Realização: Martin Scorsese
Principais Actores: Andrew Garfield, Adam Driver, Issei Ogata, Yôsuke Kubozuka, Liam Neeson, Ciarán Hinds, Tadanobu Asano, Shinya Tsukamoto, Yoshi Oida
Crítica:
Mountains and rivers can be moved
but men's nature cannot be moved.
but men's nature cannot be moved.
Onde está Deus, no fim do mundo? Esta é a questão que o sofrido padre Rodrigues de Andrew Garfield encontrará, vezes sem conta, no seu mais profundo íntimo. Movido pela sua fé supostamente inabalável, cega e inquestionável, incube-se de uma missão que o distanciará do seu ocidente e o mergulhará num Japão de lama e nevoeiro, onde a inquisição persegue e tortura cristãos e professores da fé até à morte. O motivo é encontrar o desaparecido padre Ferreira (Liam Neeson) e continuar o sequioso plano de evangelização da Igreja Católica. Acompanha-o o colega Garupe (Adam Driver), mas depressa cairá no isolamento e na dúvida. Até que ponto pode a semente do cristianismo plantar a sua verdade no ventre de uma cultura tão distinta, com um imaginário tão mais humano e tão menos divino?
Até que ponto vale a pena rezar em segredo, na sombra do medo, condenando a existência a uma natureza fantasmagórica? Acreditam os aldeões, verdadeiramente, na palavra de Deus e nas suas representações, ou na palavra dos padres como Rodrigues e nas representações mais aproximadas que o seu imaginário permite? Acreditarão, os que proferem e os que ouvem, efectivamente e com exactidão, nas mesmas coisas? Onde está Deus, no fim do mundo, quando se sacrificam vidas e famílias em nome d'Ele? Para que serve o martírio? Garantirá ele o acesso livre ao paraíso? Valerá o paraíso desconhecido mais do que a existência terrestre, a do dia-a-dia? Poderá definir-se um cristão como aquele que, tão-somente, recusa pisar uma imagem ou cuspir na cruz, quando da apostasia resulta a sobrevivência dos que ama? Porque significa a fé dor e sofrimento e não bem-estar e jubilo? Negar é uma fraqueza ou uma força? A fé em Deus, tornando-nos dele dependentes, é em si mesma uma coisa positiva? Uma vantagem numa vida repleta de agruras e obstáculos? No olhar e nas lágrimas de Garfield espelham-se todas estas interrogações, todas estas dúvidas, num crescendo que se intensifica tão imperioso quanto o silêncio de Deus perante os acontecimentos. Poderá o jovem escutar no silêncio a voz divina e obter uma resposta?
Mais do que uma meditação, Scorsese concretiza um abalo na consciência do crente, adaptando o romance homónimo de Shusaku Endo, naquele que é, seguramente, o seu mais fervoroso ensaio religioso desde a excelência de Kundun. Julgo, inclusive, que as duas obras estabelecem, até determinado ponto, um interessante e estimulante debate e diálogo, acerca de duas perspectivas da fé propostas pelo cristianismo e pelo budismo. Silêncio é, todo ele, uma viagem delicada mas absolutamente densa e imersiva, que desafia, a todo o instante, os limites da fé e que se densifica cada vez mais pela ausência total de música. São os sons da natureza e as vozes dos homens que chegam ao ouvido de quem assiste ao longo dos 160 minutos de exibição. O espectador, perante este quadro, ou se desinteressa e se alheia completamente da história e do filme (o que é fácil de acontecer àquele menos paciente ou treinado) ou se entrega inteiramente no abraço narrativo, porventura perdendo-se quais protagonistas entre aquilo que considerava certo e toda uma nova ou renovada discussão suscitada pelos mais variados suplícios e horríveis provações. A cena da tortura das ondas, contra os crucifixos de carne e osso, é por demais emblemática, a propósito. Até onde vai o fanatismo de uns e o de outros e até que ponto valem a pena? Não será a dita verdade universal um veneno perigoso e letal num mundo assumidamente plural? Porquê a necessidade da conquista, da supremacia, da imposição? Quando os mundos colidem, há um rio de deuses e um oceano de verdades. A verdade... a verdade... a verdade é que o mundo é um só e é de todos. Como podemos conviver, então? Impondo? Ajoelhando? Em última análise, qual a necessidade da fé e o seu contributo em todo o processo? Para crentes ou não crentes, creio, Silêncio é um cântico de urgente pertinência.
O elenco é inteiramente extraordinário, dos nomes já mencionados ao suculento e hilariante inquisidor Inoue de Issei Ogata e ao eterno judas de Yôsuke Kubozuka, tão pronto a pecar e por isso mesmo tão humano. A fotografia de Rodrigo Prieto pinta-nos telas de inebriante beleza, em enquadramentos estudados. Às vezes, a violência gráfica é inevitável e o seu impacto acautelado. Dante Ferretti incorpora a viagem no tempo, por meio das suas verosímeis construções, entre a paisagem húmida e verdejante. E Thelma Schoonmaker demora-nos num ritmo pausado e meditativo, por um sempre brilhante trabalho de montagem. Scorsese despe-se de si próprio (de eventuais trejeitos ou imagens de marca, de esperados jogos de câmera) e encontra, meticulosamente, o melhor movimento, a melhor perspectiva e a melhor influência para contar a sua história. Mas quando é que assim não foi? As suas maiores imagens de marca são a qualidade, a sobriedade e a consistência. Silêncio é, pois, mais um Scorsese em plena forma e mestria. E isto é dizer tanto, sobre um dos maiores cineastas vivos.
Our Buddha is a being which man can become. Something greater than himself, if he can overcome all his illusions. But you cling to your illusions and call them faith.
Intérprete
Até que ponto vale a pena rezar em segredo, na sombra do medo, condenando a existência a uma natureza fantasmagórica? Acreditam os aldeões, verdadeiramente, na palavra de Deus e nas suas representações, ou na palavra dos padres como Rodrigues e nas representações mais aproximadas que o seu imaginário permite? Acreditarão, os que proferem e os que ouvem, efectivamente e com exactidão, nas mesmas coisas? Onde está Deus, no fim do mundo, quando se sacrificam vidas e famílias em nome d'Ele? Para que serve o martírio? Garantirá ele o acesso livre ao paraíso? Valerá o paraíso desconhecido mais do que a existência terrestre, a do dia-a-dia? Poderá definir-se um cristão como aquele que, tão-somente, recusa pisar uma imagem ou cuspir na cruz, quando da apostasia resulta a sobrevivência dos que ama? Porque significa a fé dor e sofrimento e não bem-estar e jubilo? Negar é uma fraqueza ou uma força? A fé em Deus, tornando-nos dele dependentes, é em si mesma uma coisa positiva? Uma vantagem numa vida repleta de agruras e obstáculos? No olhar e nas lágrimas de Garfield espelham-se todas estas interrogações, todas estas dúvidas, num crescendo que se intensifica tão imperioso quanto o silêncio de Deus perante os acontecimentos. Poderá o jovem escutar no silêncio a voz divina e obter uma resposta?
Mais do que uma meditação, Scorsese concretiza um abalo na consciência do crente, adaptando o romance homónimo de Shusaku Endo, naquele que é, seguramente, o seu mais fervoroso ensaio religioso desde a excelência de Kundun. Julgo, inclusive, que as duas obras estabelecem, até determinado ponto, um interessante e estimulante debate e diálogo, acerca de duas perspectivas da fé propostas pelo cristianismo e pelo budismo. Silêncio é, todo ele, uma viagem delicada mas absolutamente densa e imersiva, que desafia, a todo o instante, os limites da fé e que se densifica cada vez mais pela ausência total de música. São os sons da natureza e as vozes dos homens que chegam ao ouvido de quem assiste ao longo dos 160 minutos de exibição. O espectador, perante este quadro, ou se desinteressa e se alheia completamente da história e do filme (o que é fácil de acontecer àquele menos paciente ou treinado) ou se entrega inteiramente no abraço narrativo, porventura perdendo-se quais protagonistas entre aquilo que considerava certo e toda uma nova ou renovada discussão suscitada pelos mais variados suplícios e horríveis provações. A cena da tortura das ondas, contra os crucifixos de carne e osso, é por demais emblemática, a propósito. Até onde vai o fanatismo de uns e o de outros e até que ponto valem a pena? Não será a dita verdade universal um veneno perigoso e letal num mundo assumidamente plural? Porquê a necessidade da conquista, da supremacia, da imposição? Quando os mundos colidem, há um rio de deuses e um oceano de verdades. A verdade... a verdade... a verdade é que o mundo é um só e é de todos. Como podemos conviver, então? Impondo? Ajoelhando? Em última análise, qual a necessidade da fé e o seu contributo em todo o processo? Para crentes ou não crentes, creio, Silêncio é um cântico de urgente pertinência.
O elenco é inteiramente extraordinário, dos nomes já mencionados ao suculento e hilariante inquisidor Inoue de Issei Ogata e ao eterno judas de Yôsuke Kubozuka, tão pronto a pecar e por isso mesmo tão humano. A fotografia de Rodrigo Prieto pinta-nos telas de inebriante beleza, em enquadramentos estudados. Às vezes, a violência gráfica é inevitável e o seu impacto acautelado. Dante Ferretti incorpora a viagem no tempo, por meio das suas verosímeis construções, entre a paisagem húmida e verdejante. E Thelma Schoonmaker demora-nos num ritmo pausado e meditativo, por um sempre brilhante trabalho de montagem. Scorsese despe-se de si próprio (de eventuais trejeitos ou imagens de marca, de esperados jogos de câmera) e encontra, meticulosamente, o melhor movimento, a melhor perspectiva e a melhor influência para contar a sua história. Mas quando é que assim não foi? As suas maiores imagens de marca são a qualidade, a sobriedade e a consistência. Silêncio é, pois, mais um Scorsese em plena forma e mestria. E isto é dizer tanto, sobre um dos maiores cineastas vivos.