quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

A PAIXÃO DE CRISTO (2004)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
★★★★★
Título Original: The Passion of the Christ
Realização: Mel Gibson

Principais Actores: Jim Caviezel, Maia Morgenstern, Monica Bellucci, Rosalinda Celentano, Sergio Rubini, Ivano Marescotti, Hristo Jivkov, Hristo Naumov Shopov, Mattia Sbragia

À minha avó.

Crítica: 

O SACRIFÍCIO E A CRUCIFICAÇÃO

Perdoa-lhes, Pai. Eles não sabem o que fazem.

A Paixão de Cristo é, até à data, o filme mais polémico - e o mais violento - de que tenho memória. Aquando da sua estreia, na Páscoa de 2004, revelou-se um autêntico fenómeno mundial, não tanto pelos seus méritos artísticos, mas sobretudo por tudo aquilo que, religiosamente, representava e representa. Guardo a minha experiência pessoal da altura, já então alheia a qualquer fé religiosa: a Igreja Católica recomendava a visualização do filme a cada missa, faziam-se excursões às salas de projeção para que os mais acérrimos ou influenciados crentes, muitos deles totalmente indiferentes à sétima arte, assistissem à badalada obra do católico Mel Gibson. Contavam-se as histórias de fulano e beltrano, um que se havia desfeito em lágrimas, outro que havia cerrado os olhos por incontáveis vezes ou ainda outro que, simplesmente, havia abandonado a sala por não suportar mais tanta paixão. Lembro-me de, um ou dois anos mais tarde, rever o filme em casa com a minha avó, em DVD, e ela, que sempre criticou a violência e o horror de muitos dos filmes que via, lá assistia ao filme devotamente, como se ao assistir ao filme se redimisse de eventuais pecados, se sentisse mais protegida ou estivesse mais próxima de Deus. A religião movimenta multidões e encerra, definitivamente, muitos mistérios.

Polémicas à parte, a minha principal perspetiva em relação ao filme é, como não podia deixar de ser, a artística, ainda que seja impossível (e também desnecessário) ocultar ou ignorar a dimensão religiosa do filme. Afinal, é e
sempre será um filme sobre religião, assim como os há sobre política, sociologia, sexualidade, etc. Roger Ebert disse: It is a film about an idea. An idea that it is necessary to fully comprehend the Passion, if Christianity is to make any sense*. E não há como não concordar.

Ei-lo retornado, Mel Gibson, nove anos depois do magistral Braveheart - O Desafio do Guerreiro, que tão intensamente realizou e protagonizou, e que logo se tornaria um clássico incontestável. Se já então a violência emanava dos quadros do épico, com um penoso final para o mártir William Wallace e para os espetadores, imagine-se o que aconteceria com o Jesus Cristo do cineasta. Para financiar e viabilizar a produção, Gibson correu sérios riscos, entre os quais investir o dinheiro do seu próprio bolso. O argumento (do próprio e de Benedict Fitzgerald), a partir de vários dos evangelhos do Novo Testamento (S. João, S. Mateus, S. Lucas e S. Marcos), dos diários da profética freira Anne Catherine Emmerich (1774-1824) e de uma interpretação muito pessoal de toda uma herança religiosa e cultural, propõe o retrato das últimas doze horas da vida de Cristo. Da traição de Judas ao aprisionamento do messias, do julgamento de Caifás e dos sacerdotes às mãos lavadas de Pôncio Pilatos e da sangrenta tortura aos demorados passos para a crucificação... a versão de Mel Gibson é absolutamente visceral, chocante e revoltante. Nunca Cristo nos foi tão real, nunca sentimos a sua dor tão na alma e quase na pele, como nesta triunfal e nunca dantes vista Paixão de Cristo, que se diferencia claramente do tom de todas as versões bíblicas anteriormente filmadas.

Elevados valores artísticos e de produção garantem a sublimidade: note-se o realismo, imponência e sofisticação dos cenários e decoração (Francesco Frigeri, Pierfranco Luscrì, Daniela Pareschi, Nazzareno Piana, Carlo Gervasi) e as texturas e os detalhes do guarda-roupa (Maurizio Millenotti), que conferem autenticidade à viagem no tempo, para não falar dessa proeza que é conceber o argumento totalmente falado em hebraico, latim mas mormente em aramaico (a língua morta que os argumentistas trazem à vida, ainda antes de ressuscitar Jesus). O idioma falado, quando ouvido, quase que envolve a obra numa aura mística. Que mais autenticidade poderíamos desejar, de um retrato histórico? Há autenticidade no sangue, que jorra ou verte da carne viva, dilacerada pelos chicotes, pregos ou demais flagelos. A extraordinária caracterização (Keith VanderLaan, Christien Tinsley) é o trunfo determinante para o realismo da crueldade, necessariamente gore, que se esbate e esventra sobre a fragilidade daquele corpo submisso.
O excesso de violência física que se vê e sente em A Paixão de Cristo é a estética e a grande protagonista. Mas, como disse, estética, estilo. Não esqueçamos por isso a violência psicológica que daí advém, tão angustiante e marcante, capaz de provocar alguma indisposição aos espetadores mais sensíveis.

Caleb Deschanel transcende-se enquanto pintor virtuoso e cria arte em movimento, a cada frame. A cor e luz são magnificamente trabalhadas, como por inspiração divina. Que fotografia belíssima.
A poderosa banda sonora de John Debney acompanha iluminadas passagens, comovendo-nos a cada movimento de câmera, a cada olhar das personagens. Jim Caviezel, pleno de dor e carisma, transfigura-se pela voz e pela expressão corporal, tanto quanto a caracterização que o seu corpo sofreu, exaustivamente, durante horas de rodagem. A cada flashback, fortalecem-se as motivações das personagens e o nosso entendimento delas. Maia Morgenstern é uma Maria tão humana na sua consternação, intensidade e contenção; brilhante desempenho da atriz. A perspetiva do sofrimento maternal, às tantas introduzida, atribui uma maior profundidade ao quadro final da Pietà, qual fresco de Carracci, ainda para mais porque Maria termina por desafiar-nos a fixá-la nos olhos e a partilhar do seu desgosto. Monica Belluci é, por tanto e tão pouco, uma memorável Maria Madalena, assim como os restantes secundários (que personificam os odiosos judeus, aqui culpados pela condenação, e os brutais romanos que servem o propósito a fim de evitar inevitáveis motins. Ainda que seja esta a generalidade, a história dá lugar a bons e maus nos dois pratos da balança). Devo ainda salientar a arrepiante e andrógina Rosalinda Celentano como Satanás... Gibson não abdica do lado mais bizarro e sobrenatural, de ferozes criaturas que rosnam na escuridão ou de sorridentes crianças diabólicas que assombram o espetador ou a consciência de Judas e denunciam o Mal entre os Homens, durante o calvário.

Enfim, se ainda dúvidas houvesse, aqui fica mais um sólido testemunho do magistral artista e cineasta que é Mel Gibson, aqui numa tomada independente e por demais convicta. Pena que assine tão poucos filmes enquanto realizador. A cena da crucificação, em toda a sua encenação, é absolutamente brilhante. Aquele derradeiro plongée das alturas, qual olhar de Deus, que se converte na primeira gota da tempestade, qual lágrima sagrada, é, convenhamos... um pequeno grande toque de génio. A Paixão de Cristo pode não ser uma obra de fácil digestão, mas é arte em estado puro; estejamos nós disponíveis para senti-la e admirá-la. A religião, como a arte, é um acto de fé e raramente a devoção a ambas coincidiu tão profundamente.

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(*) Cf. http://www.rogerebert.com/reviews/the-passion-of-the-christ-2004

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

TRÓIA (2004)

PONTUAÇÃO: RAZOÁVEL
Título Original: Troy
Realização: Wolfgang Petersen
Principais Actores: Brad Pitt, Eric Bana, Orlando Bloom, Sean Bean, Rose Byrne, Diane Kruger, Brian Cox, Brendan Gleeson, Peter O`Toole, Julie Christie, Saffron Burrows, Garrett Hedlund

Versão do Realizador

Crítica:

A GUERRA PELA IMORTALIDADE

This war will never be forgotten, nor will the heroes who fight in it.
Odisseu

Na Director's Cut, Wolfgang Petersen intensifica o fulgor da batalha - o confronto torna-se muito mais violento e sangrento: há muito mais sangue a jorrar, mutilações, violações, enforcamentos, etc. - e há mais tempo para aprofundar a sua visão sobre a cultura e a cidade - os cenários são imponentes e impressionantes, Tróia resplandece mais bonita do que nunca. As alterações no emprego da banda sonora de James Horner conferem maior seriedade aos momentos dramáticos e àqueloutros em que a acção é por demais vibrante e empolgante - se há coisa em que o épico de Petersen brilha é nas sequências de acção -, ainda que deixe saudade a canção final Remember, pela voz de Josh Groban, aqui radicalmente eliminada do desfecho. Os trinta minutos adicionais sustentam melhor o retrato e a robustez da história e a sua construção, ainda que as cenas cruciais já lá estivessem desde a versão lançada nos cinemas em 2004. Tróia torna-se, assim e por tudo isto, um melhor filme do que a versão inicial. O que não quer dizer, necessariamente, que ascenda à qualidade de um bom filme. Aliás, apesar de lhe reconhecer as melhorias, acabo por atribuir a mesma classificação a ambas as versões. A ambição e megalomania do realizador são claras - há CGI a perder de vista, como se houvesse a necessidade de superação em relação a outros épicos, de fazer ainda maior - o que não deixa de ser constrangedor porque se há guerra que o filme não ganha é a da imortalidade.

Os valores seguros:
- a componente artística (cenários, adereços, figurinos, penteados, caracterização), a fotografia de Roger Pratt (embora preferisse enquadramentos e composições de planos mais ricos e interessantes, eventualmente uma melhor e mais intensa exploração da paleta de cores);
- a banda sonora de James Horner (bastante criticada, considerada exagerada ou inadequada a muitas situações e momentos narrativos, questão a que Petersen atendeu na Versão do Realizador, claramente em acordo. Há que salientar que a Warner Brothers recusou anteriormente a banda sonora de Gabriel Yared, que o compositor concebeu durante um ano, por considerá-la antiquada e fora de moda. Petersen usou excertos dessa banda sonora ao finalizar esta sua versão, assim como excertos de bandas sonoras de outros filmes como Planeta dos Macacos, Soldados do Universo ou O Conde de Monte Cristo);
- a destreza do cineasta para filmar cenas de luta (excepcionalmente coreografadas, note-se a título de exemplo esse notável duelo entre Aquiles e Heitor, pleno de suspense e sem recurso a duplos);
- a estrela Brad Pitt e alguns nomes sonantes entre o elenco secundário, célebres no género, como Peter O'Toole, Sean Bean, Brian Cox ou Brendan Gleeson.

Gostaríamos que o filme fosse abençoado pelos deuses, alheio a calcanhares de Aquiles, já para não pedirmos uma adaptação minimamente digna do poema sagrado da literatura que é a Ilíada de Homero. Apesar de tudo o que tem de bom, não é propriamente o que acontece em Tróia. Falemos, então, das falhas ou dos aspectos menos positivos.

Comecemos por um descuro técnico que, considerando os grandes estúdios em causa, o grande orçamento e o ano de produção do filme, me parece indesculpável: refiro-me aos escabrosos efeitos especiais, especificamente aqueles que, sobre o mar, comprometem a credibilidade exigida (ainda para mais quando a visão evita os eventos mitológicos a bem da autenticidade). Mas a algum espectador terá sido indiferente o facto de mil barcos sobre o Egeu parecerem tão falsos, tão artificiais e tão feitos a computador, comprometendo o arranque da história? Falemos pois da história, precisamente, porque o maior calcanhar desprotegido é esse. Nem vou falar da má adaptação à epopeia homérica, porque sabemos das liberdades criativas que determinaram que os deuses ficassem confinados ao Olimpo e se retratasse uma guerra de homens. E não de dez anos, porque as grandes massas que pagariam um blockbuster destas proporções nas bilheteiras de todo o mundo não o compreenderiam; afinal, passe a ironia, só teriam capacidade para atribuir a lógica ao acolhimento de um enorme cavalo de madeira portões adentro, no interior do qual se escondem gregos brutais, aguçados pelo engenho de Ulisses. Tróia não adapta, inspira-se livremente, portanto.

Já acima elogiei a construção narrativa, pelo que não cairei em contradição, ao criticar o argumento pelos diálogos, que limitarão os actores na modelação de personagens. Faltam mormente personagens, a Tróia. Personagens bem dimensionadas. Vejamos Menelau e Agamémnon, desempenhados por extraordinários actores (Gleeson e Fox), mas que se vêem confinados ao overacting, à grandiloquência bacoca das suas declamações, de personagens maniqueístas, sem especial complexidade dramática, que não existem nem poderiam existir, sem diálogos que as tornassem reais. Se o guião faz com que actores como estes falhem, imagine-se o que acontece com actores menores ou menos experientes como Orlando Bloom (por mais cobarde que seja o jovem príncipe troiano, o Páris de Bloom é de uma inexpressividade tal capaz de envergonhar todo o produto), Diane Kruger (reduzida à sua beleza, o que é imcompreensível dado o seu papel narrativo) ou Rose Byrne (irritante porque só geme, a coitadinha). Mesmo Eric Bana, já com outra maturidade e talento, só nalgumas cenas consegue escapar à retórica da sua personagem e ao boneco. Apenas Peter O'Toole, a lenda de Lawrence da Arábia, igualmente imerso em retórica (alguma dela teatral, que lhe é tão característica) consegue transmitir-nos alguma verdade; só o seu olhar, consumido pela tragédia, consegue espelhá-la realmente.

I've fought many wars in my time. Some I've fought for land, some for power, some for glory. I suppose fighting for love makes more sense than all the rest. 
Príamo

As motivações para a guerra são efectivamente muito diferentes: Menelau luta pela restituição da honra, o irmão por sede de poder, Páris (a medo) por amor, Príamo decididamente por amor (aos filhos e à pátria) e gregos e troianos lutam porque... pois, não sabemos, o povo aqui não tem perspectiva, mas depreendemos que por dever moral e pela defesa dos seus, como sempre acontece nestas circunstâncias. Os mirmidões lutam por Aquiles e Aquiles luta pela imortalidade. Crente no presságio da mãe Tétis, Aquiles supera-se a si próprio não por ouro, não por reis ou por amor, somente para que o seu nome seja lembrado depois da sua morte, para sempre, enquanto os Homens tiverem memória. Aquiles é o herói: bonito, influente e poderoso, mas não tanto o tradicional herói porque não luta em defesa de outrém. Na sua tempestuosa independência, luta pela fama, para proveito próprio. É, porventura, o mais individualista e egoísta dos heróis, longe dos ideais cristãos. Neste aspeto, Tróia de Petersen respeita os ideais da antiguidade clássica. Brad Pitt é sempre uma escolha acertada e tem um grande desempenho; tinha papel para isso. Curioso que Pitt tenha abandonado The Fountain para protagonizar este épico, cedendo o lugar a Hugh Jackman.

Tróia foi um colossal sucesso de bilheteiras, mas não é um épico tão memorável e sobretudo credível quanto isso. Chega a ser, a espaços, ridículo. Vale, no entanto, pela acção, pela estruturação dos actos narrativos e por variadíssimos méritos artísticos que compõem a totalidade dos quadros.

domingo, 26 de janeiro de 2014

MÁQUINA ZERO (2005)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
Título Original: Jarhead
Realização: Sam Mendes

Principais Actores: Jake Gyllenhaal, Peter Sarsgaard, Laz Alonso, Brian Geraghty, Jamie Foxx, Skyler Stone, Wade Williams, Katherine Randolph, Chris Cooper, Lucas Black, Dennis Haysbert

Crítica:

NASCIDOS PARA... MATAR?

Welcome to The Suck.

Depois da magistral passagem pelo filme de gangsters com o virtuoso Caminho Para Perdição, eis que Sam Mendes se estreia no género guerra, regressando à sátira que tão bem trabalhou no aclamado e premiado Beleza Americana. William Broyles Jr. (o mesmo de O Náufrago) adapta a autobiografia do fuzileiro Anthony Swofford, sobre a sua frustrante experiência na guerra do Golfo, e o humor negro, por demais corrosivo, assume desde logo a ação, ridicularizando e criticando os excessos e os vazios da operação americana pelo abrasador deserto da Arábia Saudita, no início da década de 90. Pela eloquente narração de Jake Gyllenhaal - genuinamente intenso no seu papel - conhecemos a desconcertante perspetiva e apercebemo-nos do seu desencanto. Eis a auto-reflexão e o exame de consciência, a masturbação metafórica, que permitirá, quem sabe, a catarse.

O filme abre na recruta e em absoluta homenagem à primeira parte de Nascido Para Matar, de Kubrick. Muito antes de oferecer o corpo às balas, na linha da frente das estratégias do sistema político, integrar o serviço militar significa submeter-se à obediência cega dos superiores e à humilhação de superiores ou iguais, sem qualquer questionamento. Alheio a ideologias prévias ou a sensibilidades maiores, o processo de converter um jovem cidadão numa brutal máquina de guerra resulta de um certo estímulo da idiotice. Haverá outra forma de classificar a oratória e a linguagem, a praxe, os catigos e as punições, a autoridade excessiva, a privação da liberdade, a extinção da individualidade, da privacidade, da sexualidade, das relações sociais no meio original de cada um, onde petencem a alguém ou a algum lado? Onde constroem afetos e onde, sem refletirem sobre isso porque é um dado adquirido, têm identidade própria? As forças militares, pela necessidade que têm em desumanizar de alguma forma os seus filhos/produtos por forma a prepará-los para a defesa de um país, para o confronto e para a temível morte, podem condená-los a uma experiência, senão derradeira, profundamente traumática. Ser tropa é submeter-se a uma preparação tal que podemos chamar-lhe, ao processo, lavagem cerebral.

Chamam-lhes Jarhead, Cabeças de Jarro, por causa do penteado e porque têm que ter, realmente, a mente vazia como um jarro para suportarem o desconhecido que, nos piores casos, os espera... Swofford encheu-se de areia, descobrimos num pesadelo. Pobres coitados, aqueles cuja memória ainda invoca o conforto de outros tempos, e que se lamentam ou que choram por medo, por arrependimento ou por saudades. Só mortos não sentirão qualquer dor, naturalmente. Terão a dor de ficar doentes ou feridos ou enlouquecidos ou... como será aqui o caso, desesperadamente à espera de nada - bem que anseiam por disparar, mas esperam e esperam, os dias tornam-se semanas e meses e nada. Bem que imaginaram a refrega a rebentar ao som de Wagner, com negros e furiosos helicópteros a rasgar os céus com balas e destruição, como no genial Apocalypse Now de Coppola a que assistem com uma excitação tão infantil quanto animal antes de partirem para o deserto. Enfim, como se a guerra fosse cenário para heróis. Estavam tão longe de imaginar que o Golfo seria para eles um exercício de perfeita desilusão e inutilidade, de tédio elevado ao cubo, a que se poderia também chamar perda de tempo e de existência. Swofford certamente que lhe chamaria... masturbação. Sorte a deles, ou acabariam, se não pior, como aquele veterano que lhes entra pelo autocarro do regresso a casa.

O argumento - da narração aos diálogos e à sua construção - é dotado de assaz inteligência, perspicácia e irreverência. É brilhante, pois claro. Funciona como um murro no estômago, tal é a exploração do absurdo que o real mais parece, na maior parte do tempo, surreal. Edifica-se assim um filme que é de guerra sem o ser realmente - o que poderá desafiar a sua catalogação (não que isso seja importante) e ter defraudado as expetativas de muitos espetadores (que também não será o muito importante; cada filme é o que é). Como em qualquer grande filme de guerra, o elenco secundário confere autenticidade ao retrato, como é o caso especial de Jamie Fox e Peter Sarsgaard. A banda sonora - da original de Thomas Newman às canções sempre tão cool - ajudam à crítica ou à paródia, neste caso último como que gozando constantemente com tudo e todos. Os movimentos de câmera são sublimes na captação de toda a reportagem, preponderantes para a criação da tensão até ao limbo dos poços em chamas, e os enquadramentos da portentosa fotografia de Roger Deakins (assim como cada jogo de luzes e cores) atribuem à obra uma beleza e um esplendor para lá de arrebatadores. Raramente os quadros de um filme de guerra (ou passado no deserto) terão sido visualmente tão deslumbrantes e cheios de estilo como em Máquina Zero.

Um projeto arriscado, mas que por mérito artístico se consagra absolutamente vitorioso.

sábado, 25 de janeiro de 2014

O MÁGICO (2010)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
Título Original: L'Illusionniste
Realização: Sylvain Chomet

Filme de Animação

Crítica:

ADEUS, ILUSIONISTA

Decorre o ano de 1959, o tempo dos ilusionistas acabou. Os mágicos não existem, acaba o velho por revelar no final do filme, expondo o segredo que alimentou o fascínio, o imaginário e naturalmente a ingenuidade da graciosa Alice, a pobre jovem que
apadrinhou e conquistou (conquistou sem qualquer conotação amorosa; O Mágico não é filme para conotações desse tipo) numa das suas crepusculares viagens pela província escocesa.

Alice é mais uma solitária, como que abandonada no mundo, como o artista do espectáculo Tatischeff, ou o palhaço ou o ventríloquo, seus colegas de palco. Contudo, são solidões diferentes. A solidão de Tati - chamemo-lo Tati, pois não é se não Tati a ganhar vida novamente, magistralmente em todos os seus maneirismos de outrora, agora na forma de desenho animado -, a solidão de Tati não é tão-somente a solidão da velhice, é a solidão que adveio da chegada da modernidade - tema aliás central na filmografia de Tati. Chegaram os artistas pop que enchem os teatros e as salas de espetáculo, chegou a televisão e os automóveis onde tudo é automático. O fascínio do público pelos truques de magia, que se repetiram vezes sem conta de artista em artista, desapareceu com o vento, a chuva e o tempo. Note-se que o mágico só arrebata um caloroso aplauso num pub da província, a mesma onde conhece a jovem Alice. O palhaço tenta o suicídio, com a corda ao pescoço, e entrega-se ao álcool qual ventríloquo, que vende o seu boneco - companheiro de uma vida - e acaba na miséria. Chega inclusivé o tempo de Tati abandonar o seu coelho branco, gordo e malvado mas também companheiro, que antes temeu provar num prato de sopa quente, à natureza. O idade de ouro destes artistas, o tempo dos aplausos, está no passado, agora somente na memória ou na falta dela. A situação é cómica, por isso, quando Tati entra num teatro chamado Cameo e assiste a uma breve sequência do brilhante O Meu Tio, do próprio Jacques Tati, que satiriza, como sabemos, a chegada da modernidade e troça do automatismos quanto baste (aquela fonte em forma de peixe, no jardim, é por demais icónica).
Mise en abyme.

Sylvain Chomet volta à técnica e ao esplendor da animação do seu aclamado Belleville Rendez-Vous e concretiza o argumento original que o próprio Tati escreveu e nunca chegou a filmar. Enquanto espectadores, sentimo-nos muitas vezes a assistir a um filme do autor de Playtime - Vida Moderna: pelo protagonista e pela sua pantomima, pela ausência de diálogos simplesmente porque não são necessários, pela simplicidade das cenas e da mensagem. A visão de Chomet é enternecedora e, se não for trágica, transporta no seu olhar ondas de pura tristeza. A música do próprio perpetua essa melancolia, ao mesmo compasso com que a encenação nos encanta, com que cada luz se acende ou se apaga.

Alice é solitária porque desconhecemos se tem família, mas também porque é uma eterna descontente com a sua condição. Primeiro sonha com uns sapatos vermelhos, depois com um sobretudo chique e um vestido da moda. Por ser jovem, tem tempo para se adaptar à geração do consumo, só não tem dinheiro. Tati desenvolve especial afeição para com a rapariga, uma espécie de paternalismo, talvez como resposta ao maravilhamento da miúda perante cada ilusão. Ela acredita na magia, ao ponto do velho lhe oferecer os sapatos, juntar dinheiro para o sobretudo ou fazer um biscate para lhe pagar o vestido azul ou uns novos sapatos de salto alto. Por pura bondade. Ela, na sua ingenuidade, acredita que os presentes lhe aparecem por magia, mas desconhece o esforço do velho para lhe satisfazer os desejos. A magia do dinheiro é truque que o homem, na sua honestidade, não conhece. Ficando na moda, Alice sente-se integrada, arranja um namorado que a beija na esquina de uma Edimburgo belíssima e põe fim à solidão. Sem magia, perceberá que os sonhos se conseguem pelo trabalho e pela dedicação.

Com uma aura de outros tempos, O Mágico é um filme absolutamente encantador que encontra, na sua singularidade, uma saudosa e cinéfila homenagem, que as presentes gerações deverão sempre prezar e admirar. Sendo um filme de animação, é ainda curiosa a facilidade com que nos esquecemos disso, até que ponto interiorizamos a sua sentida representação da realidade. Há uma qualquer verdade que emana das suas imagens, compreendidas entre o paradoxo que se estabelece entre o título e a desilusão que a história, efetivamente, trata.

ALICE JÁ NÃO MORA AQUI (1974)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
Título Original: Alice Doesn't Live Here Anymore
Realização: Martin Scorsese
Principais Actores: Ellen Burstyn, Kris Kristofferson, Alfred Lutter, Diane Ladd, Mia Bendixsen, Valerie Curtin, Billy Green Bush

Crítica:

ALICE NO PAÍS DELA PRÓPRIA

Tommy: Life is short.
Alice:
Yeah, well, so are you.

Os homens são umas bestas, pobre Alice. Imediatamente antes de Taxi Driver, de 76 - tantos anos antes do feminismo de Thelma e Louise, de Ridley Scott - já a mulher andava no seu carro, de cidade em cidade, rumo à descoberta dela própria ou, pelo menos, do seu caminho para a felicidade através da liberdade/libertação. Muito nova, Alice deixou o emprego e o sonho de ser cantora para casar com Donald (Billy Green Bush), um camionista violento e dominador que se revelou tudo menos o marido ideal. Submissa, condenou a sua individualidade aos dedicados papéis de esposa e de dona de casa. Nascido Tommy (Alfred Lutter), o verdadeiro homem da sua vida, extremou-se enquanto mãe e para lá do desejável ou não se tornasse o miúdo num fala-barato pouco-educado, sempre com a resposta na ponta da língua, para tudo e todos. Felizmente, morre-lhe o marido, de um dia para o outro e, de um dia para o outro, a vida de Alice enche-se de possibilidades. Alice é Ellen Burstyn, dos pés às cabeça, num papel memorável e verdadeiramente extraordinário.

O sonho de voltar às cantorias afigura-se então como a única saída profissional, capaz de os sustentar aos dois, mãe e filho. Alice faz-se à estrada, planeando voltar à Monterey da sua infância e juventude, onde trabalhou sem a dependência de um homem, onde se lembra ter sido alguém por si própria. Para isso é preciso ganhar dinheiro, trabalhar aqui e ali, mas são repetidas as portas que se fecham. O escape da viúva Alice e as suas dificuldades espelham as dificuldades e os desejos das mulheres da sua geração. Eis que conhece o charmoso Ben de Harvey Keitel, pelo qual se interessa, mas o bonitão revela-se mais um bruto pedaço de existência, capaz de apontar a faca a qualquer discussão (e tem outra mulher, ou outras). Os homens são umas bestas, pobre Alice, mas não sabe viver sem eles. Alice precisa de um homem a seu lado, para que se sinta norteada ou protegida, como desabafará mais tarde à obscena Flo de Diane Ladd, na casa de banho azul de um restaurante onde servem à mesa, naquela que será provavelmente a sequência mais cómica do filme (se bem que o bom humor é coisa que pontua o todo). O caos instala-se no serviço de mesa, enquanto as duas empregadas fazem um intervalo porque lhes apetece. Será nesse restaurante que conhecerá um barbudo sereno e com muito bom ar (Kris Kristofferson), dono de um rancho e tocador de guitarra, que lhe acelerá os batimentos do coração. Um homem capaz de ser o pai de que Tommy precisa, que lhe diga não, que lhe dê um tabefe no momento mais oportuno, que o forme para o respeito e para as adversidades da vida; educação que, é claro, Alice não está a conseguir (mantém com o filho uma relação de iguais, sem especial autoridade, como se o miúdo fosse um adulto e não precisasse de estruturação. Alice não tem consciência da sua falha, ser mãe e pai não é fácil e esforça-se para que não falte nada ao pequeno). Engraçado encontrar Jodie Foster em criança, tão maria-rapaz, a desencaminhar Tommy para a rebeldia e para os princípios da delinquência.

Que género tem Alice Já Não Mora Aqui? É drama, melodrama, comédia e paródia, chega a ser road movie. Scorsese, sempre muito inspirado e dinâmico no movimento da câmera (a liberdade dos vários travellings fala por si), às vezes trémulo, toca vários registos. O argumento de Robert Getchell permite-o. A imagem é propositadamente imperfeita, há quase um tom experimental na filmagem e nos enquadramentos, próprios de um cineasta que, qual Alice, também procura o seu caminho. É um filme muito sui generis, que emana alguma espécie magnetismo. É um filme a recordar, sem esforço.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

O PATRIOTA (2000)

PONTUAÇÃO: BOM
Título Original: The Patriot
Realização: Roland Emmerich
Principais Actores: Mel Gibson, Heath Ledger, Joely Richardson, Jason Isaacs, Chris Cooper, Tcheky Karyo, Rene Auberjonois, Tom Wilkinson, Lisa Brenner, Donal Logue

Versão do Realizador

Crítica:

FANTASMAS NA BRUMA

I have long feared that my sins would return to visit me,
and the cost is more than I can bear.

O Patriota é uma típica grande produção de Hollywood: é, primeiro que tudo, realizado por Roland Emmerich - para muitos críticos o texto poderia acabar aqui, fundamentos não bastassem, e atribuir-se-ia ao filme a pior nota -, o homem por detrás do sucesso tremendo que foi O Dia da Independência (ou pelo irresistível pedaço de ficção científica que é Stargate). Curiosamente, distancia-se aqui do seu explosivo percurso para assinar um drama histórico, de maior contenção mas sem jamais esquecer o fulgor do entretenimento nos comic reliefs, nas sequências de ação e de suspense e nas outras tantas que, entre estudadas coreografias, emocionam ou revoltam o espetador, motivando os protagonistas para a vingança. O argumento, dotado de grande fôlego romântico, é da autoria de Robert Rodat, o mesmo de O Resgate do Soldado Ryan, que prima, alguns anacronismos à parte, por uma tremenda e notável economia narrativa, excecionalmente construída e doseada ao longo dos seus demorados porém nunca cansativos três atos. À parte também alguma previsibilidade, ou não obedecesse a construção às eficazes regras da cartilha, às fórmulas testadas pelos grandes estúdios e não raras as vezes tão bem recebidas pelas audiências. Considerando o monumental orçamento, há pois que eliminar os riscos do fracasso.

O filme é encabeçado por mais um valor seguro: Mel Gibson, nos mesmos contornos heróicos (e quase tão violentos como os) do glorioso Braveheart - O Desafio do Guerreiro, de alguns anos antes. O seu Benjamin Martin resulta de um acting fabuloso, de machado em punho ou de bandeira ao alto. Nos gestos, expressões e olhares de Gibson encontramos refletida toda a profundidade e complexidade da personagem, a dor e as angústias daquele pai levado a encorajar as milícias contra os canhões, mosquetes e baionetas dos Casacas Vermelhas, plenos de maniqueísmo, quais fantasmas na bruma na luta pela justiça e pela liberdade da nação. O inimigo é de certo modo caricaturado (detetamos o exagero) nas performances de Tom Wilkinson e do monstruoso e sádico Jason Isaacs. Depois, temos Heath Ledger, a jovem estrela ainda em ascenção, capaz de assegurar as bilheteiras do público mais jovem.

Note-se o requinte dos seus valores de produção - do design à conceção dos cenários e artefactos (Kirk M. Petruccelli, Barry Chusid), aos figurinos (Deborah Lynn Scott), ao cuidado na caracterização e penteados. O polimento estético, que tão seriamente eleva a componente visual, estende-se naturalmente à deslumbrante composição das pinturas (nas cores, luzes e enquadramentos) de um grande diretor de fotografia, Caleb Deschanel, ou na criação musical de um não menos lendário compositor, John Williams.

O modelo de Hollywood não traz aqui especial inovação, a pompa e circunstância enraivece os mais sedentos por rasgos de genialidade ou de autoria, de narrativas que não caiam recorrentemente em lugares comuns. O Patriota fá-lo e pode ser por isso um mau filme, para muitos. Para mim, os valores seguros - que mal há na segurança? - trazem-me beleza (ainda que o maquilhado enfeite de Natal a que se refere Mark Cousins no documentário da moda entre cinéfilos The Story of Film) e emoção. É prazeroso assistir-se aos méritos seguros de um filme como este, porque a sua qualidade fala por si, ainda que num filme assinado por Roland Emmerich que, preconceitos à parte, concebe um bom filme, com momentos francamente dignos de nota. Não é uma rigorosa lição de história, o que também irrita alguns críticos de cinema, menos permissivos em relação às liberdades criativas da ficção. É um filme norte-americano, o que por si só enlouquece outros tantos. Finalmente há um punhado ou exército deles que não gosta do filme e que fundamenta a sua posição com conhecimento. A palavra desses já vale a pena ler e compreender, concordemos ou não, porque afinal como em princípio não gostamos todos dos mesmos filmes pelas mesmas razões.


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CINEROAD ©2020 de Roberto Simões