengeance upon you.

São morosos exercícios de estilo e de retórica, plenos de non-sense ou de humor negro e quase sempre inconsequentes, a não ser para a construção da marca que Tarantino conseguiu impôr com a sua obra. Conclusão? Ou se gosta ou não se gosta.

A exigência linguística da obra começa, aliás, muito antes dos créditos iniciais: principia-se com as duas entradas à definição de pulp. Da primeira acepção atentemo-nos a shapeless mass of matter. Da segunda, a being characteristically printed on rough, unfinished paper. Estes dois excertos dão-nos conta das intenções do autor no que se refere àquilo que será o seu objecto artístico. Por um lado, um material sem forma (que não se inscreve, por isso, em nenhum género específico) e, por outro, algo propositadamente concebido num aspecto mal-acabado. Que é como quem diz, assumidamente, deliberadamente: vamos lá fazer algo único e de qualidade irrepreensível, mas sob aspecto duvidoso, a ver o que dizem os puristas sobre esta irreverente proposta artística.

Os créditos que se seguem, nomeadamente, apresentam-nos um genérico de filmes de segunda, onde se sobrepõem títulos e onde alternam, com ruidosas interferências, temas musicais pouco eruditos. Depois, seguem-se conversas banais, sem intelectualidade, entre personagens violentas ou consumidas pela droga. Tanto Pumpkin (Tim Roth) como Honey Bunny (Amanda Plummer) planeiam, no seu amadorismo, um assalto ao restaurante. Jules Winnfield (Samuel L. Jackson) e Vicent Vega (John Travolta), de penteados ridículos e risíveis e quais Men in Black, são gangsters profissionais. Butch Collidge (Bruce Willis) é pugilista, felizmente careca e com um visual mais básico. Mia Wallace (Uma Thurman) é uma adicta do pó, à beira da overdose. Entre a miscelânea musical e a sequência de episódios, temporalmente desarrumados e em mosaico organizados, há ainda lugar para soluções meta-diegéticas que dissipam, de uma vez por todas, qualquer noção de mimesis: Don't be a *square*.

A cena do bar, entre Vincent e Mia (inspirada em Bando à Parte, de Jean-Luc Godard), é absolutamente memorável. A dança, que virou um ícone máximo do cinema, e aquelas inspiradas passagens que a antecedem...

Mia: Don't you hate that?
Vincent: What?
Mia: Uncomfortable silences. Why do we feel it's necessary to yak about bullshit in order to be comfortable?
Vincent: I don't know. That's a good question.
Mia: That's when you know you've found somebody special. When you can just shut the fuck up for a minute and comfortably enjoy the silence.

O universo que Pulp Fiction revisita todo aquele cenário, mais do que batido, em que o cinema norte-americano decorre, uma e outra vez: o universo de violência gratuita, que marcou e influenciou toda uma geração. A violência de Pulp Fiction é, por sua vez, magnificamente estilizada e depreende uma reflexão sobre todo esse cinema, sobre toda essa violência gratuita que alimenta as massas de espectadores. Note-se que as únicas personagens violentas do filme que escapam à morte são aquelas que se redimem e se reformam. Todas as outras são dizimadas ou abatidas a tiro.

Enfim... originalidade em estado puro na arte de recontar, reciclar, recriar. Grande exercício dramatúrgico, grande montagem, grandes performances, grande filme.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

SACANAS SEM LEI (2009)

PONTUAÇÃO: EXCELENTE
★★★★★
Título Original: Inglourious Basterds
Realização
: Quentin Tarantino

Principais Actores: Brad Pitt, Christoph Waltz, Eli Roth, Michael Fassbender, Diane Kruger, Daniel Brühl, Til Schweiger, Mélanie Laurent

Crítica:

A OBRA-PRIMA

I think this might just be my masterpiece.

Tentem imaginar uma mente genial e excêntrica que, no auge da sua arte de reinvenção, arrisca uma mistura explosiva. Pois bem, é assim que nasce Sacanas Sem Lei. E a criativa origem não poderia ter outro nome se não Quentin Tarantino... o seu cinema tem um cunho singular, tão irreverente quanto autêntico. E aqui, mais do que, num plano absolutamente ficcional, ousar reescrever a História (dando um final porventura merecido a uma das mais hediondas criaturas que habitou esta Europa), o seu cinema atinge a maturidade e concretiza a ambição da obra de arte completa, sendo que há uma perfeita coesão de estilos, registos e géneros que nunca se torna ridícula, apesar do non-sense.

A narrativa é estruturada em cinco capítulos. A efabulação é desde logo invocada pelo Once upon a time. Once upon a time in Nazi-occupied France onde judeus se escondem, quais ratazanas, aterrorizados pelo extermínio. A cena inicial é das melhores cenas de abertura de todos os tempos. Em termos artísticos é, simplesmente, qualquer coisa de... transcendente. E de absoluto detalhe. A paisagem impõe-se e lembra-nos a ambiência do western: no alto de uma colina campestre, mais um dia de esperança. Uma casa, várias árvores. O gado vagueia pelo verde pasto. Um agricultor corta a lenha a machado, uma mulher estende a roupa ao vento. Poderíamos estar no oeste americano. Porém, detrás dos brancos lençóis não se descobrem cavaleiros empoeirados, justiceiros ou malfeitores. Vislumbra-se um carro e duas motas. Soldados alemães. Nazis. Mortinhos pela desratização.

O primeiro capítulo marca o extraordinário grau de qualidade que se perpetuará por toda a obra: cenas longas, diálogos inteligentes, irónicos e mordazes, interpretações de luxo (o sádico e engenhoso Coronel Hans Landa, magistralmente interpretado por Christoph Waltz, é uma criação memorável!), uma mise-en-scène criteriosa e um trabalho de fotografia deslumbrante (Robert Richardson), assim como uma montagem em tudo brilhante, a marcar o compasso e o ritmo da obra. Tarantino serve-se tanto do texto como da sua inspirada e sublime arte de filmar para construir momentos de alta tensão e de verdadeiro terror psicológico, aqui e ali atenuados por eficazes e hilariantes comic reliefs. Recordo, por exemplo, quando no auge da sua assustadora retórica, Hans Landa retira do bolso um cachimbo de um tamanho descomunal - creio que é impossível não libertar uma gargalhada, nesse preciso instante, descomprimindo assim do intenso acumular do suspense que até ali imperava.

Brad Pitt é o tenente Aldo Raine, caricatura do americano e líder dos Sacanas. A missão da sua tropa? We're gonna be doin' one thing and one thing only... killin' Nazis. O escalpe dessas bestas alemãs é o seu objectivo primeiro. Ainda que dados ao discurso, à sátira e ao ludo linguístico - ou não fossem eles personagens tarantinescas (e Tarantino, por sua vez, um dos grandes artistas da palavra) -, os Sacanas servem a retaliação a sangue frio, numa violência brutal e explícita; mas nunca gratuita, sempre estilizada. Alguma da encenação que antecede a corporal punição sobre os nazis tem mesmo direito a Morricone, convocando os bons velhos tempos de Leone e d'O Bom, O Mau e O Vilão. Tarantino aliás, e como sempre, conflui estéticas e invoca as mais variadas referências na elaboração do pastiche. O próprio filme de 2ª Guerra Mundial, enquanto género, é aqui desconstruído, reinterpretado e reconstruído. O resultado é algo completamente novo, genuíno e único.

Poder-se-á dizer que o tema de Sacanas Sem Lei é a vingança. Num nível metadiegético, é claro que a efabulação tarantinesca representa a vingança da Arte sobre a História. Dentro da diegese, Shosanna Dreyfus (Mélanie Laurent, numa virtuosa performance) empreende um plano maquiavélico para acabar de uma vez com Hitler, Landa e os seus súbditos leais e assim vingar o raticídio que lhe dizimou a família e do qual escapou, por um triz. As cenas em Paris concentram um sem fim de mise en abymes de elevadíssimo potencial semântico. A começar pelo cinema que a judia terá herdado dos tios Mimieux. É no cinema que se desencadeia a vingança, estabelecendo um paralelo com os espectadores, que assistem ao filme: o ecrã em chamas é o ecrã dentro do ecrã. E a metragem Stolz der Nation é o filme (de 2ª Grande Guerra) dentro do filme (de 2ª Grande Guerra), ambos com Daniel Brühl como actor.

A imprevisibilidade da narrativa é uma das características mais notáveis do filme. Nunca sabemos bem o que pode acontecer. Ou melhor, o que vai acontecer. Porque sabemos que tudo pode acontecer. A cena do bar, em que uma conversa se arrasta por mais de vinte e tal minutos e depois, num ápice, se resolve numa chuva de tiros fatais é a prova disso. Há um momento, ainda antes disso, em que o ecrã se divide em dois e somos surpreendidos por um narrador desconhecido, que nos dá conta do quão inflamável pode ser uma película cinematográfica. Depois há metáforas incríveis e insólitas. Aquela massagem no pé só para rematar com looks like the shoe's on the other foot é qualquer coisa... Percebe-se, com tudo isto, que Sacanas Sem Lei é muito mais do que entretenimento sofisticado. É uma criação de amor, de puro amor à arte e a uma estética que dialoga consigo própria.

Um clássico instantâneo. A masterpiece, indeed.

domingo, 31 de maio de 2009

KILL BILL: A VINGANÇA: Vol.2 (2004)

Título Original: Kill Bill: Vol. 2
Realização: Quentin Tarantino
Principais Actores: Uma Thurman, Daryl Hannah, Michael Madsen, David Carradine, Gordon Liu (Chia Hui Liu), Michael Parks, Perla Haney-Jardine

Por favor, consulte a nova crítica em: »AQUI«

sexta-feira, 29 de maio de 2009

SIN CITY - A CIDADE DO PECADO (2005)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
Título Original: Sin City
Realização: Frank Miller, Robert Rodriguez e Quentin Tarantino (convidado especial)
Principais Actores: Bruce Willis, Mickey Rourke, Clive Owen, Jessica Alba, Rosario Dawson, Jamie King, Brittany Murphy, Benicio Del Toro, Nick Stahl, Elijah Wood, Michael Clarke Duncan
Crítica:

OS GUARDIÕES DA NOITE

Em Sin City, os quadradinhos de Frank Miller tornam-se frames. O assustador e repugnante mundo da Cidade do Pecado ganha vida naquela que é, sem dúvida, uma das mais estilizadas, violentas e viscerais experiências a que podemos assistir. Nem sempre partilhei desta opinião; na verdade, creio que o estrondoso e inacreditável visual alcançado - de tão extraordinário - me ofuscou e cegou na primeira visualização. Há mais para além das visionárias e deslumbrantes imagens, aperfeiçoadas entre um preto e branco imaculado e a manipulação cromática, há mais para além da ousadia e ambição técnica.

Há três histórias: cruzam-se The Hard Goodbye, The Big Fat Kill e That Yellow Bastard. Cada uma tem os seus protagonistas, mas o ecrã é ganho pelas carismáticas performances de Mickey Rourke (Marv) e de Bruce Willis (Hartigan). Também Benício Del Toro se destaca pelo seu desempenho, notável, entre um elenco de estrelas. Em comum, têm as histórias e as personagens a defesa das mulheres e a cidade da amoralidade, do crime e da corrupção, das putas e dos psicopatas, dos brutamontes e dos heróis (que só o são por uma questão de ponto de vista, narrativo; não passam, afinal, todos de vilões). Não há Bem nem confiança (nem réstia de esperança, há muito perdida), só noite e sangue e morte. Power comes from lying e a sobrevivência é tudo o que ficou.

A acção é explosiva, esteticamente surpreendente e estimulante, resolvendo as tensões do noir ao virar da esquina. O som, a música, pactuam com a irreverente e vertiginosa viagem ao fantástico. O argumento, repleto de humor negro e de narrações memoráveis, sustenta e fundamenta a aparente superficialidade visual, permitindo o trabalho dos actores. Numa só cena, num só filme, confluem-se os estilos inconfundíveis de Miller e Rodriguez. É obra. Sin City - dizem-no e dou-lhes razão - inaugurou um novo e refinado estilo na adaptação de graphic novels ao grande ecrã. Há todo um recente cânone que perpetua o seu estilo e linguagem... Veja-se 300 ou Watchmen. Mas não só. Veja-se, por exemplo, o épico Imortais.

sexta-feira, 22 de maio de 2009

KILL BILL - A VINGANÇA (2003, 2004)

PONTUAÇÃO: EXCELENTE
★★★★★
Título Original: Kill Bill
Realização: Quentin Tarantino
Principais Actores: Uma Thurman, Lucy Liu, Vivica A. Fox, Daryl Hannah, David Carradine, Michael Madsen, Julie Dreyfus, Sonny Chiba, Michael Parks, Chiaki Kuriyama

Crítica:

[Sobre o Volume I]

A VINGANÇA SERVE-SE FRIA

Quentin Tarantino concebeu, com perfeição, um filme original, energicamente sublime, misto de registos e referências e tela de grande confluência estética. Uma obra-prima suportada pela magnífica interpretação de Uma Thurman e restante elenco, pela cinematografia primorosa de Robert Richardson e por momentos musicais únicos.

Ao longo do filme, somos assombrados por cenas que jamais esqueceremos, de uma brutalidade crua e derradeiramente estética, ora com humor (por exemplo, a luta inicial entre a Noiva e Vernita Green) ora com verdadeira comoção (por exemplo, a cena em animé). E não posso deixar de destacar outras cenas brilhantes, de magistral orquestração, tais como as das sucessivas lutas finais entre a protagonista, O-Ren e respectivo gangue. Banho de sangue, mas banquete do mais fresco e refrescante cinema. O argumento constitui um exercício de muito boa escrita, criteriosamente estruturado e preenchido com os mais eloquentes diálogos. O filme revela ainda consciência ficcional, sendo objecto de si próprio e de manipulação estética (por exemplo: os sons que censuram a prenunciação do nome Beatrix ou a pronta sinalização do algarismo "2", falha voluntária que legenda o separador que introduz o capítulo primeiro).

Em suma: um título absolutamente essencial para todos os amantes maiores da arte do cinema.

[Em breve, constará nesta ficha uma nova crítica, que dirá respeito ao filme por inteiro, aos dois volumes lançados individualmente]


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CINEROAD ©2020 de Roberto Simões