Baz Luhrmann sabe como quebrar corações. Foi assim na obra-prima do musical moderno
Moulin Rouge!, cuja fórmula herdou deste anterior - revolucionário e estonteante -
Romeu + Julieta. Para isso, nada como pegar na história de amor mais icónica de todos os tempos. Mas... levar à Hollywood dos meados dos anos 90 e às novas gerações de todo o mundo - mergulhadas numa
pop culture de videoclipes musicais e de consumo cada vez mais rápido e instantâneo -, as palavras eruditas e tudo menos comerciais de William Shakespeare? Que loucura, que fracasso anunciado. Daí o rasgo de génio de Luhrmann, fiel ao seu íntimo artístico: o cineasta arrisca manter o texto, em tanta da sua graça original, mas traz a acção da Verona italiana da Idade Média para a Verona Beach americana da modernidade, plena de arranha-céus, não com contendas de cavalos pelas estradas de terra e pó mas com rusgas de automóveis pelas ruas de alcatrão, inundadas de anúncios publicitários, não com lutas de capa e espada mas com tiroteios de camisas coloridas e floridas, abertas ao sabor do vento, ferozes perseguições de helicópteros pelos ares e meios televisivos que relatam as notícias em vez dos clássicos narradores. Comédia, acção, romance, drama, tragédia. A banda sonora é uma mistura igualmente tão eclética e irreverente que, aliada aos bruscos e efervescentes jogos de câmera,
zooms,
fast e
slow motion e à frenética e alucinada montagem de Jill Bilcock... contribui, de forma inequívoca, para a estranheza e brilhantismo da adaptação. Tamanha ousadia e originalidade poderia ter corrido muito mal, não fosse a visão e a convicção, a paixão e o profundo sentido estético de Luhrmann e de toda a sua equipa. O filme tornou-se o maior sucesso de uma adaptação de Shakespeare aos cinemas, mas simultaneamente alvo de um mar de críticas destrutivas e de incompreensão. Nada, enfim, que o tempo não se ocupe, justa e oportunamente, de corrigir.
O prólogo é um autêntico
trailer: compila algumas das melhores imagens do que estamos para ver, sobrepõe-nas a alta velocidade, acompanhado-as - sempre - de música electrizante, soma-lhes várias frases comerciais e por demais enigmáticas, suscitando a expectativa, e a manobra de
marketing está concluída, pronta a lançar o seu produto. O título parece no ecrã:
Romeo + Juliet, entendemos o
+ em vez do
e porque é mais
cool, mais
pop. Mas cúmulo da provocação:
Williams Shakespeare's antecede o título. Os que forem a Shakespeare irão certamente ao engano. O mote está lançado. Foquem-se no
+, que é também uma cruz. Quando o próprio prólogo é um
trailer, nada mais se pode esperar que não um filme comercial. Contudo - e este raciocínio impõe-se, a meu ver, como o mais importante -, ser um filme comercial não significa, por si só, ser um mau filme. Na verdade, ir beber influência à MTV revelou-se uma experiência tremendamente enriquecedora e actualizou ou regenerou, de certo modo, a linguagem cinematográfica em plenos anos 90. Sem esta influência, o que seria de
Boogie Nights de Paul T. Anderson, de
Clube de Combate de David Fincher ou de
Requiem for a Dream de Darren Aronofsky. Não podemos esquecer que realizadores como Fincher ou T. Anderson chegaram mesmo a trabalhar o
videoclip. De todos, Luhrmann foi quem desenvolveu uma abordagem mais espectacular e musical. A belíssima cena em que Romeu e Julieta pela primeira vez cruzam olhares, com o aquário pelo meio, poderia perfeitamente servir de videoclipe à canção
I'm Kissing You, da Des'ree. Poderíamos estar a assistir, efectivamente, ao videoclipe - é esse o jogo aqui. E o triunfo da identificação com o público contemporâneo. Da mesma forma, a canção serve perfeitamente a cena, levando a um envolvimento emocional imediato e poderosíssimo. Numa altura em que as paixões juvenis, na vida real, florescem ao som da música (os casais apaixonados partilham canções e
headphones) e em que os desgostos de amor são, igualmente, acompanhados por temas musicais, a música seria sempre o meio privilegiado para chegar aos espectadores mais jovens e para fazê-los sentir o romance e a tragédia da peça de Shakespeare, em toda a sua intensidade. A opção de manter o texto não só é corajosa como meritória, sendo porventura responsável por levar novos leitores ao mestre dramaturgo. Este é um entendimento derradeiramente optimista, mas creio nele.
Determinante para o sucesso da obra foram as escolhas do
casting: Leonardo DiCaprio, o menino prodígio de
Gilbert Grape, aqui a um ano de conhecer o estrondoso estrelado com o filme
Titanic, é por demais carismático, bonito e sedutor, mas também notavelmente magnetizante na sua interpretação. Vibramos com ele, choramos com ele. A graciosa Claire Danes é encantadora e torcermos pelo romance. De um lado Mercúcio (estupendo e hilariante Harold Perrineau como melhor amigo do herdeiro dos Montéquios, ora de cabelo aos canudos e de cruz ao peito ora de peruca e travestido), do outro lado Tibaldo (John Leguizamo, irascível e galante, como primo de Julieta e capataz dos Capuletos). Duas famílias inimigas e, por isso, amaldiçoadas. Algures pelo centro, os cúmplices: a ama de mel da sempre fabulosa Miriam Margolyes e o padre boticário de Pete Postlethwaite, fiel à métrica do poeta.
Excelente, a direcção artística: a praia parece um autêntico parque de diversões de terceiro mundo (o palco em ruínas foi, na verdade, devastado por um furacão durante a produção), as igrejas excedem-se em velas e
neons, a mansão dos Capuletos faz jus à riqueza e ostentação da família. As referências às peças de Shakespeare multiplicam-se, um pouco por todo o lado, nos cartazes ou revistas, assim como as representações e os símbolos cristãos (na roupa, nos carros, na pele tatuada). A fotografia é vívida, com as cores ao serviço dos propósitos dramáticos.
Romeu + Julieta tão depressa homenageia - e goza, plena de humor - o
western ou os filmes de
gangsters, ao som dos temas mais populares e descontraídos,
como vai buscar uma sinfonia de Mozart para suscitar o riso numa cena de interiores, Wagner para dramatizar uma determinada situação ou os corais de Craig Armstrong para atingir o tom mais operático e trágico. É quase uma antologia, de gosto diversificado e mais ou menos duvidoso.
O resultado, se me permitem, transcende quaisquer dúvidas. É como ingerir uma droga alucinogénica e, de repente, o virtuosismo de Shakespeare encontrar eco num surrealismo mundano, excitado e desenfreadamente histérico, injectado com níveis de adrenalina tão absurdos que o descontrolo hormonal e sem limites pode arrancar das personagens, a qualquer momento, os seus segredos mais íntimos. Com o seu quê de
nonsense, descomprometido mas profundamente sentido,
Romeu + Julieta revela-se uma experiência absolutamente sem limites. É como o fogo-artifício que, às tantas, irrompe pelo céu do baile de máscaras: explosivo e deslumbrante, imprevisível e adolescente - como as primeiras e verdadeiras paixões. Percebo, por isso, que os mais puristas, mais conservadores ou mais velhos não só não gostem como denigram os valores artísticos da produção. Não é só uma questão geracional, mas creio-a sobre todas as outras.
Romeu + Julieta foi um filme, em certos aspectos, à frente do seu tempo, que desbravou novos caminhos. Uma aposta, contra todas as expectativas, ganha: de inesgotáveis e contagiantes energia e fruição artística, deveras apaixonante e de emoções à flôr-da-pele, finalmente tão intensa como se nos cravasse um punhal no peito.