segunda-feira, 27 de março de 2017

MACBETH (2015)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
★★★★ 
Título Original: Macbeth
Realização: Justin Kurzel
Principais Actores: Michael Fassbender, Marion Cotillard, David Thewlis, Paddy Considine, Sean Harris, Jack Reynor, David Hayman, Elizabeth Debicki, Daniel Westwood, Ross Anderson, Maurice Roëves, Barrie Martin, Hilton McRae, Scott Dymond, Seylan Baxter, Lynn Kennedy

Crítica:

TRONO DE SANGUE 

 What's done cannot be undone. 

2015 foi, definitivamente, um ano de grande colheita: O Renascido de Alejandro G. Iñárritu, Mad Max - Estrada da Fúria de Frank Miller, O Abraço da Serpente de Ciro Guerra e Os Oito Odiados de Quentin Tarantino constam, obrigatoriamente, na lista dos melhores filmes do ano. Não obstante, a vitalidade desta apaixonante arte manifestou-se ainda - e de forma inequívoca - noutros tantos títulos, entre os quais aquele que é, seguramente, um dos mais belos, poéticos e hipnóticos pedaços de cinema do ano: Macbeth, de Justin Kurzel, a partir da tragédia imortal de William Shakespeare.

I. A PALAVRA

A peça é seiscentista. No século XX, de Orson Wells a Akira Kurosawa e a Roman Polanski, vários foram os cineastas que ousaram filmar a poética shakespeariana - e esta peça em particular -, cientes dos detractores mais ou menos fanáticos e absolutamente assegurados, como se Shakespeare fosse infilmável ou tão divino que todas as tentativas de transpô-lo para o grande ecrã fossem indignas ou estivessem, logo à partida, amaldiçoadas. Devo assumir, como homem de letras que sou, a minha total admiração, devoção e reverência ao mestre, poeta e dramaturgo inglês. Efectivamente, considero-o sagrado - o que não quer dizer, contudo, que o meu fel se desfaça, pestilento, num azedume cego e, de certo modo, cliché, a cada vez que se toca na sua inigualável obra; pelo contrário. Declamá-lo com sangue fresco, pulsante veia artística e acalorada paixão é tudo o que mais posso desejar. A arte vive através dos tempos, precisamente, pela memória e pela influência.

Em pleno século XXI, Macbeth de Kurzel preserva a essência e a erudição das palavras originais, ao mesmo tempo que se supera em poesia visual, sempre com apurado bom gosto. O que é perceptível aos olhos deslumbra e extasia, com aparente facilidade, os espectadores de primeira viagem, mas quando confrontados com a palavra, uma determinada barreira impõe-se-lhes. Para os menos acostumados ao lirismo poético e a toda a sua riqueza, a obra assombra-se impenetrável e quase inacessível, dada a exigência no entendimento e na desmistificação do estilo: da inversão sintática aos jogos do verbo, da tão sonante musicalidade do que é proferido à poderosíssima imagética do que é, entre as recorrentes metáforas e comparações, tantas vezes sugerido. Porque ao assistirmos a Macbeth desfrutamos de uma experiência cinematográfica, teatral e, em última ou primeira instância, literária, vale a pena revê-lo e relê-lo tantas vezes quantas necessárias, atentos à transversalidade da palavra, até que finalmente se quebre o gelo e até que verdadeiramente se sintam - entre o nevoeiro, o fumo ou o entardecer, ou o carregado e em tudo extraordinário desempenho dos actores - o lado negro da alma, a visceral intensidade de Shakespeare e a beleza que há em tudo isso.

Nesta devastadora guerra do trono, como na poesia, a palavra é a espada: saber da sua arte revelar-se-á imprescindível para alcançar qualquer triunfo interpretativo. Curioso que, na língua inglesa, estabilizadas as evoluções gráficas e fonéticas, a espada (sword) tenha a palavra (word) lá dentro.

II. A REPRESENTAÇÃO

A palavra é escrita e é percepcionada por nós, espectadores, mas não sem antes ser dita. Os actores são os intermediários da história e as personagens vivem neles antes de viverem em nós. Macbeth é a história (e o nome) de um guerreiro bem sucedido, cuja lâmina desbravou lealdade para com o rei Duncan. Quando uma profecia o anuncia como futuro rei, o homem torna-se cego e transforma-se. Tomando as rédeas do fado, não fosse este mentir, principia a hamartia: cumpre o regicídio, elimina todas as eventuais ameaças e apunhala quem tiver que apunhalar, sem coração, sem culpa, em nome da ambição e do poder. Inclusive os seus homens e amigos mais próximos. Enquanto ascende ao trono e ao status, a sua alma é assolada por alucinações, como se ainda sobrassem resquícios de consciência ou de humanidade, e a descida aos infernos principia, rumo à solidão e à morte. Michael Fassbender é Macbeth, em toda a sua insensibilidade e monstruosidade. A sua performance é, a maior parte do tempo, de um underacting silencioso e contido, mas de uma irascibilidade repentina sempre que o descontrolo o surpreende. E de uma frieza inacreditável quando deveria chorar a perda.

Full, full of scorpions, is my mind.

Se a predição lhe envenena o espírito e lhe seca o coração, o que dizer da pretensiosa acção de Lady Macbeth (Marion Cotillard). A esposa, invocadora de espíritos malignos, não é senão uma ávida  e sedutora serpente, a segredar-lhe constantemente ao ouvido e a tentá-lo para o pior caminho. A sua voracidade só estancará quando o marido não mais a consultar e, totalmente febril, praticar os crimes mais terríveis e hediondos, como queimar vivas crianças e descendências inteiras. Aí Lady Macbeth, já rainha, aperceber-se-á de que já foi longe de mais. Colocar-se-á no lugar da mulher de Macduff ou do próprio - também ela sabe o que é perder um filho, gerado do próprio ventre - e ver-se-á reflectida. O desempenho de Cotillard é completamente sideral. O seu olhar, as lágrimas que verte... dizem tudo sobre a sua dor interior, que tão arduamente lhe implora por silêncio e paz.

O elenco secundário está igualmente magnífico nos seus papéis: David Thewlis é o desditoso Duncan, monarca atraiçoado. Paddy Considine é o malogrado Banquo: lesser than Macbeth and greater. Not so happy yet much happier. Thou shalt get kings though thou be none. E Sean Harris é o desventurado Macduff, cujo ajuste de contas com o protagonista culminará no renhido combate corpo-a-corpo do último acto, onde só uma interpretação errónea do presságio poderá justificar a reviravolta.

A companhia entrega nas suas vozes as mais sentidas declamações. A sua música confunde-se com os arranjos espectrais de Jed Kurzel (irmão do realizador), cujas cordas clamam, tremem e se arrastam demoradamente, como que perpetuando e espelhando o sofrimento das personagens.


III. A IMAGEM


O provérbio é atribuído a Confúcio e diz: uma imagem vale mais do que mil palavras. A máxima popular explica, em grande parte, o retumbante sucesso do cinema enquanto arte de contar histórias, em comparação, por exemplo, ao modesto êxito literário ou mesmo teatral dos dias correntes. No entanto, um filme como Macbeth desafia, necessariamente, tal sabedoria. Sendo que à palavra já me dediquei no primeiro capítulo, focar-me-ei, agora e ainda que por palavras, na imagem.

Na construção de cada frame, o que Kurzel e o progidioso director de fotografia Adam Arkapaw tentam alcançar é a dimensão etérea, sublime e derradeiramente poética dos solilóquios, diálogos ou versos de Shakespeare. Para que a imagem esteja à altura da palavra. Por isso, Macbeth é um banquete visual absolutamente espantoso e magnetizante. Certos quadros, nos quais as personagens se fundem, por via do enquadramento e da iluminação, nos elementos naturais, tornando-se figuras abstractas numa tela de cores intensas, perdurarão na nossa memória muito para além da primeira visualização do filme. Desde a abertura, Macbeth é de um deslumbramento contínuo e impõe-se, por força das imagens, como um filme iminentemente atmosférico e reflexivo: das virgens e recônditas paisagens da Escócia, de esplendor inebriante, aos mais épicos planos de batalha, meticulosamente entrecortados pela montagem de Chris Dickens entre o slow ou o fast motion e o choque das forças rivais em tempo real. O efeito de tais recursos assombra-nos como um fantasma ou como um pesadelo. O confronto é violento, sangrento mas impressionantemente belo. E a chama profundamente estilizada jamais se extingue: nomeadamente na aparição das Irmãs Fatídicas entre os campos e a bruma (infectando a fé cristã com as crendices pagãs), nas sofridas preces de Lady Mcbeth (atormentada por insuperáveis traumas) na capela da vila, ou mesmo o decisivo duelo, já referido, entre Macbeth e Macduff (onde a saturação cromática conduz a um clímax quase operático). A noite, a noite é escura e cheia de terrores, como diria a bruxa de outra guerra de tronos, por isso a fase do dia por excelência para pintar o pano de fundo das mais importantes cenas da tragédia é o entardecer, com os seus tons alaranjados e escarlate. Macbeth não é senão um filme crepuscular: o sol cede o seu lugar às trevas e o seu calor à fria noite, assim como Macbeth, outrora honesto e respeitado, cede a razão à loucura e a sua integridade à tirania, à desgraça e à obscuridade. As imagens anunciam a morte, em crescendo. Escasseia a luz: imperam os tons azulados, gélidos como cristais, sempre que é dia e não há sol. A aurora é como um novo ocaso e o laranja, no plano final, dá mesmo lugar ao vermelho. Vermelho-sangue. O destino está consumado.

Tomorrow and tomorrow and tomorrow... creeps in this petty pace from day to day to the last syllable of recorded time. And all our yesterdays have lighted fools the way to dusty death.

A ambição transborda no olhar dos actores, a vingança cozinha-se nos interiores mas é no campo aberto, encoberto pela neblina ou pelas cores da paleta, que o destino amplamente se concretiza, conferindo à trama um fôlego denso mas refrescante, sinistro mas simultaneamente delirante e onírico. Se as imagens também são uma forma linguagem, que linguagem transcendente é a de Macbeth! Que trabalho de fotografia - sob todos os primas - incrível, ousado e singular.

Conclusão

Não sei que artista será Kurzel; não tenho dons adivinhatórios. Ainda não assisti a Assassin's Creed, mas receio o pior, não só porque não me pareceu interessante por aí além, como me pasma a transição radical de uma obra tão erudita quanto Macbeth para uma tão aparentemente comercial quanto essa outra. Não que não haja bom cinema comercial; não me interpretem mal, sei bem o que é ser incompreendido pelo gosto demasiado eclético. Mas há apostas comerciais de alguns realizadores talentosos que roçam a vergonha - por exemplo: o homem que fez The Fall também realizou, em seguida, uma banalidade chamada Immortals. Isto para dizer que, independentemente do curso que os cineastas tomarem, e dos filmes menores que estrearem em seguida, importa valorizar devidamente os filmes significantes que nos deixaram. Macbeth é sem dúvida um desses filmes, virtuosíssimo, que ou virará cult ou continuará alienado da maioria dos espectadores, sendo que o mais provável é que lhe aconteça ambas as coisas; é certo que não foi concebido para a maioria dos espectadores. Não tenho dons adivinhatórios, relembro, mas tento e dito-lhe esta sorte.

sábado, 25 de março de 2017

O LIVRO DA SELVA (2016)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
★★★★ 
Título Original: The Jungle Book
Realização: Jon Favreau
Actor Principal: Neel Sethi
Vozes: Bill Murray, Ben Kingsley, Idris Elba, Christopher Walken, Scarlett Johansson, Lupita Nyong'o, Giancarlo Esposito, Brighton Rose, Garry Shandling, Sam Raimi, Jon Favreau

Crítica:

AS AVENTURAS DE MOGLI 

They want to send you to the man-village? 
You can be a man right here!

Superar a versão original e animada de 1967, cuja crítica poderão consultar aqui, não era propriamente uma tarefa de outro mundo. Concretizar a versão live action, à partida, também não, dado que jamais teríamos, propriamente, uma versão live action. Mogli seria uma personagem de carne-e-osso, graças à performance mais ou menos arrancada de um miúdo engraçadote, e tudo o resto seria de criação digital. Sabendo nós das maravilhas do digital por estes dias - haja talento e dinheiro - dificilmente nos espantaríamos com o resultado obtido. Teríamos o miúdo a contracenar com o ecrã verde e um sem fim de artifícios que tornariam o mais recente filme da Disney em pouco mais do que, novamente, uma animação. E é claro... mais um golpe comercial, puro e simples. Acontece que... as boas surpresas acontecem.

Nesta nova versão d'O Livro da Selva houve dinheiro, houve talento... e uma admirável visão artística. Primeiro que tudo, Neel Sethi foi um achado genuinamente milagroso. O rapazinho tem graça e carisma e foi, claramente, magistralmente dirigido. Depois, os efeitos digitais (equipa de Robert Legato) são tão reais que não se exibem, a todo instante, gritando: hey, reparem, cá vão os efeitos digitais! Não somos inovadores? Não somos os maiores? Nada disso, é como se já tivéssemos ultrapassado essa fase histórica. Aqui o imaginário computadorizado dá-se por garantido e como real e abstraimo-nos do artifício, concentrando-nos na história. Para todos os efeitos, estamos, efeitivamente, na selva; passe o trocadilho. Quando nos maravilhamos com a inebriante beleza da paisagem, é pensando na paisagem, não que ela é simulada. Isto raramente acontecia, por exemplo, em Avatar. Pensamos no CGI, necessariamente, perante os animais falantes; o que não poderia ser de outra forma. Mas mesmo dando vida à fábula houve respeito e verosimilhança pelo comportamento e pelas particularidades de cada animal (nomeadamente na forma de andar, de perscrutar, de ser ou estar); o que identificamos, imediatamente, como autêntico, porque já assistimos a documentários da vida selvagem ou porque já observámos estes seres de perto e sabemos que é assim. Já conhecíamos a excelência dos tigres digitais desde A Vida de Pi e dos mais variados símios desde Planeta dos Macacos - A Origem; talvez por isso sejam eles, de todos, os melhor conseguidos. Mas o que dizer do patusco e preguiçoso Balú? Um desafio, por certo, dada a humanidade que lhe foi conferida. Estabelecer o equilíbrio entre o urso real e o fabuloso nem sempre deve ter sido fácil de conseguir - o que é certo é que ninguém se importaria de ter um amigo destes, para as ocasiões: fosse para nos proteger dos perigos ou para nadar no rio, de papo para o ar, a cantarolar o quão a vida é boa e o quão bom é a boa vida. A propósito, a banda sonora de John Debney é extraordinária e as canções recuperadas são somente duas até aos créditos - as consideradas indispensáveis: The Bare Necessities, cantada a meias entre Mogli e Balu, e I Waana Be Like You, vociferada pelo magnífico Rei Lu. Os momentos musicais, perfeitamente introduzidos, jamais destoam do todo, antes o refrescam.

O Livro de Selva de Wolfgang Reitherman foi, assim, inteiramente repensado, reajustado e, finalmente, encontramos uma narrativa à altura da história. Temos, do princípio ao fim: personagens bem desenvolvidas, cenas memoráveis, ritmo (e não mais bocejos), um crescendo emocional (momentos para rir, momentos de acção e para torcer pelo que acontece, momentos para chorar) e uma poderosíssima moral: sobre os seres humanos, sobre a natureza e sobre a relação entre ambos. As vozes da versão de origem são boas, mas, se me permitem, as da versão portuguesa são maravilhosas. E o realizador Jon Favreau não é um tarefeiro - basta admirar o seu trabalho de câmera, a sua arte e o que fez deste Livro da Selva - isto é muito bom cinema, para todas as faixas etárias. Um genuíno filme de aventuras, a ver e rever sempre - na companhia das nossas crianças ou na da criança que há ou haverá, eternamente, em nós. É impossível acabar de assistir a este filme sem um sorriso no rosto. E claro, sem sair a trautear The Bare Necessities...

sexta-feira, 24 de março de 2017

MAD MAX - ESTRADA DA FÚRIA (2015)

PONTUAÇÃO: EXCELENTE
★★★★★ 
Título Original: Mad Max - Fury Road
Realização: George Miller
Principais Actores: Tom Hardy, Charlize Theron, Nicholas Hoult, Hugh Keays-Byrne, Zoe Kravitz, Rosie Huntington-Whiteley, Courtney Eaton, Riley Keough, Abbey Lee, Nathan Jones, Josh Helman, John Howard, Richard Carter, Iota, Angus Sampson, Megan Gale, Melissa Jaffer, Melita Jurisic, Gillian Jones, Jennifer Hagan

Crítica:

APOCALIPSE NO DESERTO

 Oh, what a day... what a lovely day!

Se vai assistir a Mad Max - Estrada da Fúria, sente-se confortavelmente e respire fundo. Se possível, beba um copo de água; esta não tardará a escassear. Vai ser o raio de uma viagem.

O sol, abrasador, doura o deserto escaldante. Rufam os tambores, anunciando o ritmo do que está por vir. Grita, em chamas, a guitarra de um fantasma vermelho, completamente louco, do alto de um electrizante camião, artilhado com poderosas e ensurdecedoras colunas de som. Uma caravana de sucata prepara-se para bater quilómetros de estrada. Os depósitos estão cheios, os motores fervilham, de tão quentes. Pressionada a ignição e pedais a fundo, there's no going back: explode a testosterona e a adrenalina numa das mais alucinantes e impressionantes aventuras cinematográficas de que há memória. Uma perseguição infernal e impiedosa, com acção non-stop, verdadeiramente de cortar a respiração, engenhosamente concebida pela encenação e pelas mentes criativas da equipa, onde, a todo o instante, brilham arriscadas coreografias de duplos pelos ares, chocam viaturas e roçam carroçarias que faíscam em ira e rebentam em fogo. A câmera leva-nos, sem medo ou hesitação, para o meio da acção - sustemos a respiração e não conseguimos desviar o olhar da tela, não vá voar um metálico e fatal volante, disparado à nossa cara. Chovem balas, lanças e arpões, portas e o que mais estiver à mão, numa desenfreada luta pela sobrevivência; corpo a corpo, sempre que necessário. Esmagado o acelerador, velocidade furiosa, máxima propulsão. Uma amálgama de ferro-velho modificado, com rodas de todos os tamanhos, rasga a paisagem de cólera e suor: das planícies de areia silenciosa aos desfiladeiros de motoqueiros saltitões, que ansiosamente esperam pela máquina de guerra com dez mil litros de guzolina.

George Miller desafia, decididamente, os limites da acção e o nosso fôlego. As sequências, ultra-violentas, acontecem rapidamente, impetuosamente, mas são-nos inteiramente perceptíveis. Os efeitos digitais, sofisticadíssimos, estão lá mas mal se notam, ao serviço da beleza, da narrativa e da visão pretendida, profundamente estilizada. É ver para crer. Mad Max - Estrada da Fúria é uma possante lição de cinema, para todos aqueles que tentam, nesta era de blockbusters ocos e simplistas, ser inovadores na imensa confusão visual que copiam, que tanto tentam disfarçar e a que chamam acção. Este Mad Max não é senão Miller, completamente revitalizado, de regresso ao universo e à trilogia que criou nos saudosos anos oitenta (Mel Gibson era o Max de então), altura em que desbravou terreno nos meandros da ficção pós-apocalíptica. Mas este Mad Max é também Miller, genialmente inspirado, ao volante da História do género acção. Haverá sempre um antes e um depois deste filme. Deixará mossa; perdão, deixará marca. E essa influência já se nota*.

Se pensávamos que Mad Max 2 - O Guerreiro da Estrada (1981) havia superado o primeiro tomo, cá entre nós conhecido com o subtítulo As Motos da Morte, o que dizer agora deste quarto pedaço? Mas que pedaço! Mad Max - Estrada da Fúria poderá funcionar, é certo, como um capítulo à parte. Miller teve essa inteligência, considerando as novas gerações que, por este ou aquele motivo, possam não conhecer ainda os capítulos anteriores. Deu-lhe, inclusive, um novo protagonista - o brilhante embora circunspecto Tom Hardy. No entanto, é interessante regressar à trilogia original e perspectivar a evolução da distopia e a transformação da paisagem australiana, ao longo do tempo. Na Estrada da Fúria, o horizonte é árido e despovoado. Outrora, lutara-se pela gasolina, o combustível dos veículos, carros ou motas - os cavalos de guerra. Agora, batalha-se pela água, o combustível essencial à vida humana. O último reduto da humanidade habita a Cidadela e vive na miséria. O tirano, assustador e corpulento embora cadavérico Immortan Joe (Hugh Keays-Byrne) e as elites de Valhalla controlam a água e, por isso, controlam a humanidade. Sempre que abrem, com desdém, do alto dos penhascos e da sua superioridade, as enormes torneiras, é ver a multidão a correr para a cascata, de sorriso no rosto, recebendo, entre o desperdício, a dádiva de Deus. Do not, my friends, become addicted to water - adverte o veterano - It will take hold of you and you will resent its absence. Certo dia, Furiosa (carismático desempenho de Charlize Theron) rapta as deslumbrantes e parideiras mulheres de Immortan Joe e desvia-se deserto adentro, procurando a liberdade e a salvação. Sabe da existência do Lugar Verde, um oásis no meio da desolação, onde abunda a água, a vegetação e a esperança. É esse o seu destino. Mas os senhores da Cidadela não perdoarão tamanha traição e não tardarão a persegui-las. E de que forma! Aos fanáticos Kamikloucos, Rapazes da Guerra - dos quais se destaca o fulcral Nux (Nicholas Hoult) -, juntar-se-lhes-ão os furões da Cidade de Guzolina, liderados pelo gordo canibal de John Howard, e os soldados da Quinta das Balas, encabeçados pelo não-menos tresloucado major de Richard Carter. Todos grotescos, saídos aparentemente de um filme de terror ou de um concerto de heavy metal. Algures na proa metálica de um dos carros, acorrentado, o solitário Max, saco de sangue de Nux, atormentado por traumas, memórias e envolvido sem querer na mortal montanha-russa das tribos, que avança a todo o gás, imparável e sem sinais de abrandamento.

A obra tem 120 minutos que passam num instante, tal é o seu impulso e pujança, mas igualmente a sua extraordinária economia narrativa. Não tendo um argumento propriamente complexo, é claro que não se demora em informação inconsequente ou repetitiva, doseando-a com notável equilíbrio entre as sequências mais dinâmicas e enérgicas. Tanto para o avanço da história como para o triunfo da excitante acção é determinante o sentido de oportunidade da montagem, a cargo de Margaret Sixel. Mas também a música de Junkie XL e o vívido e impactante trabalho de sonoplastia. A cada frame, Estrada da Fúria revela-se, ainda ou sobretudo, de um primor artístico raro e por demais elevado. A saturação das cores e a alta definição e limpidez da imagem (fotografia de John Seale) são, em pleno dia, como colírio para os olhos e arrebatam-nos com o seu excelso esplendor. Na noite azul e monocromática, perante o céu estrelado ou perante o perigoso pântano, é como que invocado o expressionismo alemão. Que cena incrível e bem iluminada, essa, em que Max, Nux, Furiosa, as mulheres e a árvore morta se esforçam por tirar da lama o pesado camião. Só falta a cena ser silenciosa. Bem sabemos que Miller pretendia, inicialmente, lançar este seu filme a preto-e-branco. E chegou a concretizá-lo mais tarde, graças ao home cinema, e que belíssimo filme será, certamente - ainda não assisti a essa versão, mas não acredito que vá alguma vez preferi-la às incomensuráveis potencialidades alcançadas pela cor nesta inesquecível versão dos cinemas. Os figurinos, os penteados e a caracterização são sublimes, assim como todos os apetrechos e acessórios que completam a cenografia e que conferem, desse modo, robustez e dimensão à fantasia. As cenas memoráveis são incontáveis... a perseguição em plena tempestade - fustigada por relâmpagos e tornados de areia, vento e fogo - é, em tudo, monumental. Quando os fugitivos encontram as Vuvalini e a desilusão, a perseguição cessa... e, nesse momento, tudo o que mais queríamos era que voltassem para trás, enfrentassem novamente as hordas inimigas e regressássemos à ferocidade das cenas de acção. Felizmente, Miller imaginou o nosso desejo. E jamais substimou o poder das mulheres: o estrogénio combaterá os grunhidos e a buçalidade dos homens, com assaz astúcia e desenvoltura.

Considerá-lo um dos melhores filmes de 2015 é dizer pouco sobre Mad Max - Estrada da Fúria. Estranho, o pressentimento que nos assola, e uma determinada certeza, de que estamos perante um filme superior. A prudência segreda-me para não o afirmar como a obra-prima que o meu coração reclama. Mas o tempo o dirá. O tempo, seguramente, o dirá.

_____________________________________
(*) Refiro-me, por exemplo, à acção estilizada entre a saturação cromática de Kong: Ilha da Caveira (2017), de Jordan Vogt-Roberts. 

quarta-feira, 22 de março de 2017

AMADEUS (1984)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
Título Original: Amadeus
Realização: Milos Forman
Principais Actores: F. Murray Abraham, Tom Hulce, Elizabeth Berridge, Simon Callow, Roy Dotrice, Christine Ebersold, Jeffrey Jones, Lisabeth Bartlett, Kenny Baker, Charles Kay, Barbara Bryne

Versão do Realizador

Crítica:


A VOZ DE DEUS

I am a vulgar man! But I assure you, my music is not.

Jamais me lembraria de imaginar Mozart - Wolfgang Amadeus Mozart, o génio da música - a envergar uma desconcertante peruca cor-de-rosa, a rir-se que nem uma hiena e a peidar-se que nem uma criança, despudoradamente. Mais difícil seria imaginar-me, seguramente, a adorar uma efabulação biográfica que ousasse retratá-lo dessa forma, sem que a considerasse profundamente ridícula ou demérita. Pois bem, Amadeus executa-a insolitamente, para meu espanto. Para meu espanto e para espanto de meio mundo, a partir de peça original de Peter Shaffer (que também assegurou o argumento e a adaptação). E como adoro o devaneio! A proposta narrativa é de tal modo alucinada, carismática e triunfal que, hoje em dia, fica difícil pensar em Mozart sem ser transportado, imediatamente, para o imaginário criado pelo filme. I am a vulgar man! - admite o músico, a dada cena - But I assure you, my music is not. E, efectivamente, sempre que ouvimos as suas inspiradas e prodigiosas composições, ascendemos ao olimpo dos deuses. E rapidamente perdoamos o seu carácter mais frívolo ou obsceno. Chegamos, inclusive, a apaixonarmo-nos por este delirante Mozart.

O filme, assinado por Milos Forman - que anos antes realizara o inspirador Voando Sobre Um Ninho de Cucos - abre e fecha na ala de um hospício. Mas não tardará a tornar-se faustoso e por demais requintado, frequentando a corte e os seus palácios, os teatros nacionais e festivos bailes de máscaras. A maior parte dos exteriores - e dos interiores - é filmada em Praga, na aura ainda setecentista das suas ruas e dos seus edifícios. Na verdade, muito poucos foram os cenários construídos propositadamente para o filme (precisamente: o apartamento de Mozart e a escadaria adjacente, o teatro do vaudeville, a sala do asilo e não mais do que isso). O certo é que, em todos eles, a direcção artística (Patrizia von Brandenstein e Karel Cerný) mostra-se de um arrojo e de uma exuberância absolutamente invulgares, tão elevados. Desfilam, a todo o instante, grandiosos figurinos (Theodor Pistek), sempre aprimorados por múltiplos folhos e rendas, pelas perucas da moda (todas, claro, à excepção da de Mozart) e por muito pó-de-arroz. Iluminado a luz natural (Miroslav Ondrícek), a viagem no tempo concretiza-se com assaz verosimilhança, fora uma ou outra liberdade fora-de-tempo (como a já referida irreverência e excentricidade do compositor na arte de se apresentar em público), mas que ganha sentido na medida em que aqui se procura retratar que os génios vivem sempre à frente do seu tempo, destacados ou alienados dos demais.

No caso dos génios, aliás, é comum a arte fluir-lhes do espírito, com aparente facilidade, como se fossem possuídos por Deus, como se o talento tudo explicasse, ao contrário dos restantes artistas, que se esforçam por sobressair da mediania. Esta é, no fim de contas, a história de Amadeus: não tanto focada no génio, mas sobretudo na sombra de Salieri (espantoso desempenho de F. Murray Abraham, no papel de uma vida) e na forma como este lida com a frustração de não conseguir, nem por uma vez, ser um criador ao nível de Mozart. A Salieri - o paladino dos medíocres ou, como o próprio diz, their champion (...) their patron saint -, custa-lhe a crer como pode Deus servir os Homems de tão desigual modo. Ainda para mais quando é um homem certinho, politicamente correcto e profundamente religioso e quando Mozart (inesquecível Tom Hulce) não passa de um bon vivant, espalhafatoso e infantil, mulherengo, entregue aos prazeres da carne, aos vícios do álcool e do rapé e que adora divertir-se, sem olhar a gastos - aliás, a sua situação financeira, mesmo depois de casado, pai de filhos e senhor de uma casa, com a fama alcançada na corte e entre os seus pares, é tão desregrada que sucumbe facilmente aos excessos. A dor maior de Salieri é, precisamente, ter consciência da sua limitada qualidade e do simplismo das suas composições, sentindo-se esmagado pelas pautas do rival. Consumido de tal forma pela inveja, não admira que tão atormentada alma acabe no manicómio, até aos seus derradeiros dias. A sua confissão ao padre - e ao espectador - é, provavelmente, o último resquício da sua vitalidade e da sua saúde mental: o assumir, finalmente e em bom tom, para o mundo e para si próprio, a sua paixão pela obra de Mozart: This was a music I'd never heard. Filled with such longing, such unfulfillable longing, it had me trembling. It seemed to me that I was hearing the voice of God.

Cenas memoráveis são mais do que muitas: desde Mozart ainda menino-prodígio a fazer sucesso na corte a Salieri envelhecido (excepcional, o trabalho de caracterização de Dick Smith), amarrado a recordações. Da encenação d'As Bodas de Fígaro a Don Giovanni, d'A Flauta Mágica e da estridente e arrepiante cena da Rainha da Noite à devastadora composição do fúnebre requiem e a cena em que Mozart, já enfermo, febril e debilitado, dita de cabeça a sua música a Salieri... Momentos genuinamente artísticos, alicerçados numa dramaturgia sóbria e que tão bem equilibra a comédia e a tragédia.

A juntar-se a todas estas qualidades, já referidas, a música do génio, omnipresente, que se torna uma verdadeira personagem e cuja alma tudo assombra e transcende. Que forma auspiciosa de levar ao grande público a beleza, a pureza e a magnificência da melhor música clássica. Com o passar dos anos, Amadeus não envelhece numa cena que seja. Se há filmes intemporais, Amadeus é sem dúvida um deles. Da mais disparatada gargalhada à mais lírica ópera que podemos conceber, Amadeus tornou-se, pois, por mérito próprio e cheio de graça, um clássico instantâneo e essencial.

sexta-feira, 17 de março de 2017

REINO DOS CÉUS (2005)

PONTUAÇÃO: EXCELENTE
★★★★★ 
Título Original: Kingdom of Heaven
Realização: Ridley Scott
Principais Actores: Orlando Bloom, Jeremy Irons, Eva Green, David Thewlis, Edward Norton, Ghassan Massoud, Marton Csokas, Liam Neeson, Brendan Gleeson, Michael Sheen, Alexander Siddig, Nathalie Cox, Eriq Ebouaney, Ulrich Thomsen, Iain Glen, Jon Finch, Nasser Memarzia, Nikolaj Coster-Waldau

Crítica:

O CAMINHO DA REDENÇÃO

 It is a kingdom of conscience, or nothing.

Uma breve introdução a Reino dos Céus: há duas versões do filme. A primeira, que nunca deveria ter existido, é de Maio de 2005, tem 144 minutos de duração e foi a versão lançada nos cinemas. Foi editada em DVD, é regularmente emitida nas televisões e é sobre ela que fala a esmagadora maioria das críticas que leu ou poderá ler, ainda, por estes dias. É uma desilusão de filme - soa a desperdício de dinheiro e de talento. Nela, a acção não matura nem respira, atropelando-se a todo o instante, vários arcos narrativos foram mutilados ou simplesmente eliminados e as personagens - algumas nem sobreviveram - ficaram sub-desenvolvidas. Esta versão foi o resultado insólito de cortes e mais cortes impostos pelo estúdio a três semanas do lançamento - um autêntico pesadelo para a editora Dody Dorn e para o realizador Ridley Scott, cuja visão foi, por força das circunstâncias, vandalizada e destruída. Felizmente, não irreversivelmente. 

What man is a man who does not make the world better. 

Sete meses depois, em Dezembro de 2005, uma nova versão, de 190 minutos, veria a luz do dia. Ridley Scott encontrava o caminho da redenção através do home cinema e da sua director's cut, provando ao mundo a sua resiliência, a sua profunda convicção artística e a sua tremenda coragem: edificar, no seio de uma Hollywood sedenta de blockbusters comerciais, um ambicioso e colossal épico sobre religião, sem se privar de tocar nas feridas, tão actuais, entre cristãos e muçulmanos. A nova versão, que recupera a magnitude e a densidade original do argumento de William Monahan - até então desconhecidas - revela, incrivelmente, surpreendentemente, todo um novo filme. A better world than has ever been seen. Não me recordo de alguma vez um novo corte ter alterado tão decisivamente a minha opinião - e o meu amor - por um filme. Reino dos Céus passa, imediatamente, de um dos maiores desastres da carreira de Scott para um dos seus melhores filmes.

How can you be in hell, when you are in my heart? 

Portanto: se ainda não assistiu a nenhuma das versões e se não está propriamente a escrever uma tese sobre como os interesses financeiros podem gorar a visão e a pertinência artística de um filme ignore inteiramente a primeira versão e fique com a segunda. Se apenas assistiu à primeira, não perca mais tempo e descubra a verdadeira. Asseguro: vai valer a pena.
OVERTURE

França, 1184. Reino dos Céus pode começar numa insignificante encruzilhada, nos arredores de uma remota e friorenta aldeia, com um coveiro a sepultar uma pálida pecadora ao lado de uma cruz, mas não tardará a crescer em densidade e a superar-se em escala, com milhares e milhares de muçulmanos às portas de Jerusalém, munidos de catapultas e torres de assalto, decididos a tomar um local sagrado que consideram seu por direito. As imponentes batalhas tornaram-se, nos épicos modernos, os momentos narrativos privilegiados e imprescindíveis para o clímax da acção, desenfreada e excitante, e para o exibicionismo técnico. No início do século XXI, a competição era feroz, entre os épicos lançados. O mais recente filme do género deveria superar os anteriores com a mais grandiosa, brutal e engenhosa batalha. A corrida começou, eu diria, poucos anos antes, inocentemente, com o já clássico Braveheart, de Mel Gibson. Quando em 2000 estreou Gladiador, na senda de filmes como Ben-Hur e A Queda do Império Romano, o próprio Scott não resistiu a abrir a obra com um visceral confronto entre romanos e bárbaros, nos bosques da Germânia. Mas depois do espetáculo e sucesso sem precedentes d'O Senhor dos Anéis de Peter Jackson, entre 2001 e 2003 - do assombroso assalto ao Abismo do Elmo ou da excelsa megalomania da peleja nos campos de Pelennor, às portas de Minas Tirith -, a fasquia ficou praticamente insuperável. Seguiram-se Tróia, de Wolfgang Petersen, e o malogrado Alexandre, o Grande, de Oliver Stone, ambos de 2004 e com impressionantes e esmeradas sequências de acção no calor do confronto. O choque de exércitos na batalha de Gaugamela, entre gregos e persas, é certamente um dos mais complexos e bem sucedidos exemplos do que estamos aqui a falar. Chegados a 2005, Reino dos Céus e, é claro, Ridley Scott e a sua equipa não se pouparam a esforços para brilhar na corrida, rivalizando com os títulos atrás mencionados. As avassaladoras proporções alcançadas servirão primeiramente estes interesses exteriores, acredito, mas jamais se poderá dizer que não servem os propósitos dramáticos ou a visão sonhada. Não servirão certamente a representação e a fidedignidade histórica - e qual dos títulos anteriores efectivamente a serve? - mas que Scott não faz documentários, sabemos, está ele farto de bradar aos sete ventos. Até a História provém da historiografia ou de uma ou mais interpretações dos factos e dos artefactos do passado. Baseado numa realidade histórica mas assumindo as necessárias liberdades criativas, Reino dos Céus poderá sempre ser acusado, aqui e ali, de revisionista; mas não mascara as suas pretensões. É um filme do século XXI sobre o tempo das cruzadas do século XII e será sempre a bandeira de uma determinada visão e reflexão dos acontecimentos e um símbolo do seu próprio tempo. Como aliás, qualquer obra de arte, por mais eternidade que, poeticamente, lhe atribuamos.

Balian (Orlando Bloom), o herói improvável, é um homem simples. É o ferreiro da aldeia, recentemente viúvo. A esposa, que tanto amava, deu à luz um nado-morto, suicidando-se em seguida. É dela o lívido corpo a enterrar, na abertura do filme. Por isso, Balian mostra-se um ser destroçado, entregue ao luto. Aos olhos da Igreja, o suicídio era um pecado, que assegurava a entrada directa no inferno; como faz questão de lhe lembrar, repetidamente e a jeito de provocação, o desprezível meio-irmão (Michael Sheen) - um padre mentiroso, corrupto e ávido de riqueza e que inveja, claramente, a capacidade do irmão dar sempre a outra face à adversidade, sem ripostar. Quando Balian se apercebe que o presbítero tem o fio de ouro da mulher ao pescoço, roubado ainda antes do enterro, desfere-lhe uma lâmina incandescente no ventre, entregando-o às chamas. Arcando com os seus pecados e os pecados da mulher, parte (mas de certa forma também foge) atrás do recém-conhecido pai, Godfrey (Liam Neeson), barão de Ibelin, um nobre cruzado que por aqueles dias voltara propositadamente a França em busca do perdão do filho, do bastardo que há muito abandonou mas não esqueceu. O destino dos dois e da horda de robustos soldados que os acompanha, é a santa Jerusalém, onde Balian poderá encontrar a (tão necessária) absolvição e o (tão desejado) recomeço: a man - diz-lhe o pai - who, in France, had not a house, is, in the Holy Land, the master of a city. He who was the master of a city begs in the gutter. There, at the end of the world, you are not what you were born, but what you have it in yourself to be.

Inicia-se então a viagem e o ritual da transformação interior. Balian é, contudo, procurado pelo crime cometido (matou um homem, familiar e, ainda por cima, representante de Deus na Terra) e, a meio-caminho, num bosque à beira rio, o grupo é brutalmente atacado. A sequência que se segue representa, exemplarmente, o virtuosismo e o estilo de Scott e aquela que deverá ser, no seu entendimento, a acção de um épico moderno. A câmera, sempre atenta ao enquadramento mais belo, move-se com exactidão. O slow-motion prepara o suspense. E a montagem de Dody Dorn, soberana, é como uma salva de setas, que rasgam a pele, ou como uma imponente espada, que quebra o osso: as motion pictures são bravamente esquartejadas, sem pingo de piedade, construindo engenhosamente a cena, numa linguagem claramente mais complexa e mais sofisticada. Há uma fluidez e osmose perfeitas entre a colagem dos takes, a música, os sons e os diálogos, o que se traduz num envolvimento emocional bastante intuitivo com aquilo que estamos a presenciar e a vivenciar. É um efeito derradeiramente poético, que impressiona e arrebata. Godfrey fica gravemente ferido e não tardará a falecer, mas não sem antes esbofetear o filho e armá-lo cavaleiro, deixando-lhe a espada, as terras de Ibelin e a promessa de honrar o rei, dizendo que se arrepende de todos os seus pecados em vida menos de um. Depreendemos que se refira a Balian:

Be without fear in the face of your enemies. Be brave and upright that God may love thee. Speak the truth always, even if it leads to your death. Safeguard the helpless and do no wrong. That is your oath. Arise a knight and Baron of Ibelin.
Balian embarca em Messina, consciente da sua missão, mas deflagra a tempestade, violenta, e o naufrágio acontece. Quis Deus, o destino ou a sorte que sobrevivesse, ele e o negro cavalo que lhe escapa da praia ao deserto e que por intermédio do sarraceno Imad o conduz, finalmente, aos portões e à graça da Cidade Santa. A partir daqui somos banqueteados com insignes desempenhos de um elenco, todo ele, de luxo: Jeremy Irons com o seu intrépido Tiberias (o real oficial de justiça, soberano da Ordem dos Hospitalários), Edward Norton com o seu trágico e mascarado rei Baldwin IV (um monarca diplomata e conciliador, condenado pela lepra), Marton Csokas e o seu odioso Guy de Lusignan (arrogante, manipulador e sequioso comandante dos Templários, ansioso por assumir o trono e controlo do reino), Brendan Gleeson e o seu tresloucado Reynald de Châtillon (lacaio de Guy, responsável por vis e desleais massacres e conspirações, nomeadamente a chacina dos peregrinos de Meca: I am what I am. Someone has to be.), Jon Finch e o seu hipócrita patriarca católico (o bispo capaz de trair a sua própria fé e o seu próprio Deus, por cobardia: convert to Islam... repent later!) ou Eva Green e a sua encantadora, sedutora e misteriosa Sibylla (princesa de Jerusalém, mãe do pequeno futuro rei, esposa de Guy e amante de Balian). Fora dos muros da cidade, os muçulmanos: a destacar Ghassan Massoud e o seu carismático Saladino (rei e chefe militar entre os árabes, aqui caracterizado como justo, temperado e respeitador: when I'm not King, I quake for Islam), acompanhado do sempre leal Imad de Alexander Siddig. Reino dos Céus é livre, portanto, da representação maniqueísta e facilitista de identificar os bons de um lado contra os mais, do outro. Há bons e maus de ambos os lados - curiosamente, se há personagem que pode assumir o papel de vilão é o templário Guy de Lusignan, com quem Balian tem um duelo final bem rematado. Recordemos, a propósito, aquela mítica e deslumbrante cena em que se opõem, frente a frente e perante a fortaleza de Kerak, de bandeiras ao vento, as forças de Saladino e o tropel de cristãos, de orgulhosa cruz a brilhar desde longe, liderado por Baldwin IV. Avizinha-se, a todo o instante, uma batalha estonteante e, no entanto, pelo diálogo, compreensão e compromisso, chega-se a um entendimento pacífico e as hostes desarmam e recuam. Quantas vezes, numa mega-produção deste género, podemos ter nós visto uma solução dramática de tamanha e tão extraordinária natureza? Pois é: raramente. Reino dos Céus não é preguiçoso e não foge à complexidade emocional.

INTERMISSION

Permitam debruçar-me, agora, sobre aquela que é, para mim, de todas, a mais enigmática e fascinante personagem da obra. Lembram-se de Blade Runner e daquele deleitoso debate se Deckard seria ou não um replicante? Pois bem, Reino dos Céus levanta uma questão poética deste tipo, embora acredite que, para os menos atentos, esta dúvida não tenha qualquer pertinência ou até nunca se tenha colocado. Refiro-me ao hospitalário de David Thewlis, o conselheiro de Godfrey e depois de Balian. A minha tese sustenta-se, essencialmente, com a cena do arbusto em chamas, que vale a pena relembrar:

HospitalárioOne may stare into the light, until one becomes the light. I've done it many times.
Balian atira uma pedra ao arbusto e este incendeia-se, com a faísca: There's your religion. One spark, a creosote bush. There's your Moses. I did not hear it speak.
Hospitalário: That does not mean that there is no God. Do you love her?
BalianYes.
HospitalárioThe heart will mend. Your duty is to the people of the city. I go to pray.
BalianFor what?
HospitalárioFor the strength to endure what is to come.
BalianAnd what is to come?
HospitalárioThe reckoning is to come for what was done one hundred years before. The Muslims will never forget. Nor should they.

Na sequência desta conversa, o hospitalário afasta-se lentamente, enquanto um segundo arbusto, por contágio, se incendeia também, numa clara metáfora ao poder da fé e dos pensamentos, facilmente alastráveis. Uma ideia pode, dependendo da convicção daquele que a tem ou transmite, mudar, efectivamente, o mundo. Mas é o que acontece imediatamente a seguir que concretiza o grifo: magicamente, o hospitalário desaparece. O plano é afastado o suficiente para estudarmos o espaço envolvente e determinarmos, com certeza, que o homem não tinha onde se esconder nem, tão-pouco, tempo para se desvanecer no horizonte - o que vem, decididamente, pôr em causa a natureza desta personagem. Ou Balian alucinou e a cena a que assistimos foi produto da sua imaginação (o que, na minha opinião, parece destoar, claramente, do filme e da sua personagem) ou então este hospitalário é uma personagem mística, uma espécie de enviado divino ou anjo da guarda, do qual ainda não tínhamos duvidado (o que, dada a essência religiosa da trama, não seria um devaneio interpretativo tão ridículo quanto isso, antes uma liberdade poética bastante enriquecedora, que não seria inédita na filmografia do cineasta). A minha proposição ganha alento se pensarmos como o hospitalário é, ao contrário das demais, uma personagem tão plana e tão pouco humana. Narrativamente, funciona como a voz da consciência do protagonista, nunca abordando temas propriamente mundanos ou políticos. É ele que, às tantas, profere as frases-chave do filme, que resumem toda a moral da obra: I put no stock in religion. By the word religion I have seen the lunacy of fanatics of every denomination be called the will of god. I have seen too much religion in the eyes of too many murderers. Holiness is in right action, and courage on behalf of those who cannot defend themselves, and goodness. What god desires is here - aponta a cabeça de Balian - and here - e aponta-lhe para o coração - and what you decide to do every day, you will be a good man - or not. Com a mesma facilidade com que desaparece, também chegará a aparecer, mais adiante, para um despertar simbólico. Apesar do seu corpo físico - a sua cabeça chegará a aparecer numa pirâmide de cabeças, após a mortandade da batalha de Hattin -, o hospitalário denota e reclama uma dimensão transcendente.

ENTR'ACTE

O romance chega a ter espaço no acto central, com as regulares e adúlteras visitas de Sibylla a Ibelin, enquanto Balian, com base nas suas noções de engenharia, transforma as suas poeirentas e estéreis terras em campos regados, férteis e germinados. A banda sonora de Harry Gregson-Williams é então espirituosa, mais leve e descontraída. Mas a tragédia não tardaria a manifestar-se, entre os corredores e os palácios da grande cidade. Com a iminência da morte e temendo a ascensão de Guy de Lusignan ao trono, Baldwin IV desafia Balian a casar-se com a irmã, mas este recusa-se. Porquê? A questão é por demais sensível e nem todos entenderão as razões do cavaleiro: para que pudesse desposar Sibyla, Guy e os seus homens seriam considerados traidores e seriam assassinados. O próprio rei o assegura. Pois bem, Balian não pretendia, de todo, ser responsável por mais mortes, por mais pecados. Proclamarem-no um dia rei não estava, de todo e também, nos seus planos. Enquanto rei, por quantas mais mortes seria responsável? O seu caminho era o da redenção, por isso estava em Jerusalém e não estava disposto a vender a alma. Era essa a sua vontade, a sua consciência. Lembremos o seu juramento: Speak the truth always (...) do no wrong. E foi o próprio rei que um dia lhe ensinou: Remember that, even when those who move you be kings or men of power, your soul is in your keeping alone. When you stand before God you cannot say but I was told by others to do thus or that virtue was not convinient at the time. This will not suffice. Remember that. Entendemos, até certo ponto, o seu fundamentalismo. Todos os fundamentalismos se entendem, até certo ponto. Até ao ponto em que o egoísmo fala mais alto e é posta em causa a vida, a liberdade ou a felicidade de outra pessoa. Por isso, quando Sibylla lhe diz there will be a day when you will wish you had done a little evil to do a greater goodcompreendemo-la perfeitamente e tendemos a concordar com ela.  Com a morte do rei, a descendência de Sibylla é coroada. Mas a maldição daquela família ainda não se tinha circunscrito... pondo à prova, violenta e implacavelmente, o amor de uma mãe por um filho. A morte da criança é, para os cristãos, a morte de Jerusalém. Com Guy como rei - o que se precipita de seguida -, a cena política altera-se completamente e o conflito entre cristãos e muçulmanos agudiza-se irreversivelmente, como se matar infiéis fosse o caminho para a glória e para o Paraíso.

No último acto, Guy foi derrotado e feito prisioneiro pelos sarracenos. Perante o desencanto, até Tiberias abandona a empresa: I have given Jerusalem my whole life. First, I thought we were fighting for God. Then I realized we were fighting for wealth and land. I was ashamed. Mas Balian não abandona o povo e a sua missão. O seu destino impõe-se, por fim: liderar a defesa da cidade.

It has fallen to us, to defend Jerusalem, and we have made our preparations as well as they can be made. None of us took this city from Muslims. No Muslim of the great army now coming against us was born when this city was lost. We fight over an offence we did not give, against those who were not alive to be offended. What is Jerusalem? Your holy places lie over the Jewish temple that the Romans pulled down. The Muslim places of worship lie over yours. Which is more holy? (...) We defend this city, not to protect these stones, but the people living within these walls.

O seu discurso é por demais motivador e mobilizador, armando rapazes em cavaleiros no fulgor do momento. Who do you think you are? - inquire o bispo, impulsivamente - Will you alter the world? Does making a man a knight make him a better fighter? Ao que o herói responde, com conhecimento de causa: Yes. A refrega seguinte é, pois, uma inevitabilidade. Será o tudo ou nada na guerra pela cidade e espelhará o discurso de Balian. O tudo ou nada daquela gente, naquele tempo, porque enquanto houver memória e sentimento de pertença haverá sempre guerra. O final, particularmente, estabelece um paralelismo gritante com a actualidade, com o sangrento diferendo entre Israel e a Palestina. Algumas guerras parecem eternas. Se restar vida no final de tudo, não admira que as personagens procurem o anonimato, a simplicidade e o recato. A mensagem pacifista não é um pretexto, é a substância - e a urgência - de Reino dos Céus.

Se, 
até ao momento, cada frame de encher o olho já prima por ser rico em detalhes (em primeiro ou segundo plano: o design de produção de Arthur Max é, como sempre, absolutamente extraordinário, assim como os figurinos de Janty Yates, assegurando a plausível viagem no tempo), o que dizer do espectáculo que se segue, a grande batalha, onde a componente visual se supera. Os sofisticadíssimos efeitos digitais (Tom Wood) nunca se excedem propriamente, multiplicando, com autenticidade, estruturas, soldados e flechas e o que for necessário para atingir as proporções ambicionadas. John Mathieson, graças ao seu excepcional trabalho de iluminação, contrasta o fogo na noite e reflecte o tórrido sol nas cores das armaduras e artefactos. Compõe, por todo o filme, quadros belíssimos. O recurso a azuis profundos para a generalidade dos exteriores, ainda que por meio de filtros, conferem à obra um esplendor etéreo, quase onírico. O trabalho de sonoplastia é igualmente formidável: assistir ao filme num bom ecrã com um bom sistema de som é uma experiência e tanto. Não se admire, por isso, se der por si a desviar-se de um som metálico, como se a espada tentasse a sua cabeça! A opus musical de Harry Gregson-Williams, entre os seus instigantes instrumentais e os seus corais arrepiantes, impulsiona a narrativa e prende-nos à tela com a mesma determinação com que um cavaleiro agarra o punho do seu gládio. O seu legado, omnipresente e de grande inspiração operática, é, em grande parte, a alma do filme. É, para já, uma das grandes bandas sonoras do início do século XXI. 

No meio de tão hercúleo desafio, 
Ridley Scott poderia facilmente desorientar-se: mas tal não acontece. O cineasta muniu-se dos melhores profissionais e revela-se magistral na gestão e orquestração dos vários departamentos. Reino dos Céus é, por tudo isto, um feito e um triunfo monumental - sobretudo artístico mas também político, teológico, filosófico, etc. -, capaz de rivalizar com os maiores épicos de que há memória. É, sim, um dos melhores épicos de todos os tempos - sobre perda, abdicação, transformação interior, respeito pela diferença, coexistência pacífica e, por fim, vitória espiritual.

quarta-feira, 15 de março de 2017

GRAVIDADE (2013)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
★★★★ 
Título Original: Gravity
Realização: Alfonso Cuarón
Principais Actores: Sandra Bullock, George Clooney

Crítica:

SOZINHA NO ESPAÇO 

 It'll be one hell of a ride. 

Ainda o Homem não tinha pisado a lua e já o cinema explorava o espaço. Gerações de miúdos cresceram desde então, sonhando tornar-se astronautas. Depois de Gravidade, dificilmente acontecerá o mesmo.

Alfonso Cuarón concretiza uma experiência sem precedentes, bem mais agoniante do que a proporcionada por muitos filmes de terror. Uma vertiginosa e imparável montanha-russa - tanto para as personagens como para os espectadores. Abalroados por uma tempestade de destroços, somos brutalmente impelidos, sem termos onde nos agarrar. Rodamos incessantemente, ao sabor do impacto e do vento espacial, sem qualquer referência do que está em cima e do que está em baixo: no espaço, isso é indiferente. A câmera acompanha-nos em reviravoltas de 360º que não conseguimos controlar. Precipita-se, descompassada, a respiração no interior do capacete, queimando o oxigénio essencial. Na luta contra o tempo, apodera-se o desnorte, confundem-se a luz e a escuridão. Os takes demoram-se e, a cada respirar, as coisas tendem a agravar-se sempre, como se ainda fosse possível piorarem. Tudo isto, juntamente com a estranheza da sonoplastia, causa-nos náuseas. Imploramos por um alívio, mas poucos serão os instantes minimamente agradáveis ao longo dos noventa minutos de duração. Cuarón deixa-nos à deriva no espaço, lutando pela sobrevivência, desafiando os nossos sentidos e a nossa força. I hate space! desabafa ao vazio e ao grande silêncio, às tantas, a cosmonauta de Bullock, Ryan Stone. E como nos revemos nas suas palavras. In space no one can hear you scream, já dizia a tagline de Alien, e tinha toda a razão. No entanto e paradoxalmente, como sabe bem voltar ao filme, de quando em vez, e ao seu puro magnetismo. Ao filme, entenda-se - não ao espaço.

Mas o paradoxo continua: mergulhados na imensidão, sentimo-nos tão ínfimos e insignificantes como se estivéssemos prestes a ser devorados, num piscar de olhos. O batimento cardíaco acelera, aquece-nos o sangue, um pouco por todo o corpo. Cresce uma sensação fóbica que se nos apodera e nos conduz ao pânico. Ao mesmo tempo e perante o espaço aberto, sentimo-nos confinados, enclausurados, sufocados... Somos um estranho fora do nosso meio natural, como que abandonados nas profundezas do oceano mas na escala da infinitude. O 3D - e como sou céptico da sua utilidade - possibilita, neste caso, um nível de imersão absolutamente incrível e estonteante. Facto que seria impossível, é claro, sem a determinante credibilidade dos efeitos digitais, que são 80% do filme. A maior parte do tempo nem damos por eles, a não ser que pensemos na impossibilidade de rodar o filme, efectivamente, no espaço. De resto estamos no espaço, presos aos malabarismos da câmera, ao esplendor visual e ao intimismo da situação, tão fisica e exigentemente interpretada por Sandra Bullock. George Clooney está lá para a contracena, está bem, mas podia lá estar outro qualquer. Mas tornando ao triunfo tecnológico: a equipa de Tim Webber, ao fim e ao cabo, acaba por ser o pintor de serviço, preenchendo a maior parte dos quadros com apuro estético e científico, seja noite ou seja dia no planeta de fundo: o planeta Terra. A própria NASA foi consultora científica do filme. Aliado está o - tão difícil de imaginar - trabalho de fotografia de Emmanuel Lubezki, na preparação prévia dos enquadramentos e dos jogos de câmera e do pormenorizado tratamento da iluminação, que conjugada com os efeitos visuais tão decisivamente potenciou o realismo de toda a experiência. Foram quatro anos e meio de trabalho de equipa e de muita dedicação para atingir os resultados pretendidos.

O argumento relativamente simples de Gravidade é daqueles que, nas mãos de outro realizador, resultaria num filme de sobrevivência banalíssimo. A câmera, o olhar visionário, a permanente alternância entre o prisma mais panorâmico e a proximidade do close-up, a atenção dada à performance de Bullock, os simbolismos... todos estes ingredientes se mostram imprescindíveis para a singularidade da proposta, que tão poucas cedências aparenta fazer às condicionantes científicas e gravitacionais. Na órbita da Terra e com gravidade zero ou microgravidade, com mudanças drásticas de temperatura e com o perigo iminente de uma desacoplagem mal sucedida, de um incêncio fatal ou de um afastamento involuntário e irreversível... Gravidade é um feito e tanto. Se por acaso, em algum momento, viermos a respirar de alívio, até pensamos que é mentira, tal foi o pesadelo. Na história de Stone (provavelmente simbólico, o nome) fica exposta e representada toda a fragilidade humana e, simultaneamente, toda a misteriosa força e instinto de sobrevivência que nos leva a lutar na solidão quando já estamos, aparentemente, condenados - como se fosse possível o renascimento (metáfora à qual, aliás, Cuarón não resiste, desde a simulação da posição fetal ao acto da personagem, às tantas, reaprender a andar).

Por tudo isto, Gravidade tem lugar assegurado entre os maiores clássicos da ficção científica.

terça-feira, 14 de março de 2017

A GREVE (1925)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
★★★★ 
Título Original: Stachka / Стачка 
Realização: Seguei Eisenstein
Principais Actores: Grigori Aleksandrov, Aleksandr Antonov, Yudif Glizer, Mikhail Gomorov, I. Ivanov, Ivan Klyukvin, Anatoli Kuznetsov, Maksim Shtraukh, Boris Yurtsev, Vera Yanukova

Crítica:

A INSURREIÇÃO DOS OPERÁRIOS 

 Tudo aquilo em que assentam os tronos é obra dos operários. 

Todos os filmes nos dizem alguma coisa sobre o tempo e o espaço em que aconteceram. A Greve, não obstante, diz-nos tanto mais, proporcionando uma viagem no tempo assustadoramente real - permitam-me o oxímoro: fantasmagoricamente real. Convém lembrar que não se trata de um filme de época - retrata o quotidiano e a realidade, o contexto sócio-político da Rússia dos czars, nos anos 20 do século XX, vivido e experienciado pelos artistas que empreenderam o filme. Não é um documentário - aqui representa-se, ficciona-se - mas quase parece. Os seus protagonistas não são propriamente individuais, antes colectivos. A trama é sobre a reivindicação dos direitos dos trabalhadores - lutam por melhores condições de trabalho, melhores remunerações, melhor trato e respeito por parte da entidade patronal. Insurgem-se e têm na greve a arma da sua luta. Assim como Eisenstein tem no filme a sua arma, o seu manifesto.

O filme organiza-se em seis partes e a greve em todas elas, do antes ao depois. A força da classe operária reside na organização - já dizia Lenine, como lembra a epígrafe. - Sem organização o proletariado não é nada. O mote está lançado e a propaganda marxista não tardará a ganhar forma: começamos no frenético dia-a-dia da oficina de fundição, onde a roda e as engrenagens jamais cessam o seu movimento quase perpétuo, a todo o vapor. O ritmo do lufa-lufa confunde-se facilmente com a montagem, extremamente rápida, criativa e revolucionária - uma marca, essa sim inconfundível, de Eisenstein e da sua identidade autoral. Qual laboratório, é na montagem que Eisenstein experimenta de tudo um pouco, aplicando ao filme uma multiplicidade de técnicas e linguagens. O resultado é uma inesperada explosão de energia e uma profusão de quadros significantes, que exigem dos olhos e do cérebro do espectador uma alucinante capacidade de percepção. Não admira, pois, que o ousado e belíssimo trabalho de montagem e fotografia se nos revele como um dos mais estimulantes desafios da aventura cinematográfica, claramente influenciado pela estética documentarista do também comunista e construtivista Dziga Vertov, cujo zénite criativo seria atingido em 1929, com o genial e enciclopédico O Homem da Câmera de Filmar. Denota-se um diálogo aberto entre muitas das obras soviéticas da altura, uma vez que mais do que uma história ou singularidade, assumem uma corrente: artística, filosófica e/ou política.

Ao assistirmos a A Greve, apercebemo-nos da banalidade do termo, do seu conceito e da sua importância nos dias de hoje. Hoje, greve significa muitas vezes inacção e descanso, um evento promovido por sindicatos representativos de um todo, do qual apenas se mobilizam alguns. Uma greve de hoje envergonharia facilmente o proletariado desta altura. Não defenderei o caos: no filme, a greve significava muitas vezes a acção violenta e criminosa; mas os tempos eram outros e condenar o ontem hoje, conquistado o conforto, revelaria, da minha parte, não só negligência moral e intelectual como falta de memória, de respeito e de honradez. Naquela altura, greve era o tudo ou nada por melhores condições de vida, para ganhar tempo para a família e para a individualidade, para conquistar a dignidade humana. Por isso, arriscavam a própria pele. A multidão ficava na rua ou em casa e as fábricas ficavam vazias. A roda parava. Ao primeiro dia, os gordos e ávidos patrões pareciam não se preocupar, levando a sua vida faustosa de sempre. Eisenstein satiriza-os, com humor. Até para apanhar meia rodela de limão do chão chamam um criado. Mas com o passar dos dias, a sede de capital já martelava murros na mesa, reuniam-se os accionistas entre charutos e nuvens de fumo e, num acto de contra-greve, reclamavam a intervenção policial. E os operários enfrentavam as cargas das autoridades. Greve significava esperança, mas também significava sangue e morte.

No final, o confronto bestializa-se e os actos mais hediondos aparecem na tela. Chocam-nos a atenção e a consciência, à medida que se lavram as mortes e se silenciam os gemidos - imaginamos - como num autêntico matadouro; comparação à qual, aliás, o filme não resiste, entremeando o esventrar dos animais na acção corrente. Fica o grito e um testemunho para as gerações futuras, que Eisenstein procura inspirar. Não obstante, numa altura em que o socialismo já perdeu a sua força, fica-nos a vitalidade e o testemunho artístico de uma primeira obra verdadeiramente notável.

DEPOIS DA TERRA (2013)

PONTUAÇÃO: BOM
★★ 
Título Original: After Earth
Realização: M. Night Shyamalan
Principais Actores: Will Smith, Jaden Smith, Sophie Okonedo, Zoë Kravitz, Glenn Morshower, David Denman, Lincoln Lewis, Jaden Martin, Jim Gunter, Monika Jolly, Kristofer Hivju

Crítica:

A URSA E O FANTASMA 

 Danger is very real, but fear is a choice. 

Os ódios de estimação conduzem, na generalidade dos casos, a uma cegueira triste. Plenos, tantas vezes, de inconsciência ou irreflectidos na urgente necessidade de pertença, condicionam visões próprias, silenciam vozes singulares e autónomas, entregando um julgamento fácil e por demais condenatório. M. Night Shyamalan tornou-se - ou tornaram-no -, por estes dias, um alvo fácil, um bode expiatório para uma legião de haters que, a cada filme, destila a sua frustração. Procuram, em cada obra sua, uma fórmula e um padrão, um twist que ditaram obrigatório, um traço autoral hegemónico. Compreendo, em certa medida, que o chamem vendido por abraçar a aventura fantástica de O Último Airbender. Compreendo e concordo, de igual forma, que um filme como O Acontecimento não tenha o fulgor e virtuosismo d'O Sexto Sentido ou d'A Vila. Mas negar as qualidades e méritos de tais obras, somente pela assinatura, é ridículo. O mesmo acontece, a meu ver, com Depois da Terra, um conto moral visualmente deslumbrante, disfarçado de blockbuster de ficção científica*.

No futuro, a Terra já não é a nossa casa. A acção e poluição humana levaram a alterações climáticas drásticas, que extinguiram todas as possibilidades de vida. Mais de mil anos após a última evacuação, a espécie habita e prospera em Nova Prime, uma colónia num outro planeta, assombrada agora pela existência das ursas - assustadores monstros alienígenas, predadores volumosos e de saliva corrosiva, uma mistura do xenomorfo de Alien e da Shelob d'O Senhor dos Anéis, cegos embora capazes de detectar as suas presas pelas feromonas do medo, presentes no ar. Quando a nave em que o general Cypher Raige (Will Smith), o filho Kitai (Jaden Smith) e a tripulação seguia se vê abalroada por uma tempestade de asteróides, arriscam um salto na dimensão cósmica e acabam por despenhar-se num planeta misterioso. Apenas pai e filho sobrevivem e, quem sabe, uma ursa que a nave transportava. Cypher está gravemente ferido e incapaz de andar, o emissor para pedir ajuda intergaláctica está irreversivelmente avariado e para chegar a outro emissor, provavelmente entre os destroços da nave espalhados pela selva, o jovem e cobarde Kitai terá que, sozinho, atravessar cerca de cem quilómetros de perigos e desconhecido: everything on this planet has evolved to kill humans - revela-lhe o pai - Do you know where we are? (...) This is Earth.

O sensível e emotivo rapaz - que sempre se esforçou para ser como o pai, quiçá procurando a sua aprovação e o seu amor - enfrentará uma dura e imprevisível prova de sobrevivência, lindando com uma atmosfera asfixiante e escassa em oxigénio, uma paisagem que congela em minutos com o cair da noite, uma selva densa, habitada por hienas e condores gigantes, ciosos das suas crias, macacos ferozes e vorazes tigres dentes-de-sabre, cobras planadoras e sanguessugas tóxicas e venenosas, capazes de o paralisar ou matar em instantes. Para alguém que, nos treinos militares, sempre foi melhor na teoria do que no terreno, o desafio avizinha-se hercúleo. Ainda para mais se pensarmos que é filho de um guerreiro estóico e lendário: Cypher consegue como que tornar-se invisível perante as ursas, alheando-se dos medos e atingindo um notável controlo e equilíbrio emocional: consegue, portanto, tornar-se um fantasma, capaz de desferir os mais fatais golpes na criatura atacante. A sombra do nome e da fama do pai é um fardo pesado. Mas mais. Um episódio trágico, revelado em flashbacks ao longo da narrativa, justificará o temor maior ao monstro, a fragilidade de Kitai, a frieza do pai e mesmo a desconexão emocional entre os dois.

Da criatividade e ousadia dos cenários futurísticos e dos artefactos humanos mostrados (notem-se as construções de Nova Prime ou o esquelético interior da nave espacial, qual raia num oceano de astros - feitos artísticos de Robert W. Joseph, Naaman Marshall, Dean Wolcott e Rosemary Brandenburg), passamos para o âmago da natureza, no seu verde imperioso. A fotografia de Peter Suschitzky maravilha-nos a cada plano, com paisagens de tirar o fôlego. Seguindo as orientações do pai, cuja voz e guarda está sempre presente por meio da mais avançada tecnologia, Kitai (que, em japonês, poderá significar esperança) avança na aventura e nós avançamos com ele, almejando que seja bem sucedido e que não desiluda o progenitor, salvando-os da morte. É claro que, às tantas, as coisas se complicam, a comunicação falha e Kitai fica por sua própria conta e risco. Não deixa de ser curioso que só então, livre da protecção do pai, consiga cumprir o seu potencial e fazer frente aos perigos, destemidamente. Finalmente, tem asas para voar.

Fear is not real. The only place that fear can exist is in our thoughts of the future. It is a product of our imagination, causing us to fear things that do not at present and may not ever exist. That is near insanity, Kitai. Do not misunderstand me, danger is very real, but fear is a choice.

Depois da Terra é, por tudo isto, uma história de superação, de superação dos medos: medos que são importantes como prevenção, mas que em demasia nos castram e nos incapacitam. É importante transformá-los numa arma, capaz de combater e vencer os obstáculos que se nos impõem. Mas o filme de Shyamalan é também uma história de amor: Kitai compreende, perante o sacrifício e profundo gesto de gratidão do condor, o poderosíssimo e incondicional amor de um progenitor pelas suas crias. O que o rapaz empreende, daí em diante, em resposta, não é senão um sacrifício de equiparáveis proporções. O duelo final com a ursa, entre a poeira e a lava daquele ameaçador vulcão, resulta num clímax de acção excitante e pura.

Que digam o que quiserem de Depois da Terra. Não é um filme perfeito - maior expressão e dimensão na interpretação de Will Smith só beneficiaria a obra e sabe quem anda por cá há algum tempo que alguns efeitos especiais não envelhecerão tão bem quanto se gostaria. Todavia, não é tão-pouco um filme que se perca na sua ambição desmedida. É simples, bonito e eficaz. E, no seu equilíbrio, não envergonha ninguém. Talvez alguns não vejam tudo isto e o considerem um fantasma. Que seja. As ursas, na sua cegueira, não vêm fantasmas. Mas eles existem e valem a pena.

___________________________________
(*) Palavras de Matt Zoller Seitz na sua crítica ao filme. Cf. aqui

domingo, 12 de março de 2017

SNOWPIERCER - O EXPRESSO DO AMANHÃ (2013)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
★★★★ 
Título Original: Snowpiercer
Realização: Joon-ho Bong
Principais Actores: Chris Evans, Kang-ho Song, Tilda Swinton, Ed Harris, John Hurt, Jamie Bell, Octavia Spencer, Ah-sung Ko, Alison Pill, Luke Pasqualino, Ewen Bremner, Kenny Doughty, Steve Park, Vlad Ivanov, Tómas Lemarquis, Adnan Haskovic, Clark Middleton, Paul Lazar

Crítica:

DISTOPIA DE CLASSES 

 When the foot seeks the place of the head, 
the sacred line is crossed.

A filosofia pode ser acessível e a alegoria de Snowpiercer - O Expresso do Amanhã é a prova disso. Se o comboio é o mundo, os passageiros são a Humanidade. Se a Humanidade e as suas sociedades se dividem e organizam por classes, o comboio é a soma das suas múltiplas carruagens. Cada carruagem representa uma classe. Da cabeça à cauda, da locomotiva aos últimos vagões, temos a classe alta, a média e os miseráveis. Cada uma no seu lugar, mantendo a ordem e o equilíbrio na viagem da vida: os mais ricos como mais fortes e os mais pobres como mais fracos. Os mais poderosos vivem às custas dos outros, instigando neles o sentimento de revolta e a urgência da rebelião. Em cada ano, o expresso dá a volta ao mundo. Há dezassete anos que é assim, desde que o químico CW-7, lançado na atmosfera para travar o aquecimento global, congelou e extinguiu toda a vida na Terra. Os únicos sobreviventes são aqueles passageiros, entregues à sorte de um amanhã improvável. Para Karl Marx - filósofo, sociólogo e revolucionário socialista do século XIX, um dos pais do pensamento moderno - o progresso das sociedades humanas concretizava-se pela luta de classes. Pois bem, Snowpiercer, no seu imaginário futurístico e distópico, metaforiza essa luta. A fagulha que acenderá o rastilho e alimentará o fogo da revolução não tardará a brilhar, derretendo o gelo e desencadeando, de forma imparável e irreversível, a acção que poderá - para sempre - mudar o destino da Humanidade.

Adaptando a novela gráfica francesa Le Transpercene, o sul-coreano Joon-ho Bong apostou desde logo na internacionalização do projecto, reunindo um elenco maioritariamente proveniente do mainstream de Hollywood (Chris Evans, Tilda Swinton, Ed Harris, John Hurt, Jamie Bell e Octavia Spencer) e, por conseguinte, adoptando a língua inglesa como idioma predominante. Mas entre os actores constam também Kang-ho Song e Ah-sung Ko, entre outros tantos rostos do mundo. Snowpiercer é, efectivamente, um filme à escala global. Nele acompanhamos o líder Curtis Everett (Evans) na insurreição da classe baixa contra as elites que, arrogantes e impunes, subjugam os pobres coitados por meio da mentira e do medo. O filme é, todo ele, um grito de revolta e uma reclamação de justiça. Só não é mais claustrofóbico porque, com a explosão do motim, o seu mundo se expande a cada descoberta, a cada porta que arrombam, a cada inimigo que ferem e vencem. As trevas, as sombras, a sujidade, os insectos, o ambiente fétido e lúgubre dão lugar a carruagens limpas, com janelas, cada vez mais prolíficas em cores, vida e diversidade. Deparar-se-ão com aquários, estufas de frutas e jardins, oficinas e centros de controlo, dentistas e alfaiates, cabeleireiros e restaurantes, piscinas e saunas, escolas, discotecas... O espelho e a memória, o modus operandi e o microcosmos dos costumes das sociedades do século XXI... num único comboio, qual Arca de Noé invertida: ou seja, que em vez de abarcar e salvar da intempérie os puros e inocentes de encontro a um novo começo, transporta o vírus e a doença, os últimos sobreviventes de uma espécie consumida pelo vício, condenada à auto-destruição, que já conseguiu erradicar a vida de um planeta inteiro e que persiste em não aprender com os próprios erros.

A narrativa linear avança sem grandes ousadias, cronologicamente e de carruagem em carruagem, assim como avançamos num jogo, de nível em nível. Por isso mesmo, o ritmo não estagna, antes se intensifica. Wilford, criador e proprietário do comboio, nunca foi visto. Qual estadista totalitário, é cultuado como um deus benfeitor. Os seus discípulos, entre os quais se destaca a burocrata - e caricata - Mason (assombroso desempenho de Swinton, transfigurada por tiques, expressões e próteses), propagam a doutrina e o imaginário, referindo-se a Wilford como o senhor da Locomotiva Sagrada, a quem todos devem a vida. Acontece que a classe baixa não vive, sobrevive. Alimenta-se só e apenas de gelatinosas barras proteicas, cuja origem desconhece, amontoa-se em beliches, são-lhe retiradas crianças sabe-se lá para que fins e levados familiares que jamais tornará a ver, é severamente castigada por isto e por aquilo, é escrava sem direito à palavra ou à indignação. Se, com razão, se revoltam os miseráveis, são logo fuzilados ou levados a enfiar os braços para fora do comboio, ficando imediatamente com os membros congelados, prontos a serem quebrados aos pedaços por impetuosas marteladas. As palavras de Mason são, a respeito, por demais esclarecedoras e intimidatórias:


Order is the barrier that holds back the flood of death. We must all of us on this train of life remain in our allotted station. We must each of us occupy our preordained particular position. Would you wear a shoe on your head? Of course you wouldn't wear a shoe on your head. A shoe doesn't belong on your head. A shoe belongs on your foot. A hat belongs on your head. I am a hat. You are a shoe. I belong on the head. You belong on the foot. (...) Eternal order is prescribed by the sacred engine: all things flow from the sacred engine, all things in their place, all passengers in their section, all water flowing. All heat rising, pays homage to the sacred engine, in its own particular preordained position. So it is. Now, as in the beginning, I belong to the front. You belong to the tail. (...) Know your place. Keep your place. Be a shoe. 

E pensar que o papel de Swinton era, originalmente, de um homem. Hoje, nem conseguiríamos imaginar o filme sem ela. Foi a própria actriz que convenceu o realizador a ficar com aquele que é, certamente, um dos melhores papéis da sua carreira. Na cauda, o misterioso ancião de John Hurt, Gilliam, defensor dos desprivilegiados. Na cabeça, o carismático e manipulador Wilford de Ed Harris. E pelo meio os notáveis desempenhos de Song e Ko como Minsoo e Yona, pai e filha, adictos do alucinogénico e inflamável kromole, cuja utilidade e importância jamais deverá ser substimada. São eles os conhecedores da segurança do comboio, os desbloqueadores das portas, que levam o confronto dos desfavorecidos adiante. Entre eles a cambaleante Tanya de Spencer, a quem o filho foi retirado, e o jovem e corajoso Edgar de Bell, que vê na liderança de Curtis a mais profunda inspiração. É por personagens tão bem conseguidas que nos prendemos imediatamente à história e aos acontecimentos e torcemos pelo sucesso da investida.

A acção, mais ou menos estilizada, é uma constante. A câmera de Bong, ainda que confinada à clausura das carruagens, serve-a prontamente e ao longo de toda a obra, agilizando-se sempre que necessário. Alguns planos, plenos de efeitos digitais, dão-nos conta da severidade do clima no exterior. Nesses instantes, a narrativa respira gelidamente, lembrando-nos o contexto apocalíptico e letal lá de fora. As cenas memoráveis são mais do que muitas: o ataque às escuras dos soldados de Wilford no túnel que se segue à ponte Yekaterina, o sorteio dos ovos de Ano Novo em plena sala de aula, o tiroteio entre Curtis e o mal-encarado Franco (Vlad Ivanov) comboio adentro, que termina na sangrenta e brutal cena da sauna... ou até mesmo o final, quando Curtis olha para trás e vislumbra o purgatório: Song enfrentando a ira das elites - outrora entregues ao ócio e à ruína, agora também elas tornadas revoltosas. Uma das melhores cenas, contudo, será sempre aquela passada instantes antes, em que Curtis, transtornado pela perda dos amigos e prestes a abrir a última porta, partilha com Song o seu passado trágico e cruel. É nesta emocionante cena que Evans se revela, sem sombra de dúvidas, à altura do papel, justificando a confiança nele depositada aquando do casting.

Num filme como Snowpiercer, a direcção artística revela-se fundamental e, por isso, há que salientar a notável concepção de Ondrej Nekvasil, Stefan Kovacik e Beatrice Brentnerova. Kyung-pyo Hong, na direcção de fotografia e seguro das potencialidades das cores e da iluminação, entrega um sóbrio trabalho imagético, extraindo do cenário e dos enquadramentos toda a beleza possível, ultrapassando facilmente o cinzentismo da fonte original, a novela gráfica em que tudo era preto ou branco. Marco Beltrami, que tantas vezes presta o seu talento a filmes menores, formula aqui pedaços de música convincentes, geralmente subtis, mas igualmente determinantes para o sucesso narrativo e para a compleição emocional da obra junto do espectador. Rodam as engrenagens, aquece o motor e irrompe a locomotiva adiante. O filme triunfa na sua visão, derrubando a controvérsia criada à volta da distribuição e os eventuais cortes na sala de montagem. Glorioso, chegou até nós na visão completa do cineasta e dirá o tempo se, mais do que um filme de culto, não se tornará um filme eterno.


<br>


CINEROAD ©2020 de Roberto Simões