domingo, 30 de outubro de 2011

GIGANTE (1956)

PONTUAÇÃO: EXCELENTE
★★★★
Título Original: Giant
Realização: George Stevens
Principais Actores: Elizabeth Taylor, Rock Hudson, James Dean, Carroll Baker, Jane Withers, Chill Wills, Mercedes McCambridge, Dennis Hopper, Sal Mineo, Rod Taylor, Judith Evelyn, Earl Holliman, Robert Nichols, Paul Fix, Alexander Scourby
Crítica:

O SANGUE QUE SEMEOU A TERRA

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades.

Alguns filmes parecem, incompreensivelmente, esquecidos no tempo. De uma escala épica e impressionante, bela e esfíngica, Gigante chega até nós como um legado máximo da era de ouro de Hollywood. Magnificamente filmado (desde os íntimos close-ups sobre as personagens às panorâmicas de cortar a respiração) e fotografado (arrebatam-nos a intensidade das cores e os contrastes captados, as nuances e subtilezas da iluminação e dos jogos de sombras), o filme tem o mérito de nos transportar, por inteiro, para outro tempo e para outro lugar. Justamente aclamado como uma das obras maiores de Stevens, agraciada por uma magnífica banda sonora de Dimitri Tiomkin, Gigante parte do romance homónimo de Edna Ferber e eterniza uma saga familiar ao longo de três gerações. Romance e humor garantem-nos, ao longo de mais de três horas, o melhor entretenimento, excitante e espectacular, mas é no drama satírico que o filme descobre as fissuras do sonho americano e da humanidade. Do microcosmos ao macrocosmos, a história toca a totalidade e a universalidade. Elizabeth Taylor, Rock Hudson e James Dean encabeçam o elenco, com excelentes interpretações.

I. OS HOMENS E AS MULHERES

O argumento de Gigante (Fred Guiol e Ivan Moffat, notáveis na consistência da adaptação) centra a sua discussão na contraposição de conceitos. A primeira oposição tem que ver com as diferentes representações sociais do homem e da mulher. Elizabeth Taylor é Leslie, uma jovem bonita e sedutora, mas sobretudo culta, respondona e emancipada. Desfila, por entre grandiosos cenários, graciosos vestidos, mas é uma mulher de calças, se for preciso, pois tem ideias próprias e jamais se inibirá de as exprimir. Apaixonar-se-á pelo charmoso fazendeiro Bick Benedict (Rock Hudson) e trocará os campos verdes e férteis de Maryland pelas planícies tórridas, estéreis e empoeiradas do Texas (mais uma oposição, que realça desde logo a dificuldade de adaptação a um novo meio, naturalmente mais hostil e socialmente mais conservador). O assombro visual da imensidão da paisagem expõe, a priori, as evidências da mudança: aquela mansão no meio do nada é, só por si, simbólica. A sua recta arquitectura impõe austeridade; fazendo em muito lembrar a casa entre as searas do posterior Dias do Paraíso, de Malick.

Leslie será imediatamente confrontada com o seu novo papel de esposa - com aquilo que o marido e os outros esperam dela - mas a jovem jamais se resignará à passividade ou, pior, à inutilidade. É uma mulher moderna, que arregaça as mangas e reclama a notoriedade. Como dirá mais tarde à amarga e solteirona governanta, não quero ser uma mera hóspede em casa do marido. Há uma cena, após o almoço, em que Leslie interrompe a conversa de Bick e dos companheiros de negócios e intervém activamente na conversa. É um escândalo e o marido repreende-a: isto são assuntos de homens! Mais tarde, o machismo de Bick vem ao de cima, novamente, quando chega a hora do primeiro filho - o primogénito que abraçará toda a herança da família e conduzirá Reata para o futuro. Quis o destino que tivessem um par de gémeos, um menino e uma menina... Bick dedicar-se-á sempre mais ao filho do que à filha - coisas de homens, entendem? - mas o destino é traiçoeiro. Se o não é, pelo menos é traiçoeira a ideia de esperar dos nossos filhos aquilo que nós, pais, queremos e não aquilos que eles, filhos, querem para eles próprios.

Emblemática, a cena em que Bick obriga o filho de quatro anos a montar um pónei e depois um cavalo, quando a criança chora atemorizada e só encontra aconchego no colo da mãe e nos brinquedos de médico. Será um médico, nem mais, a filha apaixonar-se-á pelo genro inesperado, sonhará com uma casa pequena na cidade... Moral da história? Os planos saem todos furados aos pais, de nada adiantam as excessivas imposições ou o fazer dos filhos meros projectos. Os filhos são igualmente indivíduos, que mais tarde serão - eles também - pais, perpetuando o ciclo. Nuclear, por isso, a cena em que Leslie e Bick conversam à luz dos candeeiros de cabeceira, fazendo as cedências necessárias para aceitarem os futuros trilhos da descendência. No curso da vida, por fim, evolui a mentalidade, a educação e com elas a cultura e a sociedade. A brilhante montagem da dupla William Hornbeck e Robert Lawrence joga habilmente com a passagem do tempo diegético e revela-se essencial para o triunfo narrativo. Afinal, aquilo que se poderia tornar, facilmente, uma longa-metragem interminável e enfadonha, torna-se numa experiência extremamente prazerosa.

II. O RACISMO
Com a questão da intolerância racial, Gigante põe o dedo na ferida, especificamente no que se refere à discriminação doentia mas cultural dos americanos sobre os mexicanos. Estamos perante um filme patriótico, disso não há quaisquer dúvidas, mas que talvez por isso mesmo veja a pátria na sua multiculturalidade, sem ignorar as origens e o passado mal resolvido; é Leslie quem, ainda em Maryland e antes do casório, confronta Bick com o caso da expropriação das terras aos mexicanos, no estado do Texas. Apesar da perspectiva unilateral da denúncia, o filme é não só claro como acerrimamente crítico na sua mensagem. O racismo prolifera pela educação que passa de pais para filhos, na ilusão da superioridade, da cultura dominante.

Quando Leslie e Jett Rink (James Dean) chegam à vila de Reata, a senhora fica horrorizada perante uma povoação doente e à qual os Benedict ou quaisquer americanos negam cuidados médicos. Leslie personifica, pois, o arauto da mudança: enviará o médico da família à vila e salvará da morte certa o pequeno Ángel. Ángel, mais tarde, integrará o exército e servirá o país na guerra, sendo um motivo de orgulho para a terra. Ironia do destino, o filho mais velho de Leslie e Bick casará com uma latina, desafiando todo o código de costumes e a aceitação de um futuro neto mestiço. É por demais revoltante, por exemplo, a cena em que a pobre Juana é humilhada no salão de beleza do hotel, potenciando toda a confusão no jantar de homenagem a Jett, self-made man, agora magnata do petróleo. O funeral de Ángel, que regressa a casa como defunto herói de guerra, prenunciava já uma mudança de mentalidade. Bick levava aos familiares da vítima as condolências e uma bandeira do Texas, em sinal de aceitação derradeira. No fim da cena, ambas as bandeiras, a americana e a texana, ondulavam ao sabor do vento, sobre o caixão do militar.

Já perto do desfecho da obra, o famoso banquete de pancadaria em pleno restaurante de hamburgueres, em que Bick se bate em defesa dos mexicanos, tomando-os por iguais. A cena é mais demorada do que seria de esperar; tem um significado romântico, como acabamos por concluir. É naquele instante que Leslie vê no marido um herói, tendo a certeza de que tudo o que viveram valeu a pena. Vence a tolerância, numa cena gratuitamente intolerante para o espectador. O racismo é, contudo e ainda hoje, uma das tendências de pensamento mais fracturantes na sociedade americana ou, pelo menos, uma das mais resistentes.

III. A TERRA E O DINHEIRO

Gigante é, também, sobre a prosperidade económica do Texas e da América, a partir do segundo quartel do século XX. É sobre a transição da produção pecuária para a produção petrolífera, sobre a alteração da paisagem: onde outrora pastavam hectares de gado passam a erguer-se repetidas e altas torres, extractoras de ouro negro, que ferem o solo mas reconfortam a carteira. É a concretização do sonho americano para o jovem Jett Rink, que desde sempre se imaginou longe do texas e a enriquecer. Nunca ninguém deu nada por ele, sobretudo Bick Benedict, que o detestava. Somente a governanta do rancho gostava dele, a mesma que sempre lhe ensinou que mais vale um punhado de terra do que um rio de dinheiro, a mesma que sempre o protegeu do infortúnio.

Quando ela morre e, em sua homenagem, decidem atribuir a Jett ou uns poucos hectares de terra ou o dobro do valor dessa mesmíssima terra, em dólares, não é por acaso que o desgraçado recusa o dinheiro e aceita a terra. Em breve, descubrirá nela petróleo, rios de petróleo, e passará de um coitado de Deus a um produtor de sucesso, de um produtor de sucesso a um empresário exportador, de exportador a milionário e magnata, a excêntrico, poderoso e famoso homem de negócios, dono - imagine-se - de uma companhia aérea; qual Howard Hughes. Quem diria. Jett tentará, por uma e outra vez, comprar o rancho de Bick, mas o Benedict jamais cederá a herança dos seus antecessores. Resistirá à mudança, mas com o tempo render-se-á à produção petrolífera, que o enriquecerá também, ainda mais. É a vitória do capitalismo imparável sobre os velhos costumes, é uma viragem crucial na identidade económica e nacional.

James Dean é simplesmente brilhante enquanto Jett Rink. Que performance assombrosa, que cresce à medida que os anos passam e os cabelos brancos chegam; o envelhecimento é por demais credível. No final, o balanço: um homem rico, muito rico, mas só, muito só. Alcoolizado, preconiza a sua queda, numa vida sem sentido para lá da ambição e do trabalho árduo. Tantos bens materiais para quê? Quando morremos, deixamos cá tudo e não levamos nada. A única coisa que podemos deixar é a saudade e a única coisa que podemos levar, espero, é a memória do amor que sentimos enquanto estivemos vivos. A quem deixará Jett Rink saudade? Que memória de amor levará consigo para a eternidade? Admite, finalmente, ter amado Leslie toda a vida, mas nunca consumou esse amor. Eis, pois, a mais importante lição de todas. Gigante acaba por constituir, dessa forma, uma clarividente elegia sobre a humanidade.

Sinceramente, admira-me como uma obra com a monumentalidade de Gigante possa algum dia ser esquecida. Mas porque será, então, tão poucas vezes mencionada? Que glorioso pedaço de cinema. Um daqueles filmes de uma vida.


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Crítica nomeada para Melhor Crítica nos TCN Blog Awards'11

8 comentários:

  1. Acho este filme muito pesado, um verdadeiro pastelão - o que nem é novidade na obra do quase sempre banalíssimo George Stevens. O pior James Dean de sempre, uma mancha negra na sua curta carreira. E o contraste ainda se torna maior se o compararmos com os admiráveis filmes de Kazan e Nick Ray.

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  2. RUI GONÇALVES: É a opinião generalizada sobre o filme, considerá-lo um "pastelão" ou até mesmo uma "telenovela", com a qual claramente discordo. Dean fez três longas-metragens, em nenhuma delas teve um mau desempenho ou pelo menos nada que justifique, creio, tamanha avaliação.

    Roberto Simões
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  3. Um dos filmes da minha vida!

    Parabéns pelo — mais um, estamos a ficar "mal" habituados :) — excelente texto.

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  4. SAM: Obrigado ;) Alguém neste mundo, at last, que partilha da minha opinião.

    Roberto Simões
    » CINEROAD «

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  5. Não me parece que seja difícil encontrar alguém que tenha opinião semelhante! :)

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  6. Excelente texto, sobre um excelente filme.

    Cumprimentos,
    Aníbal Santiago

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  7. ANÍBAL SANTIAGO: Bem-vindo ao CINEROAD. Afinal, o Samuel, acima, tinha razão. Há mais admiradores deste grande filme. Obrigado pelo elogio, volta sempre!

    Roberto Simões
    » CINEROAD «

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