Prepare-se para ser enfeitiçado. Desengane-se se pensa que
O Castelo Andante é um filme para crianças. É, absolutamente, para as crianças que já fomos e para os adultos que, mais ou menos envelhecidos, ainda somos e ainda seremos enquanto os nossos olhos conseguirem enxergar a beleza. As aparências iludem e o filme não é o que parece. Parte numa direcção e revela-se noutra. É todo ele sobre as aparências - nele tudo se disfarça, tudo se transfigura, tudo se transforma. Daí o risco de assistir a'
O Castelo Andante munido de preconceitos ou expectativas. É que o que o mestre Hayao Myiazaki desta vez propõe é bem mais complexo e menos evidente do que seria de esperar, mesmo até para quem se maravilhou com os meandros surreais e fantásticos de
A Viagem de Chihiro.
Desde o primeiro momento, a orquestração musical de Joe Hisaishi e Yumi Kimura, na sua sonante excelência, envolve-nos, abraça-nos e emociona-nos. O esplendor visual de
O Castelo Andante inebria-nos a cada instante: o seu desenho, pintura e expressão em movimento atingem uma sublimidade inquestionável,
naquele que é, provavelmente, o expoente máximo do requinte imagético na filmografia do cineasta. A música, aliada à imagem, têm um poder imenso num filme como este. Nada que não esperássemos já de um filme de Myiazaki - só que se por um lado
O Castelo Andante nos atrai e maravilha os sentidos, num golpe de asa, por outro estimula-nos o intelecto como nenhum outro filme seu até então.
Sophie trabalha numa chapelaria e transforma o aspecto das pessoas. Quando é enfeitiçada pela Bruxa do Nada, ganha a aparência de uma velha curvada e rugosa. Howl, o feiticeiro sem coração, é refém da aparência - o aspecto para ele é tudo e ornamenta-se com imensos acessórios. Os seus aposentos revelarão o quão obcecado e maníaco é por jóias e objectos e bens materiais. Markl, a criança do castelo que praticamente metaforiza a essência infantil (ainda existente) de Howl, mascara-se de anão barbudo para receber os seus clientes. Calcifer, hilariante demónio de fogo, tem uma natureza secreta que só mais tarde descobriremos. O espantalho cabeça-de-nabo é muito mais do que um guia saltitão e inexpressivo. Até a Bruxa do Nada é muito mais do que uma malvada egoísta - a magia tornou-a um monstro e, assim que fica sem poderes, a sua exuberância derrete e revela a sua verdade. A Bruxa do Nada representa tudo aquilo em que Howl se poderá tornar se se deixar consumir completamente pela magia. Até o castelo, essa parafernália e amálgama de ferro, madeira, casas e fumos, com pernas de galinha e língua e olhos à semelhança dos Homens, é um agente em constante mutação, espelhando o estado do seu senhor. Calcifer é o coração daquela edificação ambulante e simultaneamente - literalmente - o coração de Howl. A magia é antiga e resultou numa maldição. Howl refugia-se do mundo num castelo andante capaz de desaparecer nas nuvens e na distância. Reza o mito que o feiticeiro anda de terra em terra a conquistar os corações de jovens raparigas, mas Howl foge é de si mesmo. Cada vez que se arranja, escapa. Não podemos julgá-lo por se refugiar no superficial - afinal, na essência, não tem coração.
Beleza
vs. feiura, juventude
vs. velhice... Note-se como Sophie - quando dorme, sonha, se mostra apaixonada ou genuinamente se aceita como é - quebra parcialmente o feitiço, tornando à beleza da juventude, como se também ela fosse uma bruxa e tivesse poderes (na verdade, no livro de Diana Wynne Jones no qual Myiazaki se baseia, a protagonista é efectivamente uma feiticeira). Não obstante - e também aí reside muito da beleza da proposta - as personagens cedem ao amor e apaixonam-se verdadeiramente por aquilo que são, não por aquilo que aparentam. Sobre qualquer magia ou maldição, o amor... essa misteriosa força capaz vencer qualquer batalha, qualquer guerra. Sophie personifica o amor e é pelo amor que consegue falar ao coração de Howl, Calcifer, e interferir tão eficaz e surpreendentemente na trajectória do gigante castelo e no rumo da história.
Ao seu terceiro castelo (Cagliostro era uma fortaleza medieval, bem enraizada na terra, e Laputa um lendário paraíso flutuante - cf.
O Castelo no Céu), Myiazaki encontra o equilíbrio entre os prados verdejantes e os céus e também, mais do que nunca, maior liberdade narrativa. Este seu castelo tem, entre muitas outras, uma porta mágica que abre para locais diferentes. Até para um tempo diferente. É possível, pois, num simples abrir de porta, mudar o espaço e o tempo. Alterando, com tão aparente facilidade, as coordenadas essenciais para a compreensão da acção, não admira que, numa primeira visualização,
O Castelo Andante pareça um filme por demais difícil, confuso e intrincado, ou até mesmo narrativamente mal gerido e desconexo. A respeito, escrevi num comentário de 2008:
no fim, um argumento um tanto ou quanto mais complexo do que à partida se esperava; o que nos deixa com a sensação de que ou não percebemos a história ou a história em si mesma não se percebeu. Mas
O Castelo Andante não é, seguramente, um filme para se assistir uma só vez e, garanto-vos, não se esgotará tão simplesmente numa segunda investida. A cada visualização, é como se abríssemos também nós uma porta para um novo lugar, para uma nova descoberta, para um novo entendimento. A narrativa escapa à linearidade como se de um sonho se tratasse e é fácil perdermo-nos, se não nos guiarmos pelos tantos símbolos e subtilezas. Por isso resulta tão bizarro e cativante.
E como é bom sonhar acordado...