Realização: Mel Gibson
Principais Actores: Jim Caviezel, Maia Morgenstern, Monica Bellucci, Rosalinda Celentano, Sergio Rubini, Ivano Marescotti, Hristo Jivkov, Hristo Naumov Shopov, Mattia Sbragia
À minha avó.
Crítica:
Perdoa-lhes, Pai. Eles não sabem o que fazem.
A Paixão de Cristo é, até à data, o filme mais polémico - e o mais violento - de que tenho memória. Aquando da sua estreia, na Páscoa de 2004, revelou-se um autêntico fenómeno mundial, não tanto pelos seus méritos artísticos, mas sobretudo por tudo aquilo que, religiosamente, representava e representa. Guardo a minha experiência pessoal da altura, já então alheia a qualquer fé religiosa: a Igreja Católica recomendava a visualização do filme a cada missa, faziam-se excursões às salas de projeção para que os mais acérrimos ou influenciados crentes, muitos deles totalmente indiferentes à sétima arte, assistissem à badalada obra do católico Mel Gibson. Contavam-se as histórias de fulano e beltrano, um que se havia desfeito em lágrimas, outro que havia cerrado os olhos por incontáveis vezes ou ainda outro que, simplesmente, havia abandonado a sala por não suportar mais tanta paixão. Lembro-me de, um ou dois anos mais tarde, rever o filme em casa com a minha avó, em DVD, e ela, que sempre criticou a violência e o horror de muitos dos filmes que via, lá assistia ao filme devotamente, como se ao assistir ao filme se redimisse de eventuais pecados, se sentisse mais protegida ou estivesse mais próxima de Deus. A religião movimenta multidões e encerra, definitivamente, muitos mistérios.
Polémicas à parte, a minha principal perspetiva em relação ao filme é, como não podia deixar de ser, a artística, ainda que seja impossível (e também desnecessário) ocultar ou ignorar a dimensão religiosa do filme. Afinal, é e sempre será um filme sobre religião, assim como os há sobre política, sociologia, sexualidade, etc. Roger Ebert disse: It is a film about an idea. An idea that it is necessary to fully comprehend the Passion, if Christianity is to make any sense*. E não há como não concordar.
Ei-lo retornado, Mel Gibson, nove anos depois do magistral Braveheart - O Desafio do Guerreiro, que tão intensamente realizou e protagonizou, e que logo se tornaria um clássico incontestável. Se já então a violência emanava dos quadros do épico, com um penoso final para o mártir William Wallace e para os espetadores, imagine-se o que aconteceria com o Jesus Cristo do cineasta. Para financiar e viabilizar a produção, Gibson correu sérios riscos, entre os quais investir o dinheiro do seu próprio bolso. O argumento (do próprio e de Benedict Fitzgerald), a partir de vários dos evangelhos do Novo Testamento (S. João, S. Mateus, S. Lucas e S. Marcos), dos diários da profética freira Anne Catherine Emmerich (1774-1824) e de uma interpretação muito pessoal de toda uma herança religiosa e cultural, propõe o retrato das últimas doze horas da vida de Cristo. Da traição de Judas ao aprisionamento do messias, do julgamento de Caifás e dos sacerdotes às mãos lavadas de Pôncio Pilatos e da sangrenta tortura aos demorados passos para a crucificação... a versão de Mel Gibson é absolutamente visceral, chocante e revoltante. Nunca Cristo nos foi tão real, nunca sentimos a sua dor tão na alma e quase na pele, como nesta triunfal e nunca dantes vista Paixão de Cristo, que se diferencia claramente do tom de todas as versões bíblicas anteriormente filmadas.
Elevados valores artísticos e de produção garantem a sublimidade: note-se o realismo, imponência e sofisticação dos cenários e decoração (Francesco Frigeri, Pierfranco Luscrì, Daniela Pareschi, Nazzareno Piana, Carlo Gervasi) e as texturas e os detalhes do guarda-roupa (Maurizio Millenotti), que conferem autenticidade à viagem no tempo, para não falar dessa proeza que é conceber o argumento totalmente falado em hebraico, latim mas mormente em aramaico (a língua morta que os argumentistas trazem à vida, ainda antes de ressuscitar Jesus). O idioma falado, quando ouvido, quase que envolve a obra numa aura mística. Que mais autenticidade poderíamos desejar, de um retrato histórico? Há autenticidade no sangue, que jorra ou verte da carne viva, dilacerada pelos chicotes, pregos ou demais flagelos. A extraordinária caracterização (Keith VanderLaan, Christien Tinsley) é o trunfo determinante para o realismo da crueldade, necessariamente gore, que se esbate e esventra sobre a fragilidade daquele corpo submisso. O excesso de violência física que se vê e sente em A Paixão de Cristo é a estética e a grande protagonista. Mas, como disse, estética, estilo. Não esqueçamos por isso a violência psicológica que daí advém, tão angustiante e marcante, capaz de provocar alguma indisposição aos espetadores mais sensíveis.
Caleb Deschanel transcende-se enquanto pintor virtuoso e cria arte em movimento, a cada frame. A cor e luz são magnificamente trabalhadas, como por inspiração divina. Que fotografia belíssima. A poderosa banda sonora de John Debney acompanha iluminadas passagens, comovendo-nos a cada movimento de câmera, a cada olhar das personagens. Jim Caviezel, pleno de dor e carisma, transfigura-se pela voz e pela expressão corporal, tanto quanto a caracterização que o seu corpo sofreu, exaustivamente, durante horas de rodagem. A cada flashback, fortalecem-se as motivações das personagens e o nosso entendimento delas. Maia Morgenstern é uma Maria tão humana na sua consternação, intensidade e contenção; brilhante desempenho da atriz. A perspetiva do sofrimento maternal, às tantas introduzida, atribui uma maior profundidade ao quadro final da Pietà, qual fresco de Carracci, ainda para mais porque Maria termina por desafiar-nos a fixá-la nos olhos e a partilhar do seu desgosto. Monica Belluci é, por tanto e tão pouco, uma memorável Maria Madalena, assim como os restantes secundários (que personificam os odiosos judeus, aqui culpados pela condenação, e os brutais romanos que servem o propósito a fim de evitar inevitáveis motins. Ainda que seja esta a generalidade, a história dá lugar a bons e maus nos dois pratos da balança). Devo ainda salientar a arrepiante e andrógina Rosalinda Celentano como Satanás... Gibson não abdica do lado mais bizarro e sobrenatural, de ferozes criaturas que rosnam na escuridão ou de sorridentes crianças diabólicas que assombram o espetador ou a consciência de Judas e denunciam o Mal entre os Homens, durante o calvário.
Enfim, se ainda dúvidas houvesse, aqui fica mais um sólido testemunho do magistral artista e cineasta que é Mel Gibson, aqui numa tomada independente e por demais convicta. Pena que assine tão poucos filmes enquanto realizador. A cena da crucificação, em toda a sua encenação, é absolutamente brilhante. Aquele derradeiro plongée das alturas, qual olhar de Deus, que se converte na primeira gota da tempestade, qual lágrima sagrada, é, convenhamos... um pequeno grande toque de génio. A Paixão de Cristo pode não ser uma obra de fácil digestão, mas é arte em estado puro; estejamos nós disponíveis para senti-la e admirá-la. A religião, como a arte, é um acto de fé e raramente a devoção a ambas coincidiu tão profundamente.
O SACRIFÍCIO E A CRUCIFICAÇÃO
Perdoa-lhes, Pai. Eles não sabem o que fazem.
A Paixão de Cristo é, até à data, o filme mais polémico - e o mais violento - de que tenho memória. Aquando da sua estreia, na Páscoa de 2004, revelou-se um autêntico fenómeno mundial, não tanto pelos seus méritos artísticos, mas sobretudo por tudo aquilo que, religiosamente, representava e representa. Guardo a minha experiência pessoal da altura, já então alheia a qualquer fé religiosa: a Igreja Católica recomendava a visualização do filme a cada missa, faziam-se excursões às salas de projeção para que os mais acérrimos ou influenciados crentes, muitos deles totalmente indiferentes à sétima arte, assistissem à badalada obra do católico Mel Gibson. Contavam-se as histórias de fulano e beltrano, um que se havia desfeito em lágrimas, outro que havia cerrado os olhos por incontáveis vezes ou ainda outro que, simplesmente, havia abandonado a sala por não suportar mais tanta paixão. Lembro-me de, um ou dois anos mais tarde, rever o filme em casa com a minha avó, em DVD, e ela, que sempre criticou a violência e o horror de muitos dos filmes que via, lá assistia ao filme devotamente, como se ao assistir ao filme se redimisse de eventuais pecados, se sentisse mais protegida ou estivesse mais próxima de Deus. A religião movimenta multidões e encerra, definitivamente, muitos mistérios.
Polémicas à parte, a minha principal perspetiva em relação ao filme é, como não podia deixar de ser, a artística, ainda que seja impossível (e também desnecessário) ocultar ou ignorar a dimensão religiosa do filme. Afinal, é e sempre será um filme sobre religião, assim como os há sobre política, sociologia, sexualidade, etc. Roger Ebert disse: It is a film about an idea. An idea that it is necessary to fully comprehend the Passion, if Christianity is to make any sense*. E não há como não concordar.
Ei-lo retornado, Mel Gibson, nove anos depois do magistral Braveheart - O Desafio do Guerreiro, que tão intensamente realizou e protagonizou, e que logo se tornaria um clássico incontestável. Se já então a violência emanava dos quadros do épico, com um penoso final para o mártir William Wallace e para os espetadores, imagine-se o que aconteceria com o Jesus Cristo do cineasta. Para financiar e viabilizar a produção, Gibson correu sérios riscos, entre os quais investir o dinheiro do seu próprio bolso. O argumento (do próprio e de Benedict Fitzgerald), a partir de vários dos evangelhos do Novo Testamento (S. João, S. Mateus, S. Lucas e S. Marcos), dos diários da profética freira Anne Catherine Emmerich (1774-1824) e de uma interpretação muito pessoal de toda uma herança religiosa e cultural, propõe o retrato das últimas doze horas da vida de Cristo. Da traição de Judas ao aprisionamento do messias, do julgamento de Caifás e dos sacerdotes às mãos lavadas de Pôncio Pilatos e da sangrenta tortura aos demorados passos para a crucificação... a versão de Mel Gibson é absolutamente visceral, chocante e revoltante. Nunca Cristo nos foi tão real, nunca sentimos a sua dor tão na alma e quase na pele, como nesta triunfal e nunca dantes vista Paixão de Cristo, que se diferencia claramente do tom de todas as versões bíblicas anteriormente filmadas.
Elevados valores artísticos e de produção garantem a sublimidade: note-se o realismo, imponência e sofisticação dos cenários e decoração (Francesco Frigeri, Pierfranco Luscrì, Daniela Pareschi, Nazzareno Piana, Carlo Gervasi) e as texturas e os detalhes do guarda-roupa (Maurizio Millenotti), que conferem autenticidade à viagem no tempo, para não falar dessa proeza que é conceber o argumento totalmente falado em hebraico, latim mas mormente em aramaico (a língua morta que os argumentistas trazem à vida, ainda antes de ressuscitar Jesus). O idioma falado, quando ouvido, quase que envolve a obra numa aura mística. Que mais autenticidade poderíamos desejar, de um retrato histórico? Há autenticidade no sangue, que jorra ou verte da carne viva, dilacerada pelos chicotes, pregos ou demais flagelos. A extraordinária caracterização (Keith VanderLaan, Christien Tinsley) é o trunfo determinante para o realismo da crueldade, necessariamente gore, que se esbate e esventra sobre a fragilidade daquele corpo submisso. O excesso de violência física que se vê e sente em A Paixão de Cristo é a estética e a grande protagonista. Mas, como disse, estética, estilo. Não esqueçamos por isso a violência psicológica que daí advém, tão angustiante e marcante, capaz de provocar alguma indisposição aos espetadores mais sensíveis.
Caleb Deschanel transcende-se enquanto pintor virtuoso e cria arte em movimento, a cada frame. A cor e luz são magnificamente trabalhadas, como por inspiração divina. Que fotografia belíssima. A poderosa banda sonora de John Debney acompanha iluminadas passagens, comovendo-nos a cada movimento de câmera, a cada olhar das personagens. Jim Caviezel, pleno de dor e carisma, transfigura-se pela voz e pela expressão corporal, tanto quanto a caracterização que o seu corpo sofreu, exaustivamente, durante horas de rodagem. A cada flashback, fortalecem-se as motivações das personagens e o nosso entendimento delas. Maia Morgenstern é uma Maria tão humana na sua consternação, intensidade e contenção; brilhante desempenho da atriz. A perspetiva do sofrimento maternal, às tantas introduzida, atribui uma maior profundidade ao quadro final da Pietà, qual fresco de Carracci, ainda para mais porque Maria termina por desafiar-nos a fixá-la nos olhos e a partilhar do seu desgosto. Monica Belluci é, por tanto e tão pouco, uma memorável Maria Madalena, assim como os restantes secundários (que personificam os odiosos judeus, aqui culpados pela condenação, e os brutais romanos que servem o propósito a fim de evitar inevitáveis motins. Ainda que seja esta a generalidade, a história dá lugar a bons e maus nos dois pratos da balança). Devo ainda salientar a arrepiante e andrógina Rosalinda Celentano como Satanás... Gibson não abdica do lado mais bizarro e sobrenatural, de ferozes criaturas que rosnam na escuridão ou de sorridentes crianças diabólicas que assombram o espetador ou a consciência de Judas e denunciam o Mal entre os Homens, durante o calvário.
Enfim, se ainda dúvidas houvesse, aqui fica mais um sólido testemunho do magistral artista e cineasta que é Mel Gibson, aqui numa tomada independente e por demais convicta. Pena que assine tão poucos filmes enquanto realizador. A cena da crucificação, em toda a sua encenação, é absolutamente brilhante. Aquele derradeiro plongée das alturas, qual olhar de Deus, que se converte na primeira gota da tempestade, qual lágrima sagrada, é, convenhamos... um pequeno grande toque de génio. A Paixão de Cristo pode não ser uma obra de fácil digestão, mas é arte em estado puro; estejamos nós disponíveis para senti-la e admirá-la. A religião, como a arte, é um acto de fé e raramente a devoção a ambas coincidiu tão profundamente.
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(*) Cf. http://www.rogerebert.com/reviews/the-passion-of-the-christ-2004
(*) Cf. http://www.rogerebert.com/reviews/the-passion-of-the-christ-2004