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segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

PORCO ROSSO - O PORQUINHO VOADOR (1992)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
★★★★★
Título Original: Kurenai no buta
Realização: Hayao Miyazaki
Vozes: Shûichirô Moriyama, Tokiko Katô, Bunshi Katsura Vi, Tsunehiko Kamijô, Akemi Okamura, Akio Ôtsuka, Hiroko Seki, Reizô Nomoto, Osamu Saka, Yu Shimaka

Crítica:

OS PIRATAS DOS CÉUS 

Porco Rosso é tanto mais do que um prodígio visual da tradicional animação de Miyazaki e dos estúdios Ghibli.

É uma divertidíssima comédia, onde se multiplicam as situações mais caricatas e onde brotam as personagens mais espontâneas e inesperadas (recordo, por exemplo, as quinze pequenas meninas raptadas pelos piratas dos céus, logo na abertura, de coragem e inocência desarmantes). É um filme de acção, no qual se superam as perseguições da maquinaria e as manobras mais alucinantes, rasgando as nuvens e as alturas. É uma história de aventuras, com bons e maus a partilharem acontecimentos extraordinários e que fazem tréguas somente no bar da Gina, para beber uns copos, fumar uns cigarros e desfrutar dos prazeres da vida. É um romance adiado, entre a famosa cantora da ilha e o aviador enfeitiçado: há uma eternidade que a charmosa mulher o espera nos seus jardins, mas o porco tem vergonha da sua aparência e não se acha digno dos seus encantos e atenções. Surge também Fio, a jovem engenheira, que depressa se torna o motor da história, capaz de alavancar as mais resistentes engrenagens. Porco Rosso assume-se, não raras as vezes, aliás, como uma ode ao feminino, desempenhando as mulheres os papéis mais maduros e destemidos, face às agruras das circunstâncias e à infantilidade dos homens, que se entretêm entre competições e lutas absurdas. A possibilidade do amor é inebriada pela sombra da tragédia - o passado tem um peso decisivo no desenrolar dos acontecimentos presentes e, por isso, os flashbacks revelam-se essenciais para o aprofundamento da história e das personagens. Num desses flashbacks, absolutamente fantástico e belo, transgridem-se as fronteiras da metafísica e a obra abre portas a um entendimento mais filosófico.

A história original de Miyazaki, ao passar-se num espaço e tempo específicos - o Mediterrâneo dos anos 30, no intervalo entre guerras - inscreve-se ainda no retrato histórico.  Porco sabe-se um desertor desonrado, sente-se um mercenário hediondo e não o bravo herói que todos reconhecem nele. O outrora Marco sabe perfeitamente: a guerra transforma os homens em porcos. E a sua aparência mágica não é senão a materialização de um castigo superior. A aparência original e, com ela, a redenção, julga-as de todo impossíveis. As boas acções podem quebrar o feitiço. E o amor genuíno e o beijo, qual Princesa e o Sapo. A inspiração da fábula está lá, mas Porco Rosso não chega a sê-lo propriamente. O filme enche-se de liberdades artísticas, típicas da animação, porém jamais se distancia por aí além do real. Da fábula tem apenas apontamentos e, por fim, a solução.

- Qual é a diferença entre lutar numa guerra e ser um mercenário?
- Só os desonestos ganham dinheiro com uma guerra. Mas só os idiotas não ganham dinheiro como mercenários.

A cada género ou sub-género que o filme sobrevoa, destila-se uma paixão fervorosa pela aviação, que a eclética banda sonora de Joe Hisaishi acompanha com todo o carinho e entrega. Aliás, as proporções tanto dramáticas quanto oníricas que Porco Rosso atinge devem-se essencialmente à mágica relação das pinturas em movimento, sempre deslumbrantes, com as envolventes músicas do compositor. As notas do seu piano são um autêntico milagre.

Porco Rosso tanto é um adorável filme para crianças como salta para um doloroso filme de adultos, cheio de conotações, leituras e lições históricas, políticas e sociais. É sobretudo, diria, um filme profundamente humano. E, talvez por isso, um dos meus preferidos do mestre Miyazaki.

sábado, 20 de janeiro de 2018

A FANTÁSTICA AVENTURA DO BARÃO (1988)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
★★★★★
Título Original: The Adventures of Baron Munchausen
Realização: Terry Gilliam
Principais Actores: John Neville, Sarah Polley, Eric Idle, Jack Purvis, Charles McKeown, Winston Dennis, Jonathan Pryce, Uma Thurman, Oliver Reed, Robin Williams, Valentina Cortese, Bill Paterson, Alison Steadman, Peter Jeffrey, Jonathan Pryce

Crítica:

O CIRCO DO ABSURDO

 I always feel rejuvenated by a touch of adventure.

Tente imaginar a série de aventuras mais absurda e tresloucada, a fantasia mais fecunda e imaginativa e a comédia mais disparatada de que há ou poderá haver memória: tudo numa só obra. Sim, esse filme existe, é de 1988 e chama-se A Fantástica Aventura do Barão. Já existiam versões anteriores, mas esta é inteiramente original na abordagem... e não só. É como embarcar num autêntico quadro surrealista em movimento, pleno de personagens quixotescas, rico em plurais paisagens, decórs e artefactos, colorido nas mais delirantes propostas visuais. Seja agarrado a uma bala de canhão voadora ou rasgando os céus num navio de roupa-interior insuflada, seja mergulhando nas escaldantes profundezas do inferno ou nas mais inesperadas e exóticas maravilhas, eis uma autêntica e mágica viagem ao mundo em duas horas, ou pouco mais, e que vira o mundo ao contrário, se preciso for. Absolutamente descomprometida. Hilariante em todos os seus excessos. É, provavelmente, o melhor filme de Terry Gilliam e uma das melhores fantasias a que tive o prazer de assistir.

Não sei como filmes sólidos como rochedos e audazes como heróis podem algum dia cair no esquecimento. Talvez pelo desastre anunciado (que se veio a comprovar por entre guerras de produtores e temerárias convicções artísticas, gestão danosa e custos avultados que não raras as vezes passaram a perna ao génio criativo) e que se manteve qual fantasma após a estreia do filme. Essa aura negativa traduziu-se na falta de confiança dos investidores no seu produto e, por sua vez, num lançamento miserável, catastrófico e desonroso. O filme tornou-se pouco falado e reconhecido, apesar de cada dólar (mesmo os tantos milhões que superaram o orçamento inicial) se verem na tela, a todo o instante.

Apesar do pesadelo das filmagens e de todos os problemas de produção, A Fantástica Aventura do Barão chega-nos como um monumento de liberdade, coragem e de poder inventivo. Bizarro, grotesco e excêntrico, qual protagonista: o memorável Barão Munchausen (brilhante John Neville), sempre acompanhado da sua extraordinária trupe (o Berthold de Erci Idle, o homem mais veloz do mundo, o Albrecht de Winston Dennis, o homem mais forte do mundo, o Adolphus de Charles McKeown, o homem com a visão mais apurada do mundo e o Gustavus de Jack Purvis, o anão com o sopro mais potente do mundo), à qual se junta o incontornável motor de toda a trama: a pequena e ajuizada Sally Salt de Sarah Polley, sempre tão curiosa e destemida, despoletando com um simples sorriso ou com uma mera dúvida a imaginação e a loucura do velho aristocrata, que todos julgam não passar de um pomposo lunático ou de um reles mentiroso. Acontece que... as suas histórias são demasiado fabulosas e inverosímeis para merecerem o respeito das pessoas. Nunca poderão ter acontecido... A verdade é que a cidade está cercada pelos turcos. A guerra traz a fome, a miséria e a destruição ao dia-a-dia das pessoas. Essa é a verdade. Não é tempo de histórias... A fala do lógico e racional Sr. Jackson (Jonathan Pryce) é, por isso e às tantas, por demais simbólica e representativa:

There are rules in life! We cannot fly to the moon. We cannot defy death.
We must face facts, not folly. You don't live in the real world.

A fantasia é sempre ingrata quando a verdade é tão cruel e sangrenta. Mas por isso mesmo o escape que a fantasia proporciona não se iguala a nenhum outro! Ir à lua do sempre rei Robin Williams, onde giram cabeças, ou descer ao purgatório do telúrico Oliver Reed, correr ao harém do sultão, repleto de nudez, tesouros e eunucos e num salto dançar e flutuar com a Vénus de Botticelli, saída da concha, ao som da mais sonante valsa... Isso é que é viver, viver o sonho! É esse o poder da imaginação, das histórias, do cinema! Para Sally, descortinar o mistério e constatar os factos é fundamental e o percurso entre o real e o imaginário - como será para a Alexandria de Um Sonho Encantado - revelar-se-á uma enriquecedora e inesquecível experiência, que a fará certamente manter viva a criança que há dentro dela, por mais anos que passem. A Fantástica Aventura do Barão não é, seguramente, um filme para crianças - às vezes pela complexidade do texto e das cenas, outras pela ironia ou sátira das piadas, às vezes pela violência gráfica ou pelas irreverentes alusões sexuais ou até pelas muitas referências mitológicas ou políticas - mas é seguramente um filme para todos os espectadores que mantêm viva, dentro deles, a criança que um dia foram. Só assim se deslumbrarão com os cenários mais artificiosos (a direcção artística é dos hoje lendários Dante Ferretti e Francesca Lo Schiavo), se encantarão pelas situações menos verosímeis e se entregarão, de coração, ao ridículo, refastelando-se nele, deliciando-se nele. A Fantástica Aventura do Barão é como um festim, que nos despe e nos banqueteia. A cada volta e reviravolta, uma pândega, uma farra e um circo, faustoso e extravagante. Puro gáudio, puro génio artístico. Gilliam é senhor da câmera, visionário, sempre eclético, fluído e inspirado, à frente de uma equipa de excelência. A beleza da fotografia (Giuseppe Rotunno) equipara-se-lhe, transcendente, e a música de Michael Kamen espelha-a, claramente, ao mais alto nível.

A Fantástica Aventura do Barão é-me, pois, um filme perfeitamente incansável, até nas suas apaixonantes imperfeições. O elogio parece cair no exagero, temo, mas cada visualização vem não só confirmá-lo como reforçá-lo indelevelmente. Por mais vezes que o veja, divirto-me sempre a potes, com os mesmos júbilo e excitação com que assistia aos desenhos animados em criança. É tão alucinado, tão contagiante. Julgo que terá o condão de colocar qualquer pessoa bem-disposta, transformado-lhe o dia. É como que um cruzamento entre as mais delirantes viagens de Gulliver, ao Centro da Terra, ao Mundo em 80 dias e as 20 mil léguas de nonsense dos Monty Python. E, verdade seja dita, quanto mais idiota melhor. Um triunfo sem limites. Apetece bradar, com fôlego romântico: isto é que é uma história de verdade!  E já como vendia o trailer, nas imediações da estreia e cheio de graça, trata-se efectivamente de a true story - we've got the film to prove it.

sábado, 5 de agosto de 2017

MAMMA MIA! (2008)

PONTUAÇÃO: BOM
Título Original: Mamma Mia!
Realização: Phyllida Lloyd
Principais Actores: Meryl Streep, Amanda Seyfried, Stellan Skarsgård, Pierce Brosnan, Colin Firth, Julie Walters, Christine Baranski, Dominic Cooper, Myra McFadyen, Niall Buggy

Crítica:


You can dance, you can jive, having the time of your life...

A ILHA DE AFRODITE 

See that girl, watch that scene, diggin' the dancing queen!

Leve, descontraído, descomplexado, despretensioso e, por isso mesmo, absolutamente irresistível. Assim é Mamma Mia! A cada cena, uma explosão de frescura, de jovialidade. As eternas canções dos ABBA, numa musicalidade orelhuda, nostálgica e contagiante, envolvem-nos e levam-nos, transportam-nos, alheam-nos da nossa realidade. Viajamos para o azul do mar, para a verdejante e solarenga costa grega. Batemos o pé, entregamo-nos ao riso e queremos lá saber do resto. Estamos a divertir-nos, a divertir-nos genuinamente, como poucas vezes a ver um filme. Às tantas, damos por nós a cantar e a cantar - já conhecemos os temas, fazem parte da nossa vida. Se ainda não fazem, será uma questão de instantes. Camaleónica, a deusa Meryl Streep surpreende como nunca, depois de tantos papéis inesquecíveis, de tantas personagens arrebatadoras. Sem preconceitos, assim se vê o calibre do qual são feitas, tão-somente, as actrizes maiores. Ela canta, dança, salta, chora, emociona, vibra como uma adolescente, demonstrando que a idade é, verdadeiramente, uma questão de espírito. Gravou The Winner Takes It All, na sua cena mais intensa e comovedora, de uma só vez. Benny Andersson, membro dos mítico grupo sueco, chamou-lhe, por isso, um milagre. Não admira.

O elenco é soberbo. Para além da ímpar protagonista, a hilariante Julie Walters (e quando digo hilariante, é hilariante mesmo; é ver para crer) e a mais lírica mas igualmente estouvada Christine Baranski, formam as Donna and The Dynamos!, as amigas cinquentonas e solteironas. Depois, o trio de hipotéticos pais: Pierce Brosnan, Colin Firth e Stellan Skarsgård, outrora risíveis hippies; quem diria. Não se estreando propriamente, é com Mamma Mia! que Amanda Seyfried é catapultada para as luzes da ribalta, com a sua voz de anjo e os seus tão expressivos olhos. O mesmo para Dominic Cooper, que assim alcançou maior reconhecimento. Todos cantam os seus próprios versos, havendo temas para todos brilharem, para todos terem o seu momento. E isso é imprescindível para a solidez narrativa e para a sua dimensionalidade. Até os figurantes cantam, qual coro, arrancando - não raras vezes - as mais incontidas gargalhadas. A cena mais emocionante, para mim, é aquela (ainda no primeiro acto) em que Donna conquista - à rotina mundana - dezenas de seguidoras (mães e mulheres) pela villa fora até ao cais, lembrando que ainda são capazes, que ainda são jovens, que ainda podem ser felizes. É, para o espectador, um misto de sorriso, arrepio e lágrima sentida. É o próprio exemplo, meta-diegético, de Streep. É, pois, inspiracional.

You are the dancing queen!
Young and sweet
Only seventeen!


Guarda-roupa, cenografia e fotografia aliam-se numa paleta de cores quentes, privilegiando os azúis e os púrpuras ao sol e as mais variadas luzes ao luar. Até o visual é festivo, alegre, contribuindo para a good vibe do filme, ou não se tratasse este do denominado feel good movie. Phyllida Lloyd, adaptando o sucesso da Broadway e despojada de purismos desnecessários, entrega a sua acalorada e tão empática visão cinematográfica com as desejadas simplicidade e eficácia; o tremendo êxito comercial do filme, aliás, fala por si. Fez muito money, money money, pois é puro honey, honey. Mamma Mia! tem o condão de encantar espectadores de todas as gerações e de agradar a toda a família. Sempre enérgico, sempre pulsante. Julgo que só um ser profundamente aborrecido possa odiar, verdadeiramente, este filme. Até os créditos finais são de acompanhar até ao fim. Oh, eu assisti este no cinema. E foi tão bom.

You're a teaser, you turn 'em on
Leave 'em burning and then you're gone
Looking out…


sexta-feira, 4 de agosto de 2017

A PAIXÃO DE SHAKESPEARE (1998)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
Título Original: Shakespeare in Love
Realização: John Madden
Principais Actores: Gwyneth Paltrow, 
Joseph Fiennes, Geoffrey Rush, Judi Dench, Tom Wilkinson, Colin Firth, Imelda Staunton, Ben Affleck, Steve O'Donnell, Tim McMullen, Steven Beard, Jim Carter, Sandra Reinton, Simon Callow, Martin Clunes, Rupert Everett

Crítica:

Who is that?

COMO ROMEU E JULIETA

Nobody. The author.

l don't know. It's a mystery como pode o fruto de tão eloquentes interpretações, tão arrojada produção artística, tão inspirada e bem-disposta fluidez narrativa e tão bela dedicatória ser apenas recordado por factores que lhe são puramente externos - pelos prémios que ganhou a concorrentes seus, mais ou menos memoráveis. Isso sim é injusto, isso sim é redutor. Nenhum filme se torna melhor ou pior pela estatueta que recebeu ou deixou de receber. Compreendo o fenómeno, até posso - em certa medida - rever-me e concordar com ele, mas tendo a desvalorizá-lo... porque A Paixão de Shakespeare é um triunfo absoluto do espírito e da arte. Também o foram A Vida É Bela, A Barreira Invisível e O Resgate do Soldado Ryan, cada um à sua maneira. Foi um ano de grande colheita para o cinema, não restam dúvidas. Mas o mérito de uns não significa o desmérito de outros. Ainda para mais, sendo comédia, A Paixão é logo à partida menosprezada, como se pertencesse a um género inferior; preconceito que seriamente me incomoda. Não há géneros menores. 
Feita, a jeito de introdução, a defesa a que a memória e o tempo tão claramente têm resistido, passemos à crítica ao filme.

A Paixão de Shakespeare propõe a viagem no tempo e a ficcionalização biográfica do poeta e dramaturgo. É, portanto e sobretudo, uma proposta. Uma proposta criativa, baseada tanto em factos como em rumores, como na liberdade poética de quem cria um objecto artístico deste tipo. É uma visão pós-moderna, que transpira - por todos os poros - uma admiração e reverência absolutas às palavras e construções das peças e sonetos, parafraseando muitos dos seus mais icónicos versos e expressões. 
Marc Norman e Tom Stoppard concretizam um argumento admirável. Na sua Paixão ecoam, desde a abertura, referências a Hamlet e a'O Mercador de Veneza e o desfecho alude à génese da Noite de Reis e da Tempestade, sendo que o seu âmago imagina as origens de Romeu e Julieta, reflectindo-a engenhosamente no romance entre o poeta e Viola (magnetica e magnificamente interpretados por Joseph Fiennes e Gwyneth Paltrow), ambos efervescentes nos actos, nas palavras e no amor... Não se propõe Romeu e Julieta a ser senão a peça sobre o amor... love like there has never been in a play. A paixão ardente das palavras e das declamações incendeia cada interpretação, à qual se aliam as sonantes e desfrutáveis composições musicais de Stephen Warbeck, influenciando a cadência da montagem (David Gamble) e o próprio ritmo narrativo. De um certo prisma, A Paixão de Shakespeare tem uma natureza musical - não sendo nunca um musical, a música influencia decisivamente o movimento (a coreografia dos corpos e das câmeras) e a acção (os acontecimentos e o tempo diegético). A música não acompanha, a música é intrínseca a cada cena. Um pouco como aconteceu noutra ficcionalização biográfica de época absolutamente assombrosa e igualmente pontuada pela comicidade: Amadeus; ainda que neste caso o facto do protagonista ser o compositor da própria música confira outra importância e dimensão a cada trecho escutado.

Há cómico de situação (da tortura aos pés de Henslowe, ao bigode de Thomas Kent, aos coitos interrompidos de Rosaline, ao disfarce de ama de Shakespeare, entre tantos outros), de linguagem (rol interminável, pelas mais variáveis bocas: I am the 
money!, the show must... go on!, too late, too late!) e de personagem (desde o clamoroso e agourento vigário ao jovem John Webster, sanguinário e amante de ratos, à própria personagem de Geoffrey Rush, sempre de um lado para o outro, cobrando o seu patronato e assegurando que tudo vai acabar bem, quase numa garantia metadiegética). Há um elenco portentoso, assegurando um talento coletivo preponderante: juntam-se aos já referidos nomes como Tom Wilkinson, Imelda Staunton, Colin Firth, Simon Collow, Martin Clunes e Mark Williams. E claro, Judi Dench como Queen Elizabeth, que em poucos minutos ofusca com o seu carisma e poder interpretativo. E não menos, seguramente, com o seu majestoso guarda-roupa e caracterização - categorias ao mais alto nível nesta obra. Estaremos, aliás e muito provavelmente, perante um dos melhores charriots de Sandy Powell, uma das melhores designers e estilistas da indústria.

Pouco me interessa se foi o melhor do seu ano. Isso vale o que vale. Agora, quantos filmes do género existirão e que poderão rivalizar com ele? Pois é, muitos poucos. Talvez perfaçam, tão-somente, uma mão cheia. Deles, A Paixão de Shakespeare sempre será um dos mais charmosos, cativantes e românticos filmes. Um clássico absoluto, a ver e rever sempre... sempre com o mesmo fascínio e com o mesmo deleite. Com o encanto e a doçura comparáveis... - perdoem-me a imagem, mas é irresistível, até pelo esplendor visual da obra - ao melhor dos cupcakes.

quinta-feira, 20 de abril de 2017

VÍCIO INTRÍNSECO (2014)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
★★★★ 
Título Original: Inherent Vice 
Realização: Paul Thomas Anderson
Principais Actores: Joaquin Phoenix, Katherine Waterston, Benicio Del Toro, Owen Wilson, Josh Brolin, Reese Witherspoon, Sasha Pieterse, Jena Malone, Maya Rudolph, Martin Short, Yvette Yates, Peter McRobbie

Crítica:

O HIPPIE GANZADO 

 Motto panukeiku... motto panukeiku! MOTTO PANUKEIKU! 

Termina o filme e o título, oblíquo e a neon verde, invade o fundo negro. O violino dá lugar ao mais relaxado sintetizador electrónico da Any Day Now, de Chuck Jackson. Paz e amor, paz e amor, tudo acaba bem, mas a nós o que nos invade é um sincero WHAT THE F*CK! Duas horas e meia depois de ter começado, Vício Intrínseco não nos deixa pedrados, deixa-nos para lá de confusos e seguramente arrependidos da nossa lucidez. Mas que raio de filme foi este? O que é que se passou aqui? Talvez, se tivéssemos acendido um espirituoso e bem provido charro, estivéssemos melhor preparados para assistir a um filme assim, tão... alucinado. Absolutamente rendidos à magnetizante e inesquecível moca do hippie de Phoenix e à esquisita compleição narrativa (e ao seu hilariante non-sense), a partir do romance original de Thomas Pynchon, o certo é que não conseguimos desviar o olhar até ao final. Quer dizer, talvez alguns espectadores desistam ao fim de alguns minutos. Talvez outros tantos, entre o desnorte e os bocejos, abandonem a sessão a meio, inteiramente frustrados. Não é talvez, é certamente - basta sondar algumas opiniões aqui e ali. Ainda que completamente distinto no tom e no tema, Vício Intrínseco assemelha-se ao anterior de Paul Thomas Anderson, The Master, no grau de dificuldade e exigência interpretativas levantadas ao espectador. Porventura, será ainda mais difícil, ainda mais exigente. Alguns espectadores, como eu, chegarão ao fim, orgulhosos e contentes - não negarão que se riram e que gozaram um bom bocado -, mas não farão ideia, ou muito pouca, da história a que assistiram. Eu cheguei ao final e não só não sabia da história como não sabia o que dizer do filme. Só sabia que tinha gostado. E então o que fiz? Passei dos créditos finais aos iniciais. E comecei a ver de novo.

Vício Intrínseco é um noir - o mistério adensa-se, entre nuvens de fumo, ao longo de todo o filme. E continua depois de acabar; só não sabemos se por negligência nossa. O caso é resolvido, os caminhos para lá chegar é que são bem sinuosos. Gordita Beach, Califórnia. Anos 70 do século XX. Phoenix - absolutamente camaleónico e genial, elevando-se ao nível dos maiores actores da actualidade e, provavelmente, dos lendários - é Doc Sportello, um detective particular, de cabelos compridos e fartas suíças, quase sempre de óculos de sol, descalço ou de sandálias, mas sempre sobre o efeito mais ou menos despreocupado, anestesiado ou paranóico das drogas, sobretudo do haxixe. As drogas são o seu vício maior, inerente à sua condição, à sua natureza, mas não menos o amor que sente pela ex-namorada Shasta Fay (fabulosa Katherine Waterston), que tão claramente não consegue ou não quer esquecer. Quando esta lhe propõe um caso, a investigação começa... e o filme também. Começam a aparecer personagens e mais personagens, cada uma com uma nova pista ou uma nova proposta de caso - às tantas a baralhação é tanta que até o próprio escreve o nome de todos os intervenientes num quadro e faz por estabelecer as conexões necessárias, com vista a orientar-se. As personagens e os seus relatos contradizem-se uns aos outros e até a narradora - Sortilège (Joanna Newsom), amiga de Doc e por isso muito pouco isenta e fiável - lança achas na fogueira. No fim de contas, todas as personagens revelar-se-ão de alguma forma relacionadas e todos os casos poderão ser um só grande caso, provocado pela mesma pessoa ou pela mesma organização. A história poderá nem ser a coisa mais intricada do mundo, mas a forma como está contada é que é o grande segredo - e o grande reflexo da qualidade e inteligência da obra. As personagens, repletas de particularidades, são riquíssimas e as cenas memoráveis variadíssimas. A minha preferida é a cena de sexo, num só plano, entre Doc e Shasta - absolutamente brilhante: da persistente massagem com os pés nas pernas do hippie até se deitar sobre ele e quase a tocar na câmera, desafiando o enquadramento e o tesão do protagonista.

Mas o que dizer do cómico de situação, imperioso e absurdo, de grande parte das cenas? Aquela em que Doc mira o amigo (amigo?) polícia Bigfoot (Josh Brolin) a saborear, ao volante e apaixonadamente, um fálico gelado? Ou aqueloutra em que agentes do FBI começam, um por um, a esgaravatar os seus narizes? Ou aqueloutra em que Jade (Hong Chau) se ajoelha perante a colega Bambi e, demonstrando a promoção para detectives, naquele bordel de esvoaçantes bandeirolas vermelhas no meio do nada, começa a dar à língua? E aqueloutra em que o Dr. Rudy Blatnoyd (Martin Short), entre snifadas e tresloucadamente, abandona o consultório, desapertando as calças? E o que dizer da excelência do serviço da empregada de Sloane (Serena Scott Thomas), mulher do desaparecido Mickey Wolfmann, que a servir uma bebida a Doc esbarra a sua curtíssima mini-saia a dois dedos da sua cara? O que dizer do agressivo e repetitivo pedido de panquecas de Bigfoot? Do encontrão propositado dos bófias, quando Doc vai a caminho da esquadra? Da representação da Última Ceia, entre pizzas e colares floridos? Vício Intrínseco é um valoroso filme de momentos e de personagens. Absolutamente seguro da sua forma. Tem a confusão de The Big Sleep de Hawks, o disparate e o ridículo comum a tantos dos filmes dos Coen (Doc lembra inevitavelmente o Dude de Jeff Bridges), as longas conversas (e os pés, tantos pés!) de Tarantino... mas, referências à parte, Vício Intrínseco é tanto as marcas do P. T. Anderson, o autor: na arte de filmar, na complexidade da trama, na profundidade e tremenda dimensão dos seus protagonistas, no retrato de uma determinada década da cultura americana. Sobressaem os azúis e os amarelos entre a iluminação de Robert Elwist, Leslie Jones é mais ou menos simples mas sempre eficaz ao leme da edição e Jonny Greenwood, também ele habitual colaborador, é responsável por uma banda sonora por demais contagiante, que reúne também algumas das icónicas canções da época, entre as quais Journey Through The Past, de Neil Young, Vitamin C dos Can e a minha predilecta, a gloriosa Les Fleurs, de Minnie Riperton.

P. T. Anderson não repete um filme que seja. A cada filme, uma aposta ganha. Não falha uma vez que seja. Não admira, pois, que seja um dos artistas mais estimulantes, interessantes e consistentes do panorama cinematográfico actual. O que é Vício Intrínseco? Sobre todas as coisas, mais um filme para a vida, que cresce a cada visualização. Para um verdadeiro cinéfilo, de nada serve abandoná-lo, pois ele jamais nos abandonará.

quinta-feira, 6 de abril de 2017

ROMEU + JULIETA (1996)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
★★★★ 
Título Original: Romeo + Juliet
Realização: Baz Luhrmann
Principais Actores: Leonardo DiCaprio, Claire Danes, Harold Perrineau, John Leguizamo, Pete Postlethwaite, Paul Sorvino, Paul Rudd, Jamie Kennedy, Miriam Margolyes, Dash Mihok, Zak Orth, M. Emmet Walsh, Jesse Bradford, Brian Dennehy, Vincent Laresca, Vondie Curtis-Hall

Crítica:

A TRAGÉDIA DO AMOR 

 Did my heart love 'til now? 

Baz Luhrmann sabe como quebrar corações. Foi assim na obra-prima do musical moderno Moulin Rouge!, cuja fórmula herdou deste anterior - revolucionário e estonteante - Romeu + Julieta. Para isso, nada como pegar na história de amor mais icónica de todos os tempos. Mas... levar à Hollywood dos meados dos anos 90 e às novas gerações de todo o mundo - mergulhadas numa pop culture de videoclipes musicais e de consumo cada vez mais rápido e instantâneo -, as palavras eruditas e tudo menos comerciais de William Shakespeare? Que loucura, que fracasso anunciado. Daí o rasgo de génio de Luhrmann, fiel ao seu íntimo artístico: o cineasta arrisca manter o texto, em tanta da sua graça original, mas traz a acção da Verona italiana da Idade Média para a Verona Beach americana da modernidade, plena de arranha-céus, não com contendas de cavalos pelas estradas de terra e pó mas com rusgas de automóveis pelas ruas de alcatrão, inundadas de anúncios publicitários, não com lutas de capa e espada mas com tiroteios de camisas coloridas e floridas, abertas ao sabor do vento, ferozes perseguições de helicópteros pelos ares e meios televisivos que relatam as notícias em vez dos clássicos narradores. Comédia, acção, romance, drama, tragédia. A banda sonora é uma mistura igualmente tão eclética e irreverente que, aliada aos bruscos e efervescentes jogos de câmera, zooms, fast e slow motion e à frenética e alucinada montagem de Jill Bilcock... contribui, de forma inequívoca, para a estranheza e brilhantismo da adaptação. Tamanha ousadia e originalidade poderia ter corrido muito mal, não fosse a visão e a convicção, a paixão e o profundo sentido estético de Luhrmann e de toda a sua equipa. O filme tornou-se o maior sucesso de uma adaptação de Shakespeare aos cinemas, mas simultaneamente alvo de um mar de críticas destrutivas e de incompreensão. Nada, enfim, que o tempo não se ocupe, justa e oportunamente, de corrigir.

O prólogo é um autêntico trailer: compila algumas das melhores imagens do que estamos para ver, sobrepõe-nas a alta velocidade, acompanhado-as - sempre - de música electrizante, soma-lhes várias frases comerciais e por demais enigmáticas, suscitando a expectativa, e a manobra de marketing está concluída, pronta a lançar o seu produto. O título parece no ecrã: Romeo + Juliet, entendemos o + em vez do e porque é mais cool, mais pop. Mas cúmulo da provocação: Williams Shakespeare's antecede o título. Os que forem a Shakespeare irão certamente ao engano. O mote está lançado. Foquem-se no +, que é também uma cruz. Quando o próprio prólogo é um trailer, nada mais se pode esperar que não um filme comercial. Contudo - e este raciocínio impõe-se, a meu ver, como o mais importante -, ser um filme comercial não significa, por si só, ser um mau filme. Na verdade, ir beber influência à MTV revelou-se uma experiência tremendamente enriquecedora e actualizou ou regenerou, de certo modo, a linguagem cinematográfica em plenos anos 90. Sem esta influência, o que seria de Boogie Nights de Paul T. Anderson, de Clube de Combate de David Fincher ou de Requiem for a Dream de Darren Aronofsky. Não podemos esquecer que realizadores como Fincher ou T. Anderson chegaram mesmo a trabalhar o videoclip. De todos, Luhrmann foi quem desenvolveu uma abordagem mais espectacular e musical. A belíssima cena em que Romeu e Julieta pela primeira vez cruzam olhares, com o aquário pelo meio, poderia perfeitamente servir de videoclipe à canção I'm Kissing You, da Des'ree. Poderíamos estar a assistir, efectivamente, ao videoclipe - é esse o jogo aqui. E o triunfo da identificação com o público contemporâneo. Da mesma forma, a canção serve perfeitamente a cena, levando a um envolvimento emocional imediato e poderosíssimo. Numa altura em que as paixões juvenis, na vida real, florescem ao som da música (os casais apaixonados partilham canções e headphones) e em que os desgostos de amor são, igualmente, acompanhados por temas musicais, a música seria sempre o meio privilegiado para chegar aos espectadores mais jovens e para fazê-los sentir o romance e a tragédia da peça de Shakespeare, em toda a sua intensidade. A opção de manter o texto não só é corajosa como meritória, sendo porventura responsável por levar novos leitores ao mestre dramaturgo. Este é um entendimento derradeiramente optimista, mas creio nele.

Determinante para o sucesso da obra foram as escolhas do casting: Leonardo DiCaprio, o menino prodígio de Gilbert Grape, aqui a um ano de conhecer o estrondoso estrelado com o filme Titanic, é por demais carismático, bonito e sedutor, mas também notavelmente magnetizante na sua interpretação. Vibramos com ele, choramos com ele. A graciosa Claire Danes é encantadora e torcermos pelo romance. De um lado Mercúcio (estupendo e hilariante Harold Perrineau como melhor amigo do herdeiro dos Montéquios, ora de cabelo aos canudos e de cruz ao peito ora de peruca e travestido), do outro lado Tibaldo (John Leguizamo, irascível e galante, como primo de Julieta e capataz dos Capuletos). Duas famílias inimigas e, por isso, amaldiçoadas. Algures pelo centro, os cúmplices: a ama de mel da sempre fabulosa Miriam Margolyes e o padre boticário de Pete Postlethwaite, fiel à métrica do poeta.

Excelente, a direcção artística: a praia parece um autêntico parque de diversões de terceiro mundo (o palco em ruínas foi, na verdade, devastado por um furacão durante a produção), as igrejas excedem-se em velas e neons, a mansão dos Capuletos faz jus à riqueza e ostentação da família. As referências às peças de Shakespeare multiplicam-se, um pouco por todo o lado, nos cartazes ou revistas, assim como as representações e os símbolos cristãos (na roupa, nos carros, na pele tatuada). A fotografia é vívida, com as cores ao serviço dos propósitos dramáticos. Romeu + Julieta tão depressa homenageia - e goza, plena de humor - o western ou os filmes de gangsters, ao som dos temas mais populares e descontraídos, como vai buscar uma sinfonia de Mozart para suscitar o riso numa cena de interiores, Wagner para dramatizar uma determinada situação ou os corais de Craig Armstrong para atingir o tom mais operático e trágico. É quase uma antologia, de gosto diversificado e mais ou menos duvidoso.

O resultado, se me permitem, transcende quaisquer dúvidas. É como ingerir uma droga alucinogénica e, de repente, o virtuosismo de Shakespeare encontrar eco num surrealismo mundano, excitado e desenfreadamente histérico, injectado com níveis de adrenalina tão absurdos que o descontrolo hormonal e sem limites pode arrancar das personagens, a qualquer momento, os seus segredos mais íntimos. Com o seu quê de nonsense, descomprometido mas profundamente sentido, Romeu + Julieta revela-se uma experiência absolutamente sem limites. É como o fogo-artifício que, às tantas, irrompe pelo céu do baile de máscaras: explosivo e deslumbrante, imprevisível e adolescente - como as primeiras e verdadeiras paixões. Percebo, por isso, que os mais puristas, mais conservadores ou mais velhos não só não gostem como denigram os valores artísticos da produção. Não é só uma questão geracional, mas creio-a sobre todas as outras. Romeu + Julieta foi um filme, em certos aspectos, à frente do seu tempo, que desbravou novos caminhos. Uma aposta, contra todas as expectativas, ganha: de inesgotáveis e contagiantes energia e fruição artística, deveras apaixonante e de emoções à flôr-da-pele, finalmente tão intensa como se nos cravasse um punhal no peito.

I defy you, stars!

quarta-feira, 22 de março de 2017

AMADEUS (1984)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
Título Original: Amadeus
Realização: Milos Forman
Principais Actores: F. Murray Abraham, Tom Hulce, Elizabeth Berridge, Simon Callow, Roy Dotrice, Christine Ebersold, Jeffrey Jones, Lisabeth Bartlett, Kenny Baker, Charles Kay, Barbara Bryne

Versão do Realizador

Crítica:


A VOZ DE DEUS

I am a vulgar man! But I assure you, my music is not.

Jamais me lembraria de imaginar Mozart - Wolfgang Amadeus Mozart, o génio da música - a envergar uma desconcertante peruca cor-de-rosa, a rir-se que nem uma hiena e a peidar-se que nem uma criança, despudoradamente. Mais difícil seria imaginar-me, seguramente, a adorar uma efabulação biográfica que ousasse retratá-lo dessa forma, sem que a considerasse profundamente ridícula ou demérita. Pois bem, Amadeus executa-a insolitamente, para meu espanto. Para meu espanto e para espanto de meio mundo, a partir de peça original de Peter Shaffer (que também assegurou o argumento e a adaptação). E como adoro o devaneio! A proposta narrativa é de tal modo alucinada, carismática e triunfal que, hoje em dia, fica difícil pensar em Mozart sem ser transportado, imediatamente, para o imaginário criado pelo filme. I am a vulgar man! - admite o músico, a dada cena - But I assure you, my music is not. E, efectivamente, sempre que ouvimos as suas inspiradas e prodigiosas composições, ascendemos ao olimpo dos deuses. E rapidamente perdoamos o seu carácter mais frívolo ou obsceno. Chegamos, inclusive, a apaixonarmo-nos por este delirante Mozart.

O filme, assinado por Milos Forman - que anos antes realizara o inspirador Voando Sobre Um Ninho de Cucos - abre e fecha na ala de um hospício. Mas não tardará a tornar-se faustoso e por demais requintado, frequentando a corte e os seus palácios, os teatros nacionais e festivos bailes de máscaras. A maior parte dos exteriores - e dos interiores - é filmada em Praga, na aura ainda setecentista das suas ruas e dos seus edifícios. Na verdade, muito poucos foram os cenários construídos propositadamente para o filme (precisamente: o apartamento de Mozart e a escadaria adjacente, o teatro do vaudeville, a sala do asilo e não mais do que isso). O certo é que, em todos eles, a direcção artística (Patrizia von Brandenstein e Karel Cerný) mostra-se de um arrojo e de uma exuberância absolutamente invulgares, tão elevados. Desfilam, a todo o instante, grandiosos figurinos (Theodor Pistek), sempre aprimorados por múltiplos folhos e rendas, pelas perucas da moda (todas, claro, à excepção da de Mozart) e por muito pó-de-arroz. Iluminado a luz natural (Miroslav Ondrícek), a viagem no tempo concretiza-se com assaz verosimilhança, fora uma ou outra liberdade fora-de-tempo (como a já referida irreverência e excentricidade do compositor na arte de se apresentar em público), mas que ganha sentido na medida em que aqui se procura retratar que os génios vivem sempre à frente do seu tempo, destacados ou alienados dos demais.

No caso dos génios, aliás, é comum a arte fluir-lhes do espírito, com aparente facilidade, como se fossem possuídos por Deus, como se o talento tudo explicasse, ao contrário dos restantes artistas, que se esforçam por sobressair da mediania. Esta é, no fim de contas, a história de Amadeus: não tanto focada no génio, mas sobretudo na sombra de Salieri (espantoso desempenho de F. Murray Abraham, no papel de uma vida) e na forma como este lida com a frustração de não conseguir, nem por uma vez, ser um criador ao nível de Mozart. A Salieri - o paladino dos medíocres ou, como o próprio diz, their champion (...) their patron saint -, custa-lhe a crer como pode Deus servir os Homems de tão desigual modo. Ainda para mais quando é um homem certinho, politicamente correcto e profundamente religioso e quando Mozart (inesquecível Tom Hulce) não passa de um bon vivant, espalhafatoso e infantil, mulherengo, entregue aos prazeres da carne, aos vícios do álcool e do rapé e que adora divertir-se, sem olhar a gastos - aliás, a sua situação financeira, mesmo depois de casado, pai de filhos e senhor de uma casa, com a fama alcançada na corte e entre os seus pares, é tão desregrada que sucumbe facilmente aos excessos. A dor maior de Salieri é, precisamente, ter consciência da sua limitada qualidade e do simplismo das suas composições, sentindo-se esmagado pelas pautas do rival. Consumido de tal forma pela inveja, não admira que tão atormentada alma acabe no manicómio, até aos seus derradeiros dias. A sua confissão ao padre - e ao espectador - é, provavelmente, o último resquício da sua vitalidade e da sua saúde mental: o assumir, finalmente e em bom tom, para o mundo e para si próprio, a sua paixão pela obra de Mozart: This was a music I'd never heard. Filled with such longing, such unfulfillable longing, it had me trembling. It seemed to me that I was hearing the voice of God.

Cenas memoráveis são mais do que muitas: desde Mozart ainda menino-prodígio a fazer sucesso na corte a Salieri envelhecido (excepcional, o trabalho de caracterização de Dick Smith), amarrado a recordações. Da encenação d'As Bodas de Fígaro a Don Giovanni, d'A Flauta Mágica e da estridente e arrepiante cena da Rainha da Noite à devastadora composição do fúnebre requiem e a cena em que Mozart, já enfermo, febril e debilitado, dita de cabeça a sua música a Salieri... Momentos genuinamente artísticos, alicerçados numa dramaturgia sóbria e que tão bem equilibra a comédia e a tragédia.

A juntar-se a todas estas qualidades, já referidas, a música do génio, omnipresente, que se torna uma verdadeira personagem e cuja alma tudo assombra e transcende. Que forma auspiciosa de levar ao grande público a beleza, a pureza e a magnificência da melhor música clássica. Com o passar dos anos, Amadeus não envelhece numa cena que seja. Se há filmes intemporais, Amadeus é sem dúvida um deles. Da mais disparatada gargalhada à mais lírica ópera que podemos conceber, Amadeus tornou-se, pois, por mérito próprio e cheio de graça, um clássico instantâneo e essencial.

domingo, 12 de fevereiro de 2017

BIRDMAN OU A INESPERADA VIRTUDE DA IGNORÂNCIA (2014)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM 
★★★★★ 
Título Original: Birdman or (The Unexpected Virtue of Ignorance)
Realização: Alejandro Gonzalez Iñárritu
Principais Actores: Michael Keaton, Emma Stone, Naomi Watts, Edward Norton, Zach Galifianakis, Andrea Riseborough, Amy Ryan, Lindsay Duncan, Jeremy Shamos, Natalie Gold, Merritt Wever 

Crítica:

O METEORITO E AS ALFORRECAS

A thing is a thing, not what is said of that thing.

Mas - permitam-me começar com a adversativa - como é que raio ou meteorito fizeram este inacreditável filme? Prodígio técnico absoluto - na câmera, na encenação e na representação -, assistir a Birdman será sempre um deslumbramento. O rigor e o formalismo jamais se esgotam em si mesmos, antes acentuam o realismo e a sensação de que assistimos a uma grande peça de teatro, com uma peça de teatro lá dentro. Sufoca-nos, a nós e às personagens, a claustrofobia daqueles corredores intermináveis, dos camarins minúsculos e da iluminação soturna e sempre artificial do backstage. Sufoca-nos, tão-mormente, aqueles geniais e engenhosos planos-sequência que se unem e fluem como um só. Não admira, pois, que quando a câmera acompanha as personagens ao topo do edifício ou numa saída à rua - alia-se geralmente a sinfonia - nós e o filme inspiremos e expiremos profundamente, numa prazerosa lufada de oxigénio. Nós e o filme, nós e as personagens - sempre: os travellings perseguitórios tornam-nos íntimos e cúmplices e, quais personagens, deambulamos pelo set, vivendo as suas angústias.

Michael Keaton, Naomi Watts e Edward Norton arrasam em atuações excepcionais. São actores a fazer de actores e o filme é, em parte, sobre o que significa ser actor. A busca, sempre crescente, do sucesso e do reconhecimento - ou da alimentação do ego. A procura da representação da verdade na ficção perante o risco de, sem perceber, se representar a vida, tornando-a uma trágica mentira. Note-se o caso de Mike (Norton) para quem o palco é o único sítio onde consegue ser autêntico e ter, com facilidade, uma erecção, sendo capaz de pôr toda a peça em risco em nome da verdade e das sensações genuínas. Note-se o caso de Lesley (Watts) que sempre sonhou ser actriz da Broadway e que, tornando-se finalmente quem sempre quis ser, se esbate com as inseguranças de menina. Note-se Riggan (Keaton, o protagonista) que investe tudo o que tem e o que é na derradeira tentativa de regresso aos êxitos e de não cair no esquecimento (relação metadiagética com a situação real do próprio actor), numa era em que se atropelam as sequelas de super-heróis (a sátira é clara) e a memória da trilogia Birdman, onde estrelou, se apaga a cada dia. Riggan é o meteorito com que a obra abre, a estrela-cadente que, plena de frustração e de incapacidade em superar-se e em renovar-se, conhecerá a morte no impacto que se aproxima. A imagem é belíssima. Conseguirá ele reerguer-se e tornar ao firmamento, ausente que está dos fenómenos virais da sua atualidade como o facebook, o youtube ou o twitter? Abismado que está pelas dúvidas existenciais, pela honra ferida e pela crítica feroz? Riggan está sozinho entre um elenco de egos. E ninguém parece disposto a dar-lhe a mão. This stage has belonged to a lot of great actors, but you are not one of them - diz-lhe Mike, a dado momento, confrontando-o - You nobody piece of shit! (...) My massive hard-on got 50,000 views on YouTube. A cat playing with a dildo gets more than that. O seu alter ego, com quem tantas vezes dialoga na solidão e que não é senão a voz do seu Birdman de outros tempos, tão depressa o endeusa como o desmoraliza: without me, all that's left is you... a sad, selfish, mediocre actor... grasping at the last vestiges of his career. A crítica Tabhita Dickson devasta-o: you're no actor, you're a celebrity. Let's be clear on that. E até a melancólica filha Sam (brilhante Emma Stone) o chama à razão: you're doing this because you're scared to death, like the rest of us, that you don't matter. And you know what? You're right. You don't. It's not important. You're not important. Get used to it. Quais alforrecas, todos se lhe colam e queimam o corpo e a alma. Não admira, portanto, que o desencanto triunfe e que o suicídio seja encarado como a única solução - e salvação. Terá um ego tão inflamado, mesmo na desilusão, coragem para tamanho feito?

Com Birdman, Alejandro G. Iñárritu lembra-nos por que é, afinal, um dos mais ambiciosos e mais estudados cineastas deste início de século - lembremos, a título de exemplo, Babelesse seu extraordinário filme-mosaico, cuja urgência é gritante e a excelência completamente irrevogável. E quando utilizo o adjectivo estudado (não me justificarei quanto ao ambicioso, porque acho que a obra fala por si), utilizo-o na sua dupla acepção: não apenas no sentido em que o estudam, mas sobretudo no sentido em que Iñárritu estudou e conhece o legado que a sua arte e os seus mestres lhe deixaram. Só se pode procurar ser original e inovador, num mundo onde já tudo foi inventado, se estudarmos o melhor possível a nossa arte, os clássicos e o que já foi feito. Até imitar não é para todos e saber imitar bem uma obra de arte. O mesmo é válido para qualquer cinéfilo ou crítico: a nossa apreciação de filmes como este só beneficiará se tivermos assistido ao A Corda de Hitchcock ou se soubermos mais sobre as experiências e as propostas que têm sido feitas com os planos-sequência ao longo dos tempos. O estudo é importante. Da mesma forma é estúpido criticar Iñárritu só porque é audaz ou reúne esta ou aquela influência. Chamam-lhe, alguns, arrogância. À leviandade desses alguns, chamaria, por cortesia, inesperada virtude da ignorância. Por mais que se rodeie de alforrecas, se há coisa que Iñárritu não é é seguramente um meteorito; excepto na força. O seu trajecto é claramente inverso e ascendente. O cineasta arquitecta e concretiza aqui mais um desafiante e brioso exercício de estilo, distante de clichés, matematicamente preciso e assaz meticuloso e sem grandes truques de montagem, que se transcende em criatividade e emoções, sempre atento às fragilidades da condição humana. Não tenhamos dúvidas: Birdman é o fascinante resultado de ensaios, ensaios e mais ensaios, muita dedicação, paixão e entrega à arte e, claro, de uma boa dose de loucura. O assustador trabalho de Emmanuel Lubezki revela-se, em tudo e por tudo, absolutamente épico.

Por isto, estamos perante um imperioso triunfo - um filme para a vida.

sábado, 8 de março de 2014

O ARTISTA (2011)

 PONTUAÇÃO: MUITO BOM
★★★
Título Original: The Artist
Realização: Michel Hazanavicius
Principais Atores: Jean Dujardin, Bérénice Bejo, John Goodman, James Cromwell, Penelope Ann Miller, Missi Pyle, Beth Grant, Ed Lauter, Joel Murray, Bitsie Tulloch, Ken Davitian, Malcolm McDowell, Basil Hoffman, Bill Fagerbakke, Nina Siemaszko

Crítica:

O CREPÚSCULO DO CINEMA MUDO

 If only he could talk.

O Artista é uma viagem no tempo: um caso de puro revivalismo, de homenagem, não tanto de nostalgia, como alguns críticos avançam. É certo que a saudade do cinema de outrora terá estado, seguramente, na sua origem, mas é muito bem humorado, dramático quando assim tem de ser, romântico porque é essa a sua natureza. É um filme mudo (a prodigiosa e espirituosa banda sonora de Ludovic Bource dá voz aos silêncios, com toda a graça e eloquência), a preto e branco, como se tivesse sido feito nos anos 20 do século XX, à parte uma ou outra sequência que (inteligentemente) brinca com as potencialidades do som - como naquele pesadelo mordaz em que o som e as gargalhadas assaltam e assombram o protagonista. O Artista resulta, por isso e como não podia deixar de ser, numa experiência curiosa e rara.

Inicia-se com o filme dentro do filme, num jogo de espelhos, em auto-observação. Assume-se: é, sobre todas as coisas, um filme artístico, sobre a própria arte cinematográfica. É, também, sobre as estrelas cadentes e o seu irremediável pathos, sobre os atores maiores do cinema mudo, plenos de uma expressividade física e teatral exagerada, que são ultrapassados ou caem no esquecimento pela novidade, chamariz e sucesso do cinema sonoro. É, pois, justo, porventura imediato, estabelecer um paralelismo entre George Valentin (carismaticamente interpretado por Jean Dujardin) e a extravagante Norman Desmond (memorável Gloria Swanson), do magistral de Billy Wilder O Crepúsculo dos Deuses. Apesar de terem personalidades completamente distintas, os protagonistas de ambos os filmes têm em comum o malfadado percurso no seio da velha Hollywood. Também o genial Serenata à Chuva foi claramente uma influência.

Ironia do destino, pois, que George se apaixone pelo brilho e encanto da jovem Peppy Miller (Bérénice Bejo), que se tornará - por mérito próprio -  nada mais nada menos do que a mais recente heroína do cinema americano - sonoro, claro está. Enquanto ele, inadaptado à modernidade, fica no desemprego, entregue ao álcool e à desesperante solidão após gastar a sua fortuna no comovente embora fracassado Tears of Love (do qual foi produtor, realizador e estrela, e no qual é literalmente sugado pelas areias movediças; o que adquire uma dimensão simbólica, metafórica), ela alimenta as bilheteiras como ninguém, bilheteiras que se estendem a perder de vista pelas ruas, enriquecendo a máquina capitalista dos Kinograph Studios, para contentamento do patrono Al Zimmer (John Goodman). Valha-lhe - a George - o cão (Uggie), fiel companheiro para todas as horas, também artista, mas sem qualquer ego ou vedetismo. Ou mesmo o serviente motorista Clifton (James Cromwell), que acaba por despedir por não ter mais rendimentos. E por fim valha-lhe mesmo a suposta rival Peppy Miller, pela qual o seu coração sangra, que tanto o admira sem ele saber... As fases da tragédia grega sucedem-se: catástrofe, anagnórise, catarse. Bem que desconfiamos do final feliz, com música e dança como num bom e antigo musical que se preze. No fim, a comédia vence a tragédia.

Michel Hazanavicius é virtuoso. Estudou bem os clássicos, nota-se, e O Artista reflete toda essa herança: a cada cena no movimento de câmera, na precisão com que insere os quadros de legendas, na montagem e na iluminação (a fotografia de Guillaume Schiffman é um autêntico portento), na esmerado guarda-roupa (Mark Bridges) ou na majestosa cenografia (Laurence Bennett e Robert Gould) que asseguram a verosímil reconstituição histórica. O filme é, todo ele, tecnicamente irrepreensível e o elenco é fabuloso - a dupla principal tem, efetivamente, a aura de outros tempos (o que não é senão o resultado do seu extraordinário trabalho de composição). A obra acaba por triunfar e conquistar o espetador, sobretudo pelo seu despretensiosismo e pela simplicidade da sua história.

Uma última ironia do destino? Passados tantos anos, O Artista arrebata prémios por todo o globo. O mudo encontra um novo auge em tempos do sonoro e do 3D. Que o apaixonado filme de Hazanavicius inspire à descoberta dos primórdios do cinema.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

A VIDA É BELA (1997)

PONTUAÇÃO: EXCELENTE
★★★★★ 
Título Original: La Vita è Bella
Realização: Roberto Benigni
Principais Atores: Roberto Benigni, Nicoletta Braschi, Giustino Durano, Giorgio Cantarini, Marisa Paredes, Horst Buchholz, Lidia Alfonsi, Giuliana Lojodice, Amerigo Fontani, Pietro De Silva, Francesco Guzzo, Raffaella Lebboroni

Crítica:

UMA TRAGICOMÉDIA EM DOIS ACTOS

 Buongiorno, Principessa!

Vislumbramos a perfeição, às vezes, na genuína representação de humanidade... e isso não é fácil, na arte. Em A Vida é Bela encontramo-la - com aparente simplicidade - tanto na comédia como na tragédia e é isso que é comovente. Este encantatório filme de Roberto Benigni - que em 1997 polarizou as atenções do mundo, uma vez mais, para o cinema italiano - pode não ser um exercício do maior dos formalismos - tão-pouco almeja a irreverência do cinema independente - mas encontra na sua graciosidade, espontaneidade e despretensiosismo - diria mesmo, na sua pureza e desarmante infantilidade - a sua absoluta singularidade e a capacidade inequívoca de despertar no espetador as mais sentidas e verdadeiras emoções. Não é fácil, também e da mesma forma, por isso, encontrar alguém, com o mínimo de humanidade, que não goste de A Vida é Bela.

Guido Orefice (imortal e, em tantos aspetos, autobiográfico papel de Roberto Benigni) é um infantil, divertido e excêntrico homem comum; qual clown, exagerado nos trejeitos e na eloquência, larger than life itself. Apesar da sua existência enfática, é humilde, é um bom homem. E é judeu, como nos viremos a aperceber mais adiante, o que, na Itália fascista do final dos anos 30 do século XX, à beira da guerra, não lhe augurará um promissor destino, pelo contrário. Benigni começa pela comédia e pela sátira: de Chaplin a Fellini, a herança é clara. A espirituosa e aclamada composição musical de Nicola Piovani acompanha a ação desde o primeiro instante e potencia os cómicos de situação e de personagem. Guido atrai as situações mais caricatas, mas também manipula as circunstâncias por forma a alcançar o humor picaresco (por meio da hiper-lucidez, nomeadamente, tão característica dos humoristas). E é neste contexto que se inicia a história de amor. Numa viagem ao campo, Dora (Nicoletta Braschi, mulher de Benigni na vida real) salta de um pombal e cai-lhe nos braços, sobre a palha. Buongiorno, Principessa! Guido fantasia, cheio de graça, e, na sua inocência, encanta. Mais tarde, já na cidade e inesperadamente, cai da bicicleta em fuga para os braços de Dora... sinal do destino. Buongiorno, Principessa! Depois, os acasos acabam. Daí em diante, embora continue a fabricá-los aos olhos de Dora, o romântico encontrar-se-á com a professora, uma e outra vez, porque potencia esses encontros... e a magia acontece. Guido sequestra-a da ópera num automóvel que não tardará a ficar descapotável e pleno de chuva. Uma demorada passadeira vermelha desenrola-se escadaria abaixo para a sua bela princesa passar. Montado baile adentro num cavalo verde, salva-a do seu não-pretendido noivo e leva-a até casa do tio, onde poderão viver felizes para sempre. Ou poderiam, não fosse a elipse e a assombrada mudança de resgisto que se seguem. 

Cinco anos depois, saem para a rua, a câmera não se move. A fábula chegou ao fim (ou não) e a história tornou-se mais imprevisível do que nunca. Séria e profundamente trágica, apesar do humor, ou sobretudo pela sua resistência. Têm um filho, Josué (adorável Giorgio Cantarini, em todas as suas expressões faciais), que bate o pé para não tomar banho (ironicamente, tal atitude salvá-lo-á mais tarde das câmaras de gás). Os três passeiam pela cidade de bicicleta, são felizes. Têm a livraria com que Guido sempre sonhou. É dia de aniversário da criança, mas... por serem judeus, Guido, o tio e o filho são inesperadamente levados para o campo de concentração, pelos alemães. Dora convence os alemães a meterem-na no mesmo comboio, para o mesmo destino. O resto do filme, é a sobrevivência no campo de concentração. Para evitar que Josué descubra a cruel realidade para que foi levado, Guido fantasia que estão num jogo: quem atingir primeiro mil pontos ganha e recebe um tanque de guerra verdadeiro. Encobrir a verdade, embelezando-a, torna-se uma mentira necessária, determinante para salvar aquela inocente criança e livrá-la, tão cedo quanto possível, do inevitável e monstruoso trauma do holocausto nazi. Espera-os a fome, o trabalho forçado, o cheiro da morte. Alimentar a esperança a este nível é absolutamente desarmante, perante tão terríveis circunstâncias. Mas que pai, que coragem... 

A Vida é Bela é um filme de atores e que ascende a um patamar superior por força do seu arrojado argumento, contudo não há qualquer desmérito por parte da fotografia (Tonino Delli Colli), da montagem (Simona Paggi) ou da cenografia (Danilo Donati, Luigi Urbani); esta última, aliás, notável. Uma última nota para a personagem Dr. Lessing (Horst Buchholz), o médico que Guido servia no restaurante do tio ainda antes da guerra, com o qual ganhamos simpatia pelo seu amor às adivinhas e aparente bondade e que muitos afirmam ajudar Guido e o filho quando estes estão no campo de concentração. Se ajudar Guido e o filho é levá-los a jantar com o inimigo, não creio que tenha sido grande ajuda. No fim acaba por não ajudá-los em nada, ignora-os e dá prioridade às adivinhas: mostra-se egoísta, insensível e tão desprezível como todos os outros militares do hediondo lugar. Que podia ele fazer? Talvez nada, ou ainda se arriscava a ser fuzilado como traidor dos nazis, mas termina - quem sabe se por cobardia - por trair Guido. Quer é saber a resposta à adivinha. Torna-se, na minha opinião, a personagem mais detestável de todas, à altura do Mal quase invisível que dita a morte aos injustiçados.

A Vida é Bela chega-nos, pois, como um acontecimento assustadoramente revoltante e arrepiante, capaz de nos desfazer a nós, espetadores, em lágrimas. É um filme derradeiramente apaixonante e inesquecível, tal é a sua poderosa e arrebatadora lição de otimismo e, por meio dela, o seu inspirador hino à vida; o título não é em vão, não é apenas ironia. Há como acabarmos de assistir a um filme deste calibre e, indiferentes, não repensarmos, reavaliarmos ou relativizarmos toda a nossa existência? Há, naturalmente, mais realismo n'A Lista de Schindler ou n'O Pianista. São visões e conceitos artísticos distintos e complementam-se no entendimento deste período negro na História da Humanidade.

Um irresistível triunfo cinematográfico.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

AS CONFISSÕES DE SCHMIDT (2002)

PONTUAÇÃO: BOM
Título Original: About Schmidt
Realização: Alexander Payne
Principais Actores: Jack Nicholson, Hope Davis, Dermot Mulroney, Kathy Bates, June Squibb 

Crítica:

 A ÚLTIMA ESTRADA


Remember that, young man: 
you've got to appreciate what you have, while you still have it.

As Confissões de Schmidt, de Alexander Payner, resulta numa comovente e reflexiva tragicomédia sobre a chamada terceira idade. Sem quase dar por isso, a vida voou e Warren Schmidt conta os segundos para se despedir, definitivamente, do escritório e da empresa aos quais dedicou a vida. Reformado e sem nada para fazer, resta-lhe o dia-a-dia doméstico com a mulher que conhece de trás para a frente, a tal que tem sempre razão e que o convenceu a urinar sentado, que tira a chave da mala muito antes de chegar a casa e da qual já não suporta o cheiro ou a forma como se senta. Até que... a mulher morre, subitamente. E, de um dia para outro, não só está reformado como viúvo, verdadeiramente só. A filha que tanto estima na memória vive longe, está prestes a casar-se com um futuro genro que detesta, um vendedor de colchões de água com uma barba e um penteado tão hippie como as ideias levianas da sua mãe Roberta (desconcertante Kathy Bates). Abismado pela profunda falta da esposa, incapaz de chorar ou de assumir a sua dor, Schmidt acaba por valorizar a sua querida Helen, com quem partilhou um longo casamento, mas... Ao desfiar recordações, dá com cartas de amor antigas, endereçadas à mulher... pelo seu melhor amigo... Reformado, viúvo e... traído. Não é de espantar, pois, que o pobre Schmidt se deixe ir abaixo num desmazelo depressivo, deixando-se arrastar pela casa, de pijama, dias a fio - desponta a barba - sem lavar um prato ou ir ao lixo, enquanto a sua existência não voltar a ter um sentido.

Relatively soon, I will die. Maybe in 20 years, maybe tomorrow, it doesn't matter. Once I am dead and everyone who knew me dies too, it will be as though I never existed. What difference has my life made to anyone. None that I can think of. None at all.

Para quem nunca desabafa sobre si mesmo, a catarse - e a narração - desperta no sofá, em frente ao televisor, enquanto assiste a um anúncio sobre solidariedade e ajuda internacional a crianças desprotegidas em África, por apenas vinte e dois dólares por mês. Conquistado pela retórica publicitária, abraça humana e despretensiosamente a missão, que lhe trará algum significado à vida ou conforto ao coração, por saber que pode ser útil e ajudar uma de muitas pobres crianças em dificuldades. Começa a escrever cartas a um tal Ndugo e para nós, espetadores, é como se no-las lesse. É a sua voz interior, a que finalmente ouvimos e a que ele, creio, finalmente ouve também. Certa madrugada decide-se, agarra nas malas e faz-se à estrada na sua novíssima e luxuosa Winniebago de dez metros (mais um dos caprichos da mulher, que não teve tempo de nela partilhar com o marido as viagens dos seus sonhos). A viagem pela auto-descoberta nesta nova e provavelmente última etapa de vida começa. Há que reconhecer que está na hora de deixar a filha seguir o seu próprio caminho, há que aprender a reinterpretar toda a sua existência e o seu papel no mundo.

 I know we're all pretty small in the big scheme of things, and I suppose the most you can hope for is to make some kind of difference, but what kind of difference have I made? What in the world is better because of me?

Que outro ator senão Jack Nicholson poderia interpretar este sexagenário de forma tão avassaladoramente profunda, sentida e real? A sua carga emocional é tremenda e a sua performance assaz brilhante, cativante e memorável. É por reconhecermos Nicholson mais jovem e de icónicos papéis mais excêntricos e arrogantes - entra imediatamente em jogo a nossa memória como espetadores de cinema - que sentimos ainda mais intensamente a sua dor, tão parca em palavras. Schmidt é um ser, às tantas, totalmente devastado e desencantado pelas circunstâncias que, sabemos, nos esperam a todos - é também por essa identificação, por sabermos o que nos espera também a nós, que o lado satírico e filosófico resulta tão eficazmente. O argumento da dupla Payne e Jim Taylor, a partir do romance de Louis Begley, é, neste aspeto, particularmente incisivo e inteligente. No último acto, a
fluída montagem de Kevin Tent desenboca nalgum sentimentalismo exagerado, ao qual se apressa a dar a mão a banda sonora de Rolfe Kent, mas o tom narrativo inicial torna ainda antes do fim e da carta de Ndugu, escrita por uma freira local.

As Confissões de Schmidt ganhará certamente com o envelhecimento do próprio espetador, à medida que se estreitarem as afinidades com o protagonista. Jack Nicholson tem aqui um dos seus desempenhos mais surpreendentes e intensos.

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

BUFFALO 66 (1998)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
Título Original: Buffalo '66
Realização: Vincent Gallo
Principais Actores: Vincent Gallo, Christina Ricci, Ben Gazzara, Mickey Rourke, Rosanna Arquette, Jan-Michael Vincent, Anjelica Huston, Kevin Pollakdlund

Crítica:

O ALIENADO

We are a couple that doesn't touch.

Buffalo 66, a primeira incursão do ator Vincent Gallo pela realização, é uma comédia absolutamente alucinada e improvável, a partir de uma representação realista, em parte autobiográfica, na qual se exageram e criticam propositadamente personagens (com base nas suas peculiaridades) e se explora a própria linguagem cinematográfica e as suas potencialidades no ecrã, para além do usual. É notório o intuito do realizador em conceber um objeto artístico tão original quanto possível na sua abordagem, despido de maneirismos e de lugares comuns. Qual Billy Brown, sabemo-lo, também Gallo é um alien, porque faz questão de o ser e não só porque o meio o determinou.

Saído da prisão e em liberdade após cumprir a sua pena, o narcísico Billy Brown (poderosa performance de Gallo) inicia uma insólita odisseia, de tentativa em tentativa frustrada para urinar. Primeiro tenta regressar à cadeia, mas negam-lhe o acesso ao wc. Depois, entra num restaurante; porém o proprietário frisa em alto e bom som que estão fechados. Entra, com a maior naturalidade, pela escola de dança do lado e procura um urinol, mas o descarado voyeurismo de um sedento gay impossibilita-lhe mais uma vez o alívio. É então que o seu mau génio se evidencia, mais claramente, e os seus olhos se esbugalham sobre as suas olheiras marcadas. Mostra-se um homem de irritabilidade fácil. E, aflitinho por urinar, acaba por ameaçar uma loira de proeminentes seios a conduzi-los sobre pressão num automóvel, até se afigurar possível parar para finalmente tranquilizar a bexiga e os humores.

Tudo se torna mais estranho quando a loira e desmiolada jovem Layla (encantadora Christina Ricci), de sapatos prateados e cintilantes, aparenta estar cada vez mais fascinada pelo bruto desconhecido, tornando-se capaz de satisfazer todos os seus pedidos. Participará numa farsa perante os pais deste, fingindo-se passar por sua mulher - conheceremos dois pais completamente desligados do filho e da realidade; formidáveis, os excêntricos desempenhos de Anjelica Huston, a mãe loucamente viciada em futebol, e de Ben Gazzara, o pai tarado e adepto do playback. Gallo filmou aliás na casa dos seus próprios pais, em Buffalo, e não é o filme senão um hilariante ajuste de contas com as suas origens. Do sapateado da pista de bowling à persistência do photomaton, do café do chocolate quente ao quarto de motel onde nada acontece e ao final surpreendente, Billy e Layla desenvolvem uma química conturbada e nem sempre recíproca. Aos poucos, Layla vai fazendo as suas pequenas conquistas - o que é evidente, por exemplo, quando Billy volta atrás após a discussão do café e lhe pede desculpa. Aos poucos, vamos torcendo para que a relação dos dois dê certo, para que preencham a colossal solidão um do outro, mas desconfiamos que o carácter impetuoso do protagonista vai desencadear, a qualquer instante, acontecimento trágico e irreversível. Quem sabe se não? Buffalo 66 é tudo menos previsível, a cada esquina se desenha uma nova possibilidade, sempre numa atmosfera de abismo, bizarria e inevitabilidade.

Enquanto realizador, Gallo é virtuoso no momento de câmera, especialmente inspirado nos enquadramentos e na encenação. Os jogos da montagem de Curtiss Clayton são fabulosos. A par da banda sonora de Gallo ouvem-se Yes ou King Crimson. E o uso dos flashbacks é efetivamente extraordinário, ou não permitisse ele aquele apaixonante e inesquecível twist final. Enfim, brilhante filme independente; Buffalo 66 destila, a cada cena, pujante criatividade cinematográfica.


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CINEROAD ©2020 de Roberto Simões